Crônica

A Doma, a Coragem, o Combate e o Invento

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A Doma, a Coragem, o Combate e o Invento

“Heitor, que fazes?
Sem auxílio a tal monstro não te oponhas;
Longe em forças te excede, e vai matar-te.”

 

Heitor, o Domador de Cavalos, é advertido por Príamo de que não pode enfrentar Aquiles. Heitor é homem completo, não semideus. É nisso, exatamente, para alguns, que está sua armadura, violável, mas invencível, de Humanidade: Heitor experimenta o medo, a fraqueza… e os enfrenta até o sacrifício e deles se encouraça. É sua mundanidade humana o que o eleva à permanência, eternizado na Ilíada. Heitor não é Aquiles.

Talvez a representação idealizada de personagens reais, como ocorre com o gaúcho no Prata e aqui no “garrão da pátria” (e falar em garrão é engraçado, ao lembrar Aquiles), reproduza aquele combate. 

Escrevo aqui uma vez mais sobre Atahualpa Yupanqui. Não o enfrento. Porque resgato o conselho ponderado de Príamo – que aliás significa “o resgatado” – mas também porque com esse Héctor sou convergente e respeitoso; não lhe busco calcanhares. 

Talvez, isso sim, ele próprio seja e traga o combate de arrasto. Seu nome artístico foi e segue sendo revestido de transcendências aquilianas – enquanto Héctor (Heitor), seu nome de batismo, caminhava e já não caminha sobre a terra. 

Como diz aquele recente filme de sucesso, de qualquer forma, alegro-me de ter vivido na época de ambos.

 

…………………….

 

Encetei e concluí o trabalho de tradução de O Canto do Vento, de Yupanqui, com a mesma idade com que o autor lançou a obra.

Essa imagem, de uma fantasia meio cinematográfica, em que os dois maduros se confrontam, a caminho de completarem a sexta década de vida, é muito diferente da forma como, desde meus treze anos, minha imersão no pensamento de Atahualpa se relaciona com o tema da idade. 

O discurso do pensador argentino é o da ancestralidade e da ancianidade. “Cantor de artes olvidadas”.  “Yo canto, por ser antiguo, cantos que ya son eternos…” Dizem que, chegando ao país, perguntado por uma repórter o que trazia de novo, respondeu “novo? Eu trago só coisas velhas.” 

Não faz muito eu disse, em algum lugar, que compreendia, agora, a desconfiança com que eu era recebido na juventude, dispondo-me a representar a obra de Yupanqui; a incredulidade que tanto me feria, porque se demonstrava antes mesmo que eu cantasse ou falasse.

Mas o próprio Atahualpa afirmou um discurso de velho desde que arrancou seu caminho, ainda muito novo. Não se falava em etarismo, certamente, lá pelos anos 30 argentinos; acho que não se falava por aqui tampouco, nos 80, quando me larguei a cantar.  

E aos 57, defrontei-me novamente com os belos relatos de O Canto do Vento, dado ao mundo aos 57 do autor. Conhecia a obra, porque a li jovem, mas porque a ela retornei muitas vezes. E experimentei, é claro, a incrível diferença de perspectiva, repertório e escuta pessoais. Vivi, ao fazer essa tradução, o constrangimento de descobrir no autor diversas inconsistências, agora ladeado pela compreensão madura de que elas são naturais ou esperáveis. Sigo envolvido com elas e creio que aqui escrevo sobre isso por primeira vez.

Noto agora, por exemplo, de uma maneira geral, um Yupanqui que não tem os conhecimentos orgânicos sobre o campo na intensidade com que, de alguma forma, fez parecer ter, a gerações de ouvintes de seu canto e leitores de seus livros. Inconsistências; sobre arreios, manejo do cavalo, algo de lavoura. Pontuais, mas eventualmente surpreendentes, típicas de alguém urbano que tentasse apropriar-se de um código. Aqui cabem duas ponderações. A primeira, principal, sobre a impotência de qualquer desses deslizes para empalidecer o vigor do autor e de sua obra. A segunda, que me importa aqui, é a necessidade de levar em conta a tremenda imposição de uma espécie de cobrança de legitimidade, que acompanha a cultura crioula: pode ser necessário a um artista afirmar que é “legítimo”, de tanto que isso é exigido. De onde tu és? Como foi tua vida? Conheceste todos esses lugares, ofícios…? Triste cobrança, que traz na barriga o conceito empobrecido de que a Arte não teria, em si, esse poder legitimador. Talvez, então, às vezes um artista considere que seja preciso assumir um personagem que contemple essa exigência que o interpela – renunciando a outro conceito, pessoal, sincero e sofisticado de genuinidade. 

Em um dos relatos de O Canto…, Atahualpa descreve um domador entrerriano. Para início, atribui-lhe traços de tensão física de quem estivesse sempre esperando um golpe do animal. Os bons domadores, os “bruxos”, os grandes mestres do mistério do amansar um xucro, são sábios, prudentes; são “mansos”, se alguém quiser a imagem, talvez amansados por si próprios, pois se é disso mesmo que entendem… Mansos; mas briosos, “inteiros”, orgulhosos e potencialmente enérgicos, como sabem deixar as montarias que fazem com seu saber. Seguros, profundamente. O cacoete postural descrito por Yupanqui, intuo eu, traz uma confusão com um ginete, praticante do esporte campeiro de aguentar corcovos de um animal que não se quer amansar. O reservado, na Argentina; o aporreado, por aqui. Arrisco dizer que mesmo um ginete não seria o melhor, se antecipasse permanentemente um golpe do potro. Mas sigamos com o desenho, a “semblanza” de Genuario Sosa. Repito (onde será que disse?) que falta ser estudada a influência da indústria do faroeste sobre o mundo gauchesco. Histórias em quadrinhos, primeiro; cinema, depois. Filmes do início do século XX, como aqueles cujos pedaços, contendo alguns minutos de sequências, Yupanqui conta que eram projetados para os campeiros, em um lençol esticado de árvore a árvore. Ele itinerava com um amigo que tinha um caminhãozinho e um projetor; depois da exibição, tocava algo sobre a carroceria do veículo. 

Vários são os momentos em que se parece assistir a uma sequência tradicional de western, ao ler autores gauchescos. Não estou reduzindo Atahualpa ao aspecto gauchesco de sua obra – mas essa passagem, entre outras, é sem dúvida referida no mundo gaúcho. 

Assim é que Genuario Sosa vem viajando, sozinho, em uma picada de mato. Vem prevenido, porque está jurado de violência ou até morte por um desafeto. O motivo fora uma atuação heroica de Genuario, defendendo uma dama… De repente, vê vindo em sentido contrário o inimigo, com um comparsa. E se prepara para o recontro. Como? Pois desapresilha um loro, com seu estribo correspondente – e aguarda. Ao ser atacado, é exitoso no bom manejo do cavalo, fintando os adversários, um armado com o mango, outro com facão. Na cruzada, dá um poderoso golpe com o estribo na cabeça de um dos dois. Esse fica desacordado. Genuario convida o outro, então, para a peleia. Puxa sua arma branca e apeia.

Conheço bravatas de gaúchos. Sei como muitas vezes se referem a momentos de violência. Mas não posso imaginar a opção circense do ofendido que, ameaçado por dois oponentes, prevenido de que a agressão se daria; vendo que um vem já portando arma branca… decidisse abrir mão do precioso ponto de equilíbrio de um estribo para usá-lo como arma alternativa. Principalmente porque… estava armado! No lance seguinte, Genuario mata o oponente, usando de um estratagema – uma malandragem, digamos! Finge estar desfalecendo pela perda de sangue em um golpe recebido, para que o outro atacasse, confiado… e é quando o ultima. Ou seja, não será por alguma lisura cavalheiresca que optou por não sacar do facão já no primeiro choque…

Genuario é preso. Essas coisas ainda acontecem no mundo gaúcho – e claro que não só nele. Noel Guarany canta sobre o “careca Zaragoza”. Eu o conheci. Era um magnífico domador bageense. Zaragoza foi morto, já velho, a faca, covardemente, por um desafeto.

“…e o careca Zaragoza nem liga pras gineteadas…” Ginetes, domadores, punhaladas. 

Em pleno trabalho de tradução e intensa releitura de O Canto do Vento, vinha mal impressionado com aquela descrição do domador, que “…à força de lidar com os potros, anos e anos, havia criado o costume de viver com uma mão cerrada, como apertando imaginárias rédeas – e quando andava de a pé o fazia como adivinhando a sombra de um corcovo. São coisas que nos dá o ofício…”

Mal impressionado, porque conheci grandes do ofício. Zaragoza, seu Nelson, Nito Lescano no Uruguay, Oscar Scarpati, na Argentina… Beto, no Parque São Paulo, perto do Lami, ou Volnei em Viamão, se acham que ando muito longe.

Mas sou apenas um diletante apaixonado. Quis a opinião orgânica de alguém próximo desses assuntos. Havia poucos meses, eu começara a versão televisiva do “Cantos do Sul da Terra”. Um dos dois trabalhadores destacados para me ajudar, semanalmente, na montagem do cenário, era um campeiro. Um negro campeiro, ex-ginete, ocupado em serviços gerais nas emissoras. Muito rápido nos havíamos entendido, transitando esses assuntos, a partir da experiência dele e da minha curiosidade. Fizemo-nos amigos, tanto quanto se pode desenvolver uma amizade em poucos encontros rápidos. Contou-me sobre os camponeses negros de sua região, de sua família, do sul do estado. Sobre seus trabalhos, sobre os cavalos e as competições. Um dia, disse que me daria um presente. Algo para meu cenário. Trouxe-me semanas depois um sovéu. Um laço, mais bruto, para determinados serviços; torcido, não trançado como costumam ser os laços (em espanhol, em algumas regiões, é chamado justamente torzal).

Adorei o presente, agradeci. Expliquei que não o colocaria no cenário, porque não queria desequilibrar, pendendo ao gauchesco, o jogo delicado de referências culturais que procuro dispor ali.

Se meu amigo não se incomodava, então, levaria o sovéu para casa. E se não se ofendia, retribuiria o presente. Dei-lhe uma opção: uma faquinha ou um chapéu. Com a rapidez de quem respondesse as horas, ele disse “chapéu”. Pensei que andaria querendo um e a oferta viera a calhar. Não era bem isso.

“Faquinha já me deu problema, seu Demétrio…” E contou de uma morte que causou, em briga, culpando o oponente, mas também a mania “dos velhos” de que tudo tem que ser na briga e na faca, mania ensinada de pequeno aos mais novos. A cultura, está dito.

Perguntei-lhe se havia sido “lá” ou “aqui” (há muito tempo ele deixara o campo e vivia em Porto Alegre). Respondeu um pouco envergonhado: “um lá e um aqui.” 

Uma morte sempre é uma pena; duas, se somam… e entendi melhor o fardo do apenado. Sabia que o estado possuía convênio para esse tipo de contratação, mas não tinha ideia de que ele pertencia a esse grupo e jamais havia visto a tornozeleira que levava. 

Meu amigo anda com um belo chapéu preto que eu tinha e lhe caiu muito bem. Anda às voltas com o meio rural e, quando pode, os cavalos.

Sim, porque naquele dia em que o procurei, para perguntar-lhe o que achava do relato sobre o domador entrerriano, não o encontrei. Seu colega, em geral inseparável, vinha sozinho no pátio. Mas tinha só alegria na cara, ao dizer-me que nosso amigo estava “livre”. Uma audiência, de resultado inesperado – ele já me dissera que não sabia quanto faltava cumprir – o livrara da pena. Não sei se de forma condicional, provisória… Não conheço esses formatos. Sei que, com isso, perdia o vínculo de trabalho no convênio do estado.

Conversamos depois, várias vezes. Creio que o ajudei em uma decisão sobre um novo trabalho. Ele agradeceu muito por isso, mas sua gentileza não me deixa saber se realmente lhe fui tão útil. Espero que sim, porque sua história, seu conhecimento, seu gauchismo de negro riograndense contemporâneo, compuseram para mim um contraponto precioso ao relato yupanquiano, heroico ou fantasioso, quer na descrição do domador, quer na forma de conceber um duelo crioulo que termina em “desgraça” – como diziam os gaúchos antigos sobre a morte nessas circunstâncias – e leva à prisão o vencedor. Contraponto necessário e inevitável, mas que talvez não cristalize em nenhum de seus pólos, mais do que no oposto, uma esperada “Verdade” sobre um pretendido “Gaúcho”. 

Senti como poucas vezes essa torção tensa (ou essa tensão torcida): entre a criação literária idealizada e o tento cru da vida ríspida que a gente verdadeira, do campo ou de origem campeira, tantas vezes enfrenta. 

O gaúcho reconstruído e estetizado desde o século XIX, que vive nos espaços do discurso e das narrativas… e o povo constante, oriundo dos fundões, vivo nas periferias históricas e contemporâneas do Sul da Terra, sua recíproca influência ou retroalimentação.

Dois ramais, formando uma mesma corda apertada, poderosa e paradoxal, porque dela se lançará mão ora para apresar, ora para libertar. 

 

…………………….

 

O cavalo de Troia é arte, alegoria e engenho – mas suas entranhas são os homens, com seus cheiros, armas, raiva e medo. Transpassam a muralha como uma coisa só.

 


Demétrio Xavier é músico, produtor e apresentador do programa “Cantos do sul da terra”, na FM Cultura e na TVE, tradutor, autor de Cevando a palavra (editora Coragem).

 

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