Conto

Um dia eu vou ler

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Um dia eu vou ler Foto: Pixabay/Pexels

O texto abaixo é um dos contos do manuscrito O livro dos leitores imaginários, protagonizado por Brás Cubas, Dona Benta, Rodrigo e dezenas de outras pessoas inexistentes que leram muita coisa na vida.


Afonso, quem é você? Eu queria tanto saber quem é você. Muito principalmente. Meu nome é Rodrigo, eu tenho seis anos e quero ser escritor (porque quero) quando crescer. Hoje o seu livro bateu na nossa porta. Volta e meia o carteiro deixa uns livros muito imagináveis na nossa porta. Com o carimbo Exemplar do Professor. A capa e o título do livro que você escreveu são os mais imagináveis de todos. O fim é o fim da vida? Ele morre? Ele morre uma morte triste? Quem morre não volta nunca mais? Preciso saber, eu pensei, preciso saber o que aconteceu. Preciso ler. Abri o livro e comecei a ler. Li algumas páginas. Mas a minha cabeça não conseguiu entender nada. Um dia, pensei, um dia eu vou saber o que aconteceu. Um dia eu vou ler tudo e vou saber quem é você, Afonso. Eu ainda não sei que as suas vós foram escravas. Eu ainda não sei que você foi um menino não muito feliz mas muito inteligente. Eu ainda não sei que você beijou o cadáver da sua mãe quando você tinha seis anos. Eu ainda não sei que quando ainda nem passava de um menino você foi acusado não justamente de roubo só por não ser branco e sentiu vontade de se matar. Eu não sei nada. Um dia eu vou saber que você nunca se casou nem teve filhos. Um dia eu vou saber que alguém disse que certa vez você se apaixonou por uma mulher que se apaixonou por você e você pediu a mão dela em casamento mas a família dela não deixou porque você não era branco e depois você nunca mais teve nenhuma namorada. Um dia eu vou saber que o seu pai ficou louco pra sempre quando você tinha 22 anos. Um dia eu vou saber que certa vez você começou a ver um gato gigantesco embaixo da mesa, mas não era um gato de verdade, era um gato da sua cabeça, e o seu irmão internou você num hospício. Um dia eu vou saber que você lutou por muitos anos e perdeu a luta contra uma bebida chamada Para Ti. Eu ainda não li que você queria ser escritor mais do que o mundo, que você foi capaz de largar sua vida pra ser escritor, botar fogo em todas as pontes, perder todos os caminhos. Eu ainda não li que você amava com o maior lugar do seu coração um escritor chamado Dostoiévski. Eu ainda não li que você acreditava no superpoder da literatura de descer no segredo das vidas e das coisas e de curar o sofrimento da dor interminável que a gente sente na vida. Eu ainda não li que você morreu mais pobre do que nasceu. Eu ainda não li que você morreu com 41 anos. Eu ainda não li que você parecia um velho quando morreu jovem. Eu ainda não li que bem pouquinhas pessoas visitaram o seu enterro. Eu ainda não li que você morreu no Dia de São Nunca e foi enterrado no Dia de Finados. Eu ainda não li que o seu caixão foi perseguido por bêbados e crianças no caminho do cemitério. Eu não li nada. Um dia eu vou ler o que você escreveu no fim do seu Triste Fim de Policarpo Quaresma: Policarpo vai morrer, e o que é que ele tinha feito de sua vida? Nada. Um dia eu vou ler a última coisa que você escreveu no seu Clara dos Anjos: que nós não somos nada nesta vida. Um dia eu vou ler que você morreu lendo.


Rodrigo Breunig já traduziu mais de cinquenta livros do inglês e um do francês. É autor do romance A última noite das bicicletas (edição do autor, 2020) e do futuro volume de contos O livro dos leitores imaginários (edição imaginária, ano imaginário).

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