Conto

Tomar o que é nosso

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Tomar o que é nosso Foto: Leonardo Savaris

para Agnes

Em diferentes pavimentos do grande edifício comercial revestido de pele de vidro com película escura, batizado em cartório num aceno caipira terceiro-mundista como W-Tower, sito à rua Alfredo Chaves 1024, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil, três homens e duas mulheres acionam quase simultaneamente, no interior dos respectivos lavabos onde se aliviam, a válvula de descarga dos vasos sanitários. Nesse aleatório recorte, o placar dos dejetos soma quatro a um pra nós: vitória dos líquidos sobre os sólidos. A força da gravidade finaliza a tarefa e por isso deveria ser canonizada, pra baixo todo santo ajuda. Entre o primeiro e o último dos cinco gestos de descarte transcorrem só dois segundos e meio, suficientes ao efeito hidrodinâmico golpe de aríete. O abalo faz um dos tubos de queda de PVC 100 mm sofrer um microdeslocamento lateral, além de dilatar sua seção minimamente, e essas pequenas perturbações desatarraxam por completo o parafuso frouxo de uma das braçadeiras que mantinha o duto em prumo. A rua Alfredo Chaves ainda não foi contemplada com um dos objetivos da prefeitura, o de instalar em toda cidade a rede coletora de esgotos no sistema separador absoluto — canalizações que nos distinguem entre pluviais e servidas, ou, dito de forma menos técnica, tubos que separam a chuva da merda — por isso em alguns minutos as caixas de passagem cravadas no asfalto cuspirão, sem abdicar da solidez que as define, suas tampas metálicas ao alto. Caímos dos céus gaúchos (a guasca indo, diriam os empulhadores, antes da tragédia) e logo nos misturamos aos excrementos dos serranos, partindo rumo a Porto Alegre, 790 metros de desnível, num passeio alucinante que comoverá o país. Filhas do ménage a trois atmosférico realizado entre o aumento da temperatura do Atlântico, a umidade evanescente da floresta tropical Amazônica e o bloqueio da massa de ar quente sobre a região central do país, somos águas cataclísmicas, irritadiças e injustiçadas, afinal nos roubaram imensas superfícies ancestrais, empossadas muito antes do primeiro choro de qualquer mamífero. Naquele período a Terra era uma bola de fogo resfolegante e nós habitávamos as nuvens primitivas, então começamos a cair de pé e nos fizemos deitar em oceanos e rios e lagos, desenhando os contornos do que vocês batizariam Geografia. Se quisermos usar uma discriminação tola, tipicamente humana, foi ali que o animado surgiu do inanimado: as primeiras formas de vida nasceram encharcadas nas poças da sopa primordial, mergulhadas no caldo quente temperado com medo, amônia e aminoácidos. É por isso que nosso tempo é radicalmente distinto do tempo de vocês. O fenômeno do existir excede a capacidade de percepção humana. Os acontecimentos que se derramam, por enquanto, só no alto da montanha, são apenas a parte visível de um hiperobjeto. Puta que pariu: Porto Alegre, plácida e piegas ao piso do mar, não será poupada. Iemanjá, teus filhos são peixes, e quem viu tuas lágrimas de oráculo na beira da praia e não alertou o mundo foi covarde. O som da precipitação incessante soa como música aos nossos ouvidos licorosos, Deixa chover, deixa a chuva molhar, dentro do peito tem um fogo ardendo que nunca, nada, vai apagar, como nunca se apagam os fornos de Galópolis que ardem dissolvendo árvores mortas em fumaça, com seus chaminés cheios de musgo e líquen, os rios regurgitando esterco e plástico, a exibir a espuma branca dos agrotóxicos proibidos na Europa enquanto as cascatas, que um dia encantaram os imigrantes, tremem seus basaltos como as velhas viúvas de bocetas ressequidas, em busca do gozo liquefeito, tremem seus vibradores vítreos de acrílico e EVA. A erosão campeia. Casas encravadas na encosta do vale desmoronam feito prismas de polenta frita. Ruminando versos, o poeta enchedor de páginas exagerou no galeto da noite anterior e o vemos ali sozinho, a amargar uma diarreia. Morre soterrado sentado na privada. Os pés de radicci da nona estão mortos. Porca miseria, berra o nono à janela, e recorre ao escudo anti-tempestades: acende no prato um galhinho de oliveira, abençoado na missa do Domingo de Ramos. Ouvimos choros de placenta rompida, as mesmas águas que afagam são as que afogam, o grotesco e o sublime andam juntos, o líquido amniótico cai lambendo as pernas, não se escolhe a hora de nascer. A cobertura vegetal produzida pela floresta sempre absorveu chuva mas o homem mata e desmata, cada vez mais há menos floresta, então nossa viagem é desimpedida. Mesmo assim não abrimos mão de paradas estratégicas. Deus morreu em São Sebastião do Caí, pra baixo todo santo ajuda, as igrejas são invadidas por nossa horda aquática e lamacenta, os padres perdem batinas, hóstias, camisinhas e remédios abortivos, mas os pastores, singrando em mares de discurso amplificado, na peleia com a morte por eletrocussão, solicitam depósitos financeiros. Por instantes o bote com bombeiros flutua ao lado de manchas aquosas insignificantes, quase invisíveis, compostas por ácidos graxos e partículas sólidas oriundas dos excrementos dos nossos amigos do W-Tower. Todas as águas do mundo um dia se encontram. Nosso tempo, já dissemos, é radicalmente distinto do tempo de vocês. As moléculas de água presentes na urina de Noé na arca, na cicuta de Sócrates no cálice de cerâmica ateniense, no sêmen de Cristo ao fim da Sua primeira masturbação subiram aos céus pretéritos e viajaram milhares de anos, até se condensarem na boca do bebê morto, submerso durante o resgate, quando a mãe não suportou o peso dos gêmeos nos braços e o acaso fez escolha. A cada gole, banho, vômito ou afogamento, a história da morte e da vida na Terra é recontada. Há mais rios subterrâneos do que sonham tuas vãs morfologias. Todas as águas do mundo um dia se encontram numa espécie de Congresso Aquífero Mundial, porém de outro mundo,  porque esse hoje se dissolve: é o fim do mundo, espetáculo colorido por dezenas de caiaques em Canoas, suas silhuetas movediças a rasgar a turbidez hídrica, elipses de madeira ou polietileno meio fálicas, meio vaginais. O bairro Mathias Velho afunda. Cães, gatos, galinhas, lagartos, cavalos, porcos, humanos, humanos-porcos, vacas, ratos e baratas lutam, cada qual a seu modo, contra a invasão. Ratos são excelentes nadadores. Humanos-porcos são excelentes criminosos. A tragédia oferece oportunidades úmidas de sucesso. O habilidoso voluntário domina o jet ski como se a máquina fosse a extensão do seu corpo e, ziguezagueando entre casas que só deixam exibir seus telhados, avista um homem sentado na cumeeira. Se aproxima até o beiral, essa residência tem o pé-direito maior, a cobertura em telha de barro parece flutuar a poucos centímetros acima das águas. O voluntário gira suave o punho no acelerador, a manobra exige cautela. O homem da cumeeira se ergue placidamente. Caminha lento, se agachando como se tivesse dois anos, até se aproximar do voluntário. Trocam frases, gesticulam. O homem da cumeeira, já no beiral, tira algo do bolso de trás do jeans. É um canivete. O artefato se abre mecanicamente a exibir a lâmina luminosa, barbatana metálica cravada em fração de segundo no pescoço do voluntário, que vê sua vida borbulhar em inundamento de sentidos e lembranças, desde a sensação infantil de abandono que o liquidou quando a mãe esqueceu de buscá-lo na saída da escola, passando pelas manifestações carinhosas do cão perdigueiro que costumava acompanhar ele, o pai e os irmãos em caçadas na fronteira com o Uruguai, sem falar na perda da virgindade com a prima no banco de trás do Fusca do Jarrão, a embriaguez na formatura de Direito, os olhos orvalhados da esposa na cerimônia de casamento, alimentando o riacho de rímel que se formaria na bacia da bochecha esquerda; mas agora a totalidade de fenômenos sensoriais se restringe a uma abertura luminosa circular ao longe, como a boia de um navio ladeada por paredes escuras e o som das coisas ao redor vai se esvaindo, nem o homem que o acertou, filho de uma porca, se vê mais, e o sangue do voluntário é só o fluído de um mártir a se imiscuir no imenso volume de matéria composta por dois átomos de hidrogênio enlaçados num de oxigênio; dito assim, a fórmula soa espectral ou inconsistente, o fato é que as águas demonstram a fragilidade de todas as coisas. Chegamos à capital. Nenhum muro de concreto sonha nos conter. Ganhamos o estado. Com o auxílio dos ventos, cósmicos irmãos, gritamos louvores às ruas cheias de detritos, aos bueiros entupidos de entulho e descaso, às casas de bombas hidráulicas queimadas. É a vitória dos líquidos sobre os sólidos. Bauman ficaria orgulhoso. O metabolismo dos lipídios, presente nos fragmentos de bosta e mijo dos nossos amigos do W-Tower, fervilha microscopicamente na escuma que resplandece no Guaíba. Pra baixo todo santo etc. Vamos cantar, invadir, pilhar, tomar o que é nosso. Sobre fétidos escombros que velejam pela avenida Mauá, ao longo de temporalidades radicalmente eternas, consolidamos nossa invejável reputação: a de ser solvente universal.

Fotos: Leonardo Savaris


T.S. Marcon, Tiago Sozo Marcon, nasceu em 1975. É escritor, fotógrafo e arquiteto, formado pela UFRGS em 1999. Em 2015 fez parte da turma de 30 anos da oficina de escrita do professor Assis Brasil. Desde então tem participado de diversas antologias de contos. Como fotógrafo, já recebeu menções honrosas em Bienais. Como escritor, já publicou Deus veste legging (2015), livro de crônicas, e diário da castração (2023), seu primeiro romance, vencedor do prêmio Vivita Cartier 2024. Contatos: [email protected] e @tsmarcon

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