Conto

O bebê na cova da víbora

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O bebê na cova da víbora Foto: Gustavo Mansur/Palacio Piratini

O texto abaixo é um dos contos do manuscrito O livro dos leitores imaginários, protagonizado por Hamlet, Don Quijote, minha vó, minha madrinha e dezenas de outras pessoas inexistentes que leram muita coisa na vida.


Como sempre acontecia quando as duas se reviam, minha vó pediu à minha madrinha que contasse algo sobre os animais que ela tinha tratado e operado nos últimos tempos. Minha madrinha falou sobre certa velhinha que morava na companhia de um vira-lata cor de pedra num chalé miserável em Lajeado e que certa manhã abriu a janela e viu que o chalé estava rodeado por águas impetuosas. Quando a enchente chegou ao teto a velhinha octogenária e o vira-lata pedrês de quinze anos de idade já tinham subido no telhado e aguardavam por um milagre. Entre o chalé e a sacada alta da casa de alvenaria do vizinho as águas rolavam por cima de tudo e sugavam tudo como um rio furioso a poucos metros de uma catarata. Certamente aconteceria uma coisa ou outra: ou o chalé sucumbiria sob os pés da velhinha e do vira-lata ou então as águas iriam superar o nível da chaminé e afogar os dois. Então alguém surgiu na sacada de alvenaria do vizinho e conseguiu jogar a ponta de uma corda no telhado do chalé. A velhinha fez um laço na barriga, deu nó, firmou o laço nas axilas, enrolou no pulso a corda estendida e abraçou o vira-lata pedrês com o braço esquerdo. Tão logo ela pulou na correnteza o vira-lata começou a se debater em desespero. Ela percebeu que não conseguiria chegar à sacada do vizinho segurando a corda com uma só mão. O nó do laço estava se desfazendo. 

“Larga o cachorro!”, gritou o socorrista da defesa civil. 

A velhinha gritou que não. Vamos morrer nós dois, não vou largar de jeito nenhum, ela pensou. Mas poucos segundos depois ela soltou o vira-lata pedrês e segurou a corda com as duas mãos. 

“Ai, não acredito”, minha vó disse.

“O vira-lata pedrês foi encontrado vinte dias depois”, minha madrinha disse. 

“Não acredito. Vivo? Mais morto do que vivo?”

“Faminto, sedento, todo esquelético e cego de um olho, mas muito mais vivo do que morto. Rabo abanando, como se nada de tão grave assim tivesse acontecido.” 

Minha madrinha então contou a história de um conto russo que ela tinha lido dias antes. 

“Eu não consigo tirar essa história da minha cabeça”, disse a minha madrinha. 

Um artesão de setenta anos, decrépito e solitário, era despertado antes do amanhecer pelo frio e pelas dores no corpo. Ele lembrava, depois de rezar, que tinha sonhado naquela noite com uma enchente. 

“E sonhar com enchente”, disse a minha madrinha, “era sinal de infortúnio na cabeça dele.” 

O artesão botava água pra esquentar e constatava que não tinha chá suficiente nem mesmo pra fazer meia xícara.

“Que existência!”, ele reclamava. “Ah, que vida de cão! Que desgraça!” 

Ele saía pro pátio ainda escuro e a decrépita cadela branca com manchas pretas abanava o rabo e dava lambidas na galocha dele. Ele batia o pé no chão e gritava: 

“Besta maldita!” 

Ele olhava para o cavalo decrépito de costelas salientes, um cavalo tão tímido, submisso e carente de atenção quanto a cadela. 

“O que foi?”, ele gritava. “Vossas majestades querem um café da manhã? É pra já! Que tal uma aveia de primeira, uma carne de primeira? Não sou milionário, não tenho nenhuma obrigação de alimentar vocês! Não tenho comida nem mesmo pra mim! Malditos, inúteis!” 

O velho pegava uma vara no chão e enxotava o cavalo e a cadela. 

“Fora da minha casa!” 

Os animais saíam pelo portão e paravam junto à cerca no escuro. Minutos depois o artesão dizia: 

“Por que vocês ainda estão parados aí? Assim vão atrapalhar o trânsito. Voltem então!” 

Os animais voltavam de cabeça baixa, com ar de culpa. 

“Mas de mim não vão ganhar mais nada. Morram de fome, não estou nem aí!” 

O sol nascia no meio das nuvens de outono. No fim da manhã o artesão pedia para um amigo: 

“Você poderia me dar alguns quilos de aveia mais uma vez? É que o cavalo está faminto.” 

O amigo dizia: 

“Posso dar, mas por que você sustenta aqueles dois esqueletos? Você vive numa pobreza de mendigo. Você vive como um animal. O lugar deles é o matadouro.” 

“Não”, dizia o artesão, “eu vou é hoje mesmo ir pedir abrigo no casarão da minha sobrinha-neta. Ela vai me sustentar com toda certeza, não vai se negar. Aí ela pode herdar a minha casinha quando eu morrer de vez!” 

Horas depois, bêbado de vodca, o artesão juntava todas as roupas numa trouxa. Ele deixava o portão do pátio aberto. 

“Na esperança dele” disse a minha madrinha, “os dois animais saberiam se virar sozinhos, poderiam buscar abrigo e alimento em outro lugar.” 

Ele caminhava sem olhar pra trás por mais ou menos um quilômetro e de repente ouvia passos atrás de si. Eram a cadela e o cavalo, com os rabos entre as pernas, quietinhos. 

“Voltem!”, ele gritava. 

Os bichos não voltavam, queriam ir com ele. 

E assim a história terminava: o artesão tomava o rumo do matadouro, os animais iam atrás, e os acontecimentos posteriores ele mal registrava na mente aturdida. Ele retinha na memória que o cavalo era colocado numa plataforma e que logo em seguida ecoavam dois baques, o som da marretada no crânio e o som de um corpo pesado desabando. A cadela, testemunhando a morte do amigo, voava em cima do abatedor com latidos agudos, e um terceiro baque silenciava os latidos abruptamente. O artesão via os dois cadáveres prostrados e subia na plataforma e pedia um golpe mortal na própria cabeça, e depois passava o dia inteiro com os olhos cheios de névoa, sem conseguir ouvir o próprio choro sob uma chuva estrondosa. 

Minha vó falou: 

“Ai, não, não acredito, por que tu contou essa história? Agora eu vou ficar pensando nos pobrezinhos dos bichos por dias e dias.” 

“Exatamente”, disse a minha madrinha. “Eu não consigo parar de pensar nessa história.” 

“Sim”, minha vó disse, “que sofrimento! Que horror! Será que um dia vai acontecer? O lobo vai morar com o cordeiro, e o leopardo vai dormir com o cabrito. O bezerro, o leãozinho e o jovem animal cevado vão andar juntos, conduzidos por uma criancinha. E a vaca vai pastar na companhia da ursa, e as crias delas vão dormir juntas. O que mais mesmo?” 

Minha madrinha falou: 

“O leão vai comer palha que nem o boi.” 

“E o bebê de peito vai brincar na cova da víbora”, disse a minha vó, “e o bebê desmamado vai botar a mão na toca do basilisco.”


Rodrigo Breunig já traduziu mais de cinquenta livros do inglês e um do francês (quase todos pela inestimável L&PM). É autor do romance A última noite das bicicletas (edição do autor, 2020) e do futuro volume de contos O livro dos leitores imaginários (edição imaginária, ano imaginário).

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