A vida como ela realmente é | Crônica

A morte pede carona e um cálice de vinho

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A morte pede carona e um cálice de vinho Foto: Paulo Francis

– Quem nunca na vida se sentiu tentado a responder a um anúncio de “encontre a sua alma gêmea”, levante a mão! Pois eu não apenas me entreguei vilmente à tentação. Respondi. E saí correndo pro abraço.

Os anúncios de gente procurando gente saíam na Folha de São Paulo, todas as quintas-feiras, pedaços de esperança em preto e branco pingando desejos de afeto e ânsias de finais felizes, publicados ali por almas tímidas, cansadas, preguiçosas, solitárias, safadas, curiosas ou, mesmo, até, entediadas.

Um por um, devorei todos os “procura-se” daquele Classline, com atenção e desvelo, quem sabe ali o meu príncipe? O que me cativou não pedia medidas, nem obstava cigarro, desimportava-se de faixa etária, não exigia tardes livres, tampouco demandava religiosidades estranhas, cor de cabelo específica, sequer concluía o anúncio com a odiosa advertência: dispenso celular.

Era um texto leve, espiritual, naif inclusive, permeado de pieguices de almas gêmeas, pôr de sóis, viagens de mãos dadas pela vida. No meio de tanta carne, carne, carne, decidi pelo Romântico de Sampa.

Bem verdade que o achei um pouco velho pra mim: 55 anos, sabe-se lá de que jeito a criatura se cuidou para cruzar os 50? Do alto dos meus 40, imaginei que poderia administrar a diferença, afinal – e lá vinha eu com meu indefectível e arapuquento discurso humanista –, o importante é o interior!

Liguei para a caixa postal que constava do anúncio, deixei o recado: – Olá, vi seu anúncio no Classline, gostaria de conhecer você, por favor, me telefone.

Liguei e fui viver minha vida. No sábado, adivinhe? Romântico de Sampa ao telefone. Boa prosa, voz mansa, ficamos ali de gentilezas mútuas pra lá e pra cá, falando de nossos sonhos, gostos, desgostos e perepepês pra mais de duas horas. Entre eles, o quanto ele gostava de vinho. Ah, eu também! Será que poderíamos tomar um vinhozinho, resgatar o tempo perdido?

(Tempo perdido? Homem, quando separa, é tudo assim: Lázaro recém-ressuscitado.)

Seduzida pela propaganda de seus pretensos dotes culinários, cometi a dolorosa imprudência de aceitar a proposta do Romântico para vir à minha casa cozinhar o almoço de domingo. Sei lá, nem me ocorreu que um homem aparentemente inofensivo como aquele pudesse me fazer mal. E depois, era de dia, solzão fora. Ninguém comete crimes à luz do dia, eu pensava, com minha cabecinha ingênua classe-média cristã interiorana que imagina o pavor dos tempos só depois que o sol se esconde.

No domingo, tomo banho, me visto com discrição, nada de decotes e roupas apertadas, abro um vinho tinto seco, fico ali aguardando Marcílio – esse era o nome dele! De antemão me preparo pra dar-lhe dois amistosos tapas nas costas – Olá, amigo! -, caso não me agradasse de sua figura, atitude que vinha me salvando vida afora, toda vez que eu não queria ferir os brios de algum galante admirador cujo não bolisse com meus hormônios.

Campainha. Abro a porta. Ali mesmo, na soleira, já me saltou na mente, em letras bem garrafais: – Não! não! não! nem morta! nem que fosse o último! E, em seguida, outro estoico pensamento: – A tarde vai ser longa…muito longa…

O homem era um velho. Não tem outra palavra pra dizer. Um velho, credo! Como que um filhodaputa fica velho assim com 55 anos? Deve ter mentido a idade. Eca! Eu que não queria beijar aquela boca de velho, meio tremelico, sabe aqueles que o olho molha por qualquer bobagem? Ai, a tarde ia ser longa, sim.

– Tenho certeza que eu adoraria beijar a sua boca! – foi a primeira frase que o homem falou, olhando pra mim com a doçura de três latas de leite condensado e, ao mesmo tempo, um arzinho generoso de quem me concedia a honra destes dons tão privilegiados: o de eu beijar aquela sua boca que – mal sabia ele! – me repugnava, e o de eu ter atendido com louvor aos anseios da sua exigente libido.

Fiz que não ouvi sua proposta irrecusável, dei um sorriso amarelo e, sem mais delongas, convidei, num falso tom efusivo: – vamos entrando, Marcílio! Tudo bem com você? Achou fácil o caminho?

(Não queria nem dar os tais tapinhas nas costas dele, pra não ter o desgosto de encostar.)

Bem-educada que sou e sabedora de que aquele situação-mico era consequência da minha mais pura inconsequência, tratei de cumprir o meu papel de anfitriã com polidez e sangue-frio. Afinal, o homem não tinha culpa de ser velho! Eu é que era uma louca de me arriscar assim.

Ofereci vinho e acepipes e entabulei com ele uma conversa comprida cheia de ha-ha-has e não me digas. Àquelas alturas, eu faria qualquer coisa pra ampliar meu repertório de entretenimento à visita, desde que ela não chegasse perto de mim. E fiquei ali a beber meu vinhozinho, agarrada à taça de cristal como a um escudo pra manter a recomendável distância de pelo menos dois metros do tal Marcílio.

Foi eu levantar pra pegar não sei o quê na cozinha e ouço um baque surdo de corpo batendo no chão. Rapidamente me viro e dou de cara com o velho caído de costas no piso de cerâmica da sala, os olhos fechados como se estivesse morto, o corpo inerte, só o cálice escapulido de sua mão ainda rodando melancólico em direção ao tapete.

“Homem morre em casa de publicitária”. Eu já via a manchete em todos os jornais do dia seguinte. Um segundo de estupor e corri me abaixar perto de Marcílio, sacudindo seus ombros e gritando: – Marcílio! Marcílio! O que aconteceu, pelo amor de Deus! Levanta, homem! Ai, meu santo, o que eu faço agora?

Marcílio não movia um músculo, não mexia um cílio, o desgraçado! E eu ali, morta de susto. Pálido, transparente, gelado, o corpo dele parecia de chumbo, era um cara corpulento. Tremendo dos pés à cabeça, enfiei meus braços por trás de seus braços e, a duras penas, joguei-o no sofá como se fosse um saco de batata grande demais pras minhas forças.

Ele meio que reagiu, balbuciando coisas ininteligíveis, ainda de olhos fechados. Corri a molhar uma toalha e passar em seu rosto, rezando para aquele pesadelo acabar logo, para aquele homem acordar e sumir da minha vida, meu Deus do céu, eu não sabia nem o sobrenome daquela criatura, quanto mais onde morava, muito menos a quem recorrer, de sua família, se o caso fosse sério mesmo.

Aos poucos, ele foi voltando a si, e quando finalmente ficou dono de novo dos seus sentidos, confessou envergonhado ser proibidíssimo de beber pelos médicos, porque o álcool acionava sei lá o quê em seu organismo e ele desmaiava. Se o filhodaputa não podia beber, por que veio fazê-lo justamente na casa de uma desconhecida?

Agora, eu é que queria matar o homem. De ódio, de raiva, de alívio, de putaqueopariu, que sorte a minha, obrigada, meu Deus!

Ninguém acreditaria, mas ainda tive a pachorra e a delicadeza de esperar Marcílio fazer o tal almoço que havia prometido e insistiu muito, pra se redimir – dizia ele – de ter me exposto a tamanho susto e vexame. Aceitei. Entendi que ele precisava daquele resgate da sua dignidade. Eu não podia chutar o pobre como se fosse um cachorro sarnento. Coitado!

Foi dos mais longos e tenebrosos exercícios de tolerância que já fiz em minha vida. Não tive coragem de botar porta afora aquele homem velho, cambaleante, com pena da sua fragilidade e, também, receio de que batesse o carro dirigindo.

Comemos, conversamos em voz baixa, eu gelada por dentro, Marcílio com aquele olhar de cão surrado. Até que ele se despediu e foi embora, na saída ainda tentando me fazer juras de amor, o sapo.

 

 


Graça Craidy é artista visual. 

 


As opiniões emitidas pela autora não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

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