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Presença de aliados a Melo em áreas alagadas ajuda a explicar vitória do prefeito no primeiro turno

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Presença de aliados a Melo em áreas alagadas ajuda a explicar vitória do prefeito no primeiro turno Humaitá e Vila Farrapos foram das regiões mais afetadas pela enchente de maio | Foto: Maurício Tonetto / Palácio Piratini

“A gente tem muita necessidade do estudo político dentro das comunidades, para defender o nosso direito de não precisar passar por dentro d’água, de não perder as nossas coisas, de sermos respeitados para poder trabalhar”, desabafa a moradora da Vila Liberdade Maria Elise da Rosa, por telefone, perto da meia-noite de quarta-feira (23) , quando finalmente conseguiu tempo para dar retorno à reportagem da Matinal.

Apesar do horário, mantinha uma voz desperta ao falar da sua região, uma das mais afetadas pela enchente de maio. Inundações e alagamentos, aliás, não são algo novo para ela, que mora naquela área, incrustada no bairro Farrapos, há 36 anos. A bem da verdade, cheias são corriqueiras por lá por conta das consequências da chuva. Ela atesta: “Alaga direto”. Por fim, reconhece: “É uma situação que a gente sofre muito”.

Sofrimento é um bom termo para definir o que milhares de moradores dos bairros Farrapos e Humaitá enfrentaram entre o fim de abril e o mês de maio. A água não só subiu muito, como demorou cerca de um mês para ser escoada. Os dois bairros, conforme a prefeitura, tiveram 30.139 pessoas atingidas pela enchente – 17,5 mil no Farrapos e 12,6 mil no Humaitá. Parte de quem saiu dessas vizinhanças precisou chamar a beira da estrada de casa por diversos dias.

Conforme especialistas frisaram à Matinal, o sistema de proteção contra enchentes de Porto Alegre, que, em tese, protegeria a cidade no caso de uma enchente maior do que a que ocorreu, falhou por falta de manutenção, tarefa que fica a cargo da prefeitura de Porto Alegre. O infortúnio vivido em maio, entretanto, não se traduziu em um impulso por mudança entre os moradores da região por meio do voto no primeiro turno

Nas seções eleitorais da região, reinou sobretudo a ausência. A abstenção liderou nos seis locais de votação dos dois bairros. À exceção de um, o número de não votantes superou a média global de Porto Alegre, cujos 31,5% de ausentes fizeram da cidade a capital com maior média de faltantes no primeiro turno. Entre os candidatos, quem venceu de forma isolada em cinco dos seis locais foi o atual prefeito Sebastião Melo (MDB). Em um, na escola Danilo Zaffari, ele empatou com Maria do Rosário (PT) – o local, aliás, foi o único em que os dois empataram entre os 339 locais de votação da capital.

Direita se fez presente no território

O resultado eleitoral da área causou certo espanto na cientista política Adriana Paz, que a partir de uma pesquisa com uma fonte local, identificou um fator supostamente preponderante no resultado: a presença de redes de direita na região, durante a enchente e no período posterior, de reconstrução, quando moradores precisavam de ações imediatas.

De acordo com a pesquisadora, a simples presença no território afetado não chegou a ser decisiva eleitoralmente, mas teve um peso fundamental. Paz chama atenção para o fato de que, entre as pessoas que abordaram sua entrevistada naquele momento, algumas eram candidatas à Câmara Municipal. Apenas uma elegeu-se. No entanto, o discurso disseminou-se: “Estas pessoas estão em rede e trabalham em rede. Fazem parte hoje de um grupo político que está fazendo uma disputa de corações e mentes”, explica.

“A presença deles no território auxiliou a incutir um discurso de que o Melo não tinha culpa, de que isso foi um evento climático”, argumenta a cientista política, salientando que o mesmo discurso vem sendo reiterado pelo prefeito desde a época da enchente e manteve-se durante a campanha. “Foi o discurso difundido por essa rede, de que ele não só não foi culpado pelo evento climático como não tinha como evitá-lo. Da mesma forma, ele também não foi culpado pelo sistema de proteção contra enchentes.”

Medidas de curto prazo pesaram para o voto

Adriana Paz também vê em Melo uma habilidade política para desvincular-se das responsabilidades. Em meio à situação caótica que a cidade enfrentou, não carregou a culpa sozinho: “Ele soube se safar e jogou com essa estratégia de arremesso de responsabilidade”, define. Ao mesmo tempo, a estrutura da prefeitura se fez presente em locais, com medidas mais imediatas, o que pode ter sido decisivo para o eleitor carente. “Existiu uma necessidade de urgência, e algumas coisas que o Lula prometeu são para longo prazo”, compara.

Em sua apuração inicial, a cientista política deparou-se com a perspectiva de que o prefeito estava presente, enquanto “o Lula só deu R$ 5,1 mil”, em referência ao Auxílio Reconstrução destinado pelo governo federal às vítimas da enchente. Isso pesou. “A ciência política fala que o eleitor é racional, ele escolhe com base em determinadas questões que pesam na balança. Ele vê o que vai ganhar com isso e o que deixa de ganhar conforme quem vencer a eleição”, observa.

A impressão que pode ser entendida como generalizada, conforme Paz, é que o governo federal deu os 5,1 mil, enquanto a reconstrução da vida se fazia urgente dentro dos lares, com a necessidade de um fogão ou de uma geladeira novos. Não raro, esses eletrodomésticos vieram por meio de doações – o que dialoga com o bordão “o povo pelo povo” usado logo após a enchente e apropriado por redes de direita.

A enchente não foi a “bala de prata”

Em nível municipal, a cientista política Adriana Paz sublinha que a campanha de Sebastião Melo foi mais eficiente que a dos adversários. E isso também pela comunicação dos oponentes: “Não teve uma estratégia (da esquerda) para além de apontar que houve falha, e no final das contas a enchente não foi a bala de prata da esquerda”, pontua. “Não veio à tona tudo o que Lula fez, as ações do governo federal em prática”, acrescenta, pontuando que o presidente da República esteve no estado em quatro oportunidades a partir do início da enchente.

“Também teve problemas no cadastro do Auxílio Reconstrução, valores que não foram repassados por erros da prefeitura. Isso não foi explorado. Esses erros causaram transtornos à vida das pessoas”, reitera a pesquisadora. “A esquerda não traduziu para o eleitor que o Melo é culpado.”

 

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