Reportagem

Mudança climática dobra a possibilidade de inundações no sul do Brasil

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Mudança climática dobra a possibilidade de inundações no sul do Brasil Pesquisa diz que áreas de baixa renda, assentamentos informais, comunidades indígenas e quilombolas são mais impactadas. Foto: Mauricio Tonetto/Governo estadual

A chuva extrema que atingiu o Rio Grande do Sul entre o final de abril e o começo de maio teve sua probabilidade de ocorrência duplicada pela mudança climática, de acordo com um estudo publicado nesta segunda-feira, a partir de pesquisa realizada por cientistas de cinco países.

O grupo de investigadores de Brasil, Reino Unido, Suécia, Holanda e Estados Unidos analisou dados climáticos para comparar a diferença entre eventos meteorológicos contemporâneos, num planeta que já está 1.2ºC mais quente em relação à era pré-industrial, com atenção às inundações que assolaram – e ainda afetam – o Rio Grande do Sul desde o mês passado.

Ao combinar informações meteorológicas do passado com resultados de modelos climáticos futuros, os pesquisadores estimaram que as mudanças climáticas dobraram a probabilidade de inundações, que são agora de 6 a 9% mais intensas. 

Com o agravamento do aquecimento global, esses eventos devem tornar-se ainda mais frequentes e destrutivos, mesmo quando comparados ao clima atual. Se o mundo continuar queimando combustíveis fósseis e as temperaturas globais aumentarem em 2ºC em relação aos níveis anteriores à industrialização do planeta, espera-se que eventos de chuva no Rio Grande do Sul sejam de 1.3 a 2.7 mais prováveis do que já são hoje – a previsão é que esse patamar seja atingido de 20 a 30 anos, a menos que as emissões sejam rapidamente interrompidas.

Chuvas violentas como as que castigaram o estado são definidas como “extremamente raras”, com ocorrência estimada a cada 100 ou 250 anos, a considerar o clima atual. Sem o efeito da queima de combustíveis fósseis, todavia, seriam mais improváveis.

Para entender a natureza das chuvas extremas que resultaram nas enchentes no Rio Grande do Sul, foram analisadas duas janelas de tempo: acumulados de chuva de quatro dias, entre 29 de abril e 2 de maio, e ao longo de dez dias, de 26 de abril a 5 de maio, em todo o estado. A janela de quatro dias capturou o evento mais severo, o auge das precipitações.

Em algumas regiões gaúchas, sobretudo na faixa central do estado, que compreende os vales, as encostas do planalto, a serra e a região metropolitana de Porto Alegre, os acumulados de chuva ultrapassaram 300 milímetros (mm) em menos de uma semana – na capital, a média para o mês de maio é de 112,4mm, segundo o Inmet. Na cidade serrana de Bento Gonçalves os volumes chegaram a 543,4 mm. Na capital, o volume atingiu 258,6 mm em apenas três dias – volume superior a mais de dois meses de chuva. As estações do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) que registraram mais precipitações entre 26 de abril e 9h de 2 de maio foram Soledade (488,6 mm), Santa Maria (484,8 mm) e Canela (460 mm). Só no dia 1º de maio, uma medição realizada em Santa Maria estabeleceu um recorde ao longo de 24 horas, com 213,6 mm, o maior em 112 anos de observação.

O estudo foi desenvolvido ao longo do mês de maio por uma coalizão de 13 pesquisadores distribuídos entre o Imperial College (Reino Unido), a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o Royal Netherlands Meteorological Institute e o Red Cross Red Crescent Climate Centre (Holanda), e a Universidade de Princeton (Estados Unidos).

Esse grupo, chamado World Weather Attribution, é uma colaboração internacional que analisa e divulga as possibilidades de influência da mudança climática em tempestades, chuvas extremas, ondas de calor e secas. Utilizando métodos revisados por outros cientistas, já produziu mais de 70 pesquisas sobre eventos extremos.

El Niño e falhas de infraestrutura também entram na conta

A pesquisa analisa os dados meteorológicos do Rio Grande do Sul, que está na zona subtropical, em transição entre o clima temperado e o tropical. com umidade constantemente fornecida pelo Oceano Atlântico e pela região Amazônica – por isso não temos estações chuvosas definidas, como outras regiões do planeta. A vigência do El Niño aumentou “significativamente” a probabilidade e a intensidade dessas chuvas, de acordo com o estudo, ao contrário do La Niña, que costuma provocar secas nesta região. 

Ainda que o Rio Grande do Sul seja descrito como uma região “muitas vezes vista como próspera”, diz a pesquisa, o estado tem bolsões relevantes de pobreza e marginalização. Áreas de baixa renda, assentamentos informais, comunidades indígenas e quilombolas foram severamente impactadas. A ausência de grandes cheias nas últimas décadas, excetuando a atual e as do ano passado, é apresentada por cientistas como um fator que levou à redução de investimentos e manutenção do sistema de proteção contra enchentes de Porto Alegre, que começou a ser construído na década de 1970, na esteira de outra enchente, a de 1967, e ainda sob o trauma da cheia de 1941.

As previsões e avisos sobre as enchentes estavam disponíveis quase uma semana antes, mas as informações, conforme o estudo, podem não ter chegado a todos os afetados, ou a população pode não ter sabido quais ações tomar em resposta aos alertas. “É imperativo continuar a melhorar a comunicação de riscos que leve a ações apropriadas e salvadoras de vidas”, alerta a pesquisa.

As leis de proteção ambiental no Brasil, que têm o objetivo de proteger cursos d’água e limitar mudanças no uso do solo, não são consistentemente aplicadas ou fiscalizadas, de acordo com os pesquisadores. Isso leva à ocupação de terras propensas a inundações e, aumenta a exposição de pessoas e infraestrutura aos riscos de enchentes. Apenas Porto Alegre tem 20 mil famílias que residiam em áreas consideradas de risco em 2023, segundo levantamento da prefeitura.

Impactos do uso do solo, no interior e na conurbação porto-alegrense

Segundo a pesquisa, a gestão do uso do solo e da cobertura vegetal no Rio Grande do Sul tem impactado significativamente os riscos de enchentes, no campo e nas áreas urbanas, principalmente devido ao desmatamento impulsionado pela expansão agrícola. De acordo com uma pesquisa do MapBiomas, entre 1985 e 2022 o estado perdeu 22% de sua vegetação nativa de florestas, campos e áreas alagáveis, que passaram a ser áreas de lavoura, principalmente de soja. Essa mudança de vegetação diminuiu a capacidade natural do solo de absorver a chuva.

Os impactos econômicos das enchentes são profundos, especialmente nos setores de agricultura e pecuária, que contribuem com 13% do PIB do estado, e a quebra na produção local de alimentos pode levar a aumentos de preços, especialmente de arroz e laticínios. “Restaurar florestas e seus sistemas radiculares, que retêm água, é crucial para mitigar futuros riscos de enchentes e garantir um uso sustentável do solo”, diz o estudo.

A região metropolitana também é citada, por ser uma área predominantemente de baixa altitude, com urbanização rápida, marcada pela fragmentação e distribuição desigual da infraestrutura, o que forçou a população mais pobre a se estabelecer em locais inadequados, propensos a enchentes, deslizamentos e outros perigos. A mancha urbana da capital, desde os anos 1970, expandiu-se em 46%, com superfícies impermeáveis que impedem a absorção da água. 

Os resultados do estudo indicam que o Rio Grande do Sul enfrentará impactos mais frequentes e severos relacionados a enchentes no futuro, especialmente sem investimentos coerentes com uma nova realidade climática. Investimentos futuros em proteção contra enchentes, dizem os pesquisadores, devem levar em consideração as questões sociais, econômicas e ambientais no planejamento urbano, para criar cidades mais inclusivas e resilientes.

“A devastação causada por tais eventos extremos só pode ser minimizada com adaptação suficiente, incluindo infraestrutura de proteção contra enchentes bem mantida e planejamento urbano apropriado”, resume a professora Regina Rodrigues, da UFSC, uma das participantes do estudo. “Mudanças no uso do solo contribuíram diretamente para as enchentes generalizadas ao eliminar proteções naturais e podem exacerbar as mudanças climáticas ao aumentar as emissões.”


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