Reportagem

Moradores das ilhas de Porto Alegre avaliam danos e limpam casas após mais de um mês desalojados

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Moradores das ilhas de Porto Alegre avaliam danos e limpam casas após mais de um mês desalojados Foto: Natalia Henkin

“Mãe, quantos centímetros de água entrou lá em casa?” Cecília tem apenas cinco anos, mas já passou por duas enchentes graves na Ilha das Flores, onde mora com a  mãe, a cozinheira Eduarda Ribeiro, 30 anos. Quando viu na tevê as imagens de áreas alagadas, fez à mãe a pergunta que muitos adultos se fizeram ao longo dos dias de maio. Eduarda não tinha uma resposta para a filha, só teve ideia do volume de água na casa quando retornaram, depois de 31 dias.

A cheia histórica de maio deste ano afetou 160.210 mil pessoas em Porto Alegre, destruindo 39.422 casas e estabelecimentos comerciais. Ao contrário de outros bairros da capital, que desde de 1941 não vivenciavam uma inundação tão intensa a ponto de deixar moradias submersas, na região das ilhas, muitos moradores, como Eduarda, já estão acostumados com a invasão das águas.

Desde que nasceu, Eduarda vive no bairro, com sua avó, Isabel Ribeiro. A rua do Pescador, próximo à rodovia, por muitos anos, foi moradia e trabalho, onde Isabel administrava um armazém. “Quando eu era criança lembro que muitos vizinhos eram atingidos com as enchentes, que sempre foram uma constante. Como não éramos diretamente atingidas, minha vó fazia sopa, almoço pro pessoal na época”, explica.

Foto: Natalia Henkin

A situação mudou em 2015, quando elas foram afetadas pela primeira vez. Naquele ano, a água avançou e subiu cerca de 30cm de altura no interior do imóvel. “Nessa cheia não perdemos muita coisa, mas ficamos 12 dias fora de casa”, conta Eduarda. Desde então, a família vive em alerta, cuidando a direção do vento e o nível do Guaíba. 

No ano passado, depois de um susto em setembro, quando o pátio da casa chegou a alagar, a enchente de novembro não poupou a casa, onde a água invadiu e destruiu móveis, eletrodomésticos, brinquedos e roupas da criança. “Minha filha não entendeu muito, mas quando retornamos pra casa, ela viu que não tinha mais suas coisas, e logo vieram as perguntas. Expliquei o que acontecia.” 

A cheia de setembro, que tinha se tornado a segunda maior da história, foi superada em dois meses. Em novembro, a Defesa Civil resgatou pelo menos 1,8 mil pessoas das Ilhas. Naquele momento, ainda havia moradores que sequer tinham recebido o auxílio do município pelos estragos de setembro. E então chegou 2024 – e um novo recorde do avanço das águas. 

No final de abril deste ano, Eduarda observou que a água começou a invadir o terreno atrás da sua casa. Rapidamente ergueu os móveis com cavaletes e deixou a residência. Longe do local, Eduarda conta que acompanhou o nível do rio pelos jornais e redes sociais. “Lembro de quando olhei o nível e estava em 4,30 metros. Pensei ‘não sobrou nada, molhou tudo’”. Foi o que aconteceu: a água chegou ao teto da casa, que acabou ficando submersa. De três animais de estimação, sobreviveram dois – incluindo uma gata de 12 anos que passou mais de 30 dias ilhada no local.

“Cada vez que aparece algo na TV, minha filha pergunta: ‘como está nossa casa? E meus brinquedos? Minhas coisas?’ Quando falei que tínhamos perdido tudo, ela ficou quieta. Mas logo conseguimos algumas doações e ela se empolgou”, conta Eduarda. Para a mãe, a menina enfrenta a situação de forma lúdica: “como toda criança, na sua cabecinha o mundo é mágico.”

Os primeiros serão os últimos

No Arquipélago, localizado no lado oposto ao Cais Mauá, a cota de inundação é de 2,10 m – ao passo que no Centro Histórico é de 3,60 m. A população das ilhas foi a primeira a precisar de resgate, ainda no dia 2 de maio, um dia antes do Guaíba atingir um novo recorde, que ainda seria superado no dia 5, quando a água chegou ao pico de 5,35m. 

Os primeiros afetados estão entre os últimos a voltar para a casa em Porto Alegre. Além de ser um dos poucos lugares onde ainda há áreas alagadas, a região ficou sem abastecimento de água potável até o dia 8 de junho. 

Com cerca de 9 mil habitantes, o bairro Arquipélago é formado por quatro ilhas: Ilha do Pavão, da Pintada, das Flores e dos Marinheiros. A Estação de Tratamento de Água (ETA) que abastece a região foi religada depois de 37 dias. Segundo a assessoria do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), a demora no serviço se deu pelos danos causados pelo avanço da água, assim como pela falta de energia elétrica na região. Segundo o Dmae, o conserto só pôde ser iniciado após a baixa do Guaíba no local, que ocorreu na semana anterior ao religamento. À Matinal, a CEEE Equatorial não soube responder quanto tempo os moradores das ilhas ficaram sem abastecimento de luz. 

Faxina e solidariedade

“Anos pra botar pra dentro, só alguns dias pra tirar”, diz um morador da Ilha da Pintada, enquanto carrega sacos pesados com os pertences que foram estragados pela água que adentrou sua residência. A cena em frente à casa se repete bairro afora: junto aos resíduos acumulados na calçada, a nova paisagem do bairro tem lama, areia, entulho e água. 

Também passou a ser comum o mesmo traje que já se via em outras partes da capital: galochas sujas de barro e luvas. Os que estão mais equipados usam ainda grandes macacões que evitam que a sujeira entre em contato com a pele. No interior das casas – ou do que restou delas – centenas trabalham na limpeza dos imóveis que ficaram semanas inundados. 

Logo depois que a água começou a baixar, no dia 3 de junho, o comerciante Filipe Araújo apressou-se para fazer a limpeza da lancheria que administra ao lado do pai – não para retomar a venda de lanches, mas sim para fazer marmitas para os moradores da região. “Começamos a limpeza para deixar o lugar habitável e desde sábado estamos fazendo marmitas, num dia saíram quase mil. Vem o pessoal, faz a fila e nós entregamos. Hoje queremos aprontar umas 1.500”, conta o morador. 

Filipe e seu pai transformaram a lancheria da família em cozinha solidária. Foto: Natalia Henkin

Filipe e seus pais saíram da casa em que moram na entrada da ilha ainda no dia 2 de maio, e desde os primeiros dias estão abrigados no segundo andar de uma escola localizada ao lado da lancheria. Somente na última semana, Filipe e sua família conseguiram entrar na residência, onde a lama e a areia impediam o acesso ao local. A ideia é que nos próximos dias eles consigam fazer a limpeza da casa. 

“Perdemos tudo. A única coisa que tô fazendo desde o começo é salvar gente. Depois de manter as pessoas vivas, agora elas estão limpando, e nós damos comida, uma comida quente no momento certo. Comer e limpar as casas. Eu vou até onde eu ver que tudo está limpo”, desabafa Filipe. 

O comerciante conta que muitas pessoas da Ilha da Pintada não quiseram deixar a região e que, durante a cheia, ficaram em casas com mais de um andar – onde a água não alcançava –, além de embarcações de passeio dos próprios moradores, que abrigavam dezenas de pessoas na margem do rio Jacuí.

Enquanto a reportagem conversava com Filipe, ele não parou de responder os moradores que passavam em frente ao empreendimento, que cheirava a galeto assado – algumas pessoas perguntando se ele precisava de insumo para as marmitas, outras querendo saber que horas poderiam buscar uma refeição. 

O frequente avanço da água nos últimos anos despertou o senso de comunidade em muitos moradores da região. Mas a enchente de maio de 2024 não teve precedentes. “Nunca vi algo igual. Mas o pessoal daqui se vira, entra para dentro de casa e limpa”, conta Filipe.

“Esse guri aí ajudou muita gente”, diz a dona de casa Noraci Alcântara, moradora da ilha com 73 anos, ao se aproximar e abraçar Filipe. Residente da avenida Presidente Vargas, a poucos metros da lancheria, Noraci carrega um detergente que comprou para lavar utensílios de cozinha cobertos de lama. 

Com os olhos marejados, ela conta que já passou por várias enchentes, assim como a maioria dos seus vizinhos, mas essa foi a primeira vez que a água entrou na casa. Noraci mora com o filho e vive da pensão deixada pelo marido, morto por complicações da covid-19. Para acessar a residência, é preciso passar por um terreno esburacado, que a força da água levantou. 

Residência de Noraci ficou de baixo d’água por mais de 30 dias. Foto: Natalia Henkin

“Tu quer ver o que a enchente fez dentro da minha casa? Olha o meu assoalho”, aponta Noraci ao passar pelo batente da porta tombada. As tábuas de madeira levantadas do piso e inchadas indicam que a água permaneceu ali por bastante tempo – somente no dia 8 de junho ela pode dormir em casa, em um colchão que ganhou de doação. “A gente saiu de casa com água pelo pescoço, o vizinho que me ajudou.” 

Fotos: Natalia Henkin

Na casa, mobília e pertences exibem agora a cor amarronzada da água lamacenta que chegou ali. As pilhas de roupas, panelas e eletrodomésticos estão entre os itens que Noraci e o filho tentam recuperar. No pátio, a pia da cozinha foi parar sobre o telhado de uma estrutura auxiliar mais baixa. Noraci conta que, com a porta caída, muitos itens saíram quintal afora. “Para quem tinha tudo, se ver sem nada é muito triste”, lamenta. Assim como outros moradores, Noraci agora começa a fase de limpeza e logo espera conseguir comprar novos móveis para retomar a vida no local. 

Abrigo improvisado em barracas

Bancos de areia tomaram conta de ruas na Ilha da Pintada. Foto: Natalia Henkin

Na rua Nossa Sra. da Boa Viagem, mais próximo à margem no rio, o cenário de destruição é diferente. Com quase 2 metros de altura, as dunas de areia invadem as ruas e tomam conta dos pátios das residências, que dividem a calçada com barcos, muitos soterrados no local. 

Com 54 anos, o pescador Carlos Miguel Ferreira é um dos moradores que ficou desabrigado, mas preferiu não deixar a região. “Cresci ouvindo meu avô falando que em 1941 andavam de caiaque na rua dos Andradas em Porto Alegre e eu dava risada”, conta Carlos, que saiu de casa na primeira semana de maio e se abrigou com outros moradores em uma praça mais alta na ilha. 

Depois que a água baixou ele montou uma barraca na margem do rio, em cima de um banco de areia. “Eu saí da minha casa com água pelo peito, tentei tirar algumas coisas, TV e ventilador, e enquanto eu levava para uma casa de dois pisos por aqui, a água já tinha subido muito, tive que entrar de volta nadando, me segurando nas coisas”, relata. 

Foto: Natalia Henkin

Segundo o pescador, das cinco cheias que já passou na vida, foi afetado pelas últimas duas, no ano passado, quando conseguiu salvar alguns itens da casa, mas dessa vez ele perdeu a maioria dos seus pertences. Com os filhos fora da cidade, Carlos mora sozinho na casa de alvenaria que acabou sendo desmanchada e tomada pela areia. 

Moradora da Ilha das Flores, Sandra está abrigada em um acampamento na beira da estrada. Foto: Natalia Henkin

Manter-se perto de casa foi a escolha da dona de casa Sandra Janara Ludwig. Ela deixou sua residência na Ilha das Flores em 1° de maio. Acompanhada do marido e do filho, Sandra vive há mais de 40 dias em uma estrutura na beira da rodovia Oswaldo Aranha. Hoje, o espaço acolhe a vizinhança e é ponto de recebimento de doações para desabrigados e desalojados. 

Vivendo em uma estrutura coberta por grandes lonas, ao lado dos carros que passam em alta velocidade na estrada, Sandra gerencia o local, que acomoda outros 20 moradores e abastece várias famílias da ilha. 

Nos primeiros dias da enchente, Sandra não procurou abrigo em outras regiões de Porto Alegre porque não tinha onde deixar seus animais, uma vaca e um boi. “Até que nosso amigo do piquete Mena Quevedo, do qual participamos no Harmonia em Porto Alegre, conseguiu levar os bichos para Viamão. Nisso, o acampamento já tinha virado uma base para ajudar as pessoas”, conta.

No local, as doações chegam com frequência, tudo funciona a partir de mantimentos doados, desde comida até gasolina para o gerador emprestado que vem sendo utilizado para fornecer luz para o acampamento. Na Ilha das Flores, no domingo (9), a água ainda saía fraca pelas torneiras. 

“Assim que der, a gente vai voltar [para casa]. No momento eu tenho que ficar aqui porque tem gente mais afetada que eu que ainda não conseguiu tirar o barro de casa”, relata Sandra, que tem fortes dores no joelho e precisa usar muletas para locomoção. Segundo a moradora, muitas pessoas da região ainda têm água dentro de casa e, por isso, não conseguem se livrar do lodo e da lama.

Um lugar no paraíso 

O conselheiro tutelar Átila Silveira é um dos moradores da Ilha da Pintada que atuou em resgates durante o mês de maio e segue auxiliando a comunidade com doações e movimentos para viabilizar itens de limpeza. Presidente do Bloco Acadêmicos do Mauá e integrante de projetos sociais da região, Átila já era conhecido na região, mas depois do início da tragédia, recebeu ainda mais atenção quando passou a gravar vídeos e lives sobre a situação da ilha. 

Em vídeo recente publicado no Instagram, o conselheiro comenta sobre a instalação do ponto avançado da prefeitura, anunciado após visita do prefeito Sebastião Melo na última sexta-feira (7). “Chamam a gente de herói no Instagram, mas na realidade a gente está sendo tratado como nada”, afirma Átila ao relembrar uma publicação da prefeitura sobre o tema. “Esse lance pegou muito aqui dentro porque quando a gestão nos chama de herói é revoltante, coloca cada vez mais a responsabilidade na gente.”

Átila explica que os próprios moradores se organizam para se prevenir de serem atingidos pela água – seja levantando os móveis com cavaletes ou levando carros e pertences para pontos mais altos. Com a casa afetada pela água, a família de Átila saiu da região, permanecendo abrigada em casas de familiares no bairro Jardim Lindóia.

Foto: Natalia Henkin

“Quando me perguntam porque eu ainda moro aqui, eu digo que é porque o Plano Diretor diz que eu posso morar”, afirma. Sua fala faz lembrar a declaração dada pelo prefeito ao Jornal Nacional no dia 11 de maio, quando Melo disse que as pessoas atingidas pela enchente não deveriam morar onde moram.

Para Átila, apesar das cheias, o custo de vida relacionado ao padrão que os moradores têm na região é menor do que se elas morassem em outros pontos da capital. “As Ilhas são um lugar muito bom de se morar. Isso aqui, quando está normal, é um paraíso. Como já estamos acostumados a viver assim, a areia na rua não vai ser problema, e as casas, a gente vai ajeitando.”

Foto: Natalia Henkin

Eduarda, a mãe da menina Cecília que abre esta reportagem, também sempre valorizou a qualidade de vida nas ilhas. “Minha avó aposentada tinha uma vida tranquila, uma horta onde plantava hortaliças, frutas e verduras. A vida lá é calma e tranquila. Criar uma criança livre que pode brincar além dos muros e grades. Estávamos lá por esses motivos”, afirma a cozinheira, que segue abrigada com a filha e a avó na casa de parentes na Medianeira. Mas, depois de ver a água entrar na casa da família três vezes – duas em seis meses –, o trio ainda não sabe se voltará a morar no Arquipélago. “A ilha tem muitas coisas boas, mas ultimamente tem sido mais momentos tristes. Só resta a esperança de dias melhores.”



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