Sem Bike Poa, cerca de 450 entregadores têm renda prejudicada em Porto Alegre
A paralisação do Bike Poa há mais de 50 dias, por conta da enchente, não afeta apenas entusiastas do ciclismo em Porto Alegre. Centenas de pessoas dependem do único serviço de bicicletas compartilhadas na cidade para garantir parte do sustento. Estimativa do Sindimoto-RS aponta que há cerca de 450 trabalhadores nessa condição.
O número exato de entregadores prejudicados é desconhecido. Não há dados centralizados pelo poder público, e as plataformas não informam a quantidade exata, além de parte delas considerarem os trabalhadores meros usuários do serviço. A situação é criticada por advogados trabalhistas, que apontam enfraquecimento de direitos em nome de uma majoração de lucros por parte das empresas.
O Bike Poa está fora do ar desde 3 de maio, pouco antes do pico registrado pelo Guaíba. Como a Matinal mostrou, ainda não há previsão para a retomada do serviço, em função de problemas logísticos enfrentados pela Tembici, que administra o sistema, cujo galpão de operações foi inundado.
O advogado do Sindimoto-RS, Felipe Carmona, explica que, em geral, os entregadores que usam bicicletas estão em situação de maior vulnerabilidade social do que os que utilizam outros veículos. “Mais de dois terços são trabalhadores de até 21 anos, que ainda não são habilitados (para dirigir carro ou moto) e de origem bem humilde”, descreveu o advogado, citando que os bikeboys, como são chamados, recebem menos por seu trabalho do que quem utiliza moto para a mesma função e trajeto.
Sem o serviço de bicicletas compartilhadas, uma opção seria comprar a própria bike. No entanto, a compra não está ao alcance econômico da maioria dos entregadores, segundo o advogado, que citou também o receio deles em investirem em um bem próprio para trabalhar no trânsito.
O sindicato estima que 450 entregadores de bicicleta foram afetados pela paralisação do compartilhamento das bikes. A maioria deles concentra seu trabalho na região central de Porto Alegre, onde fica um ponto de apoio da Tembici em parceria com o iFood com planos específicos para este grupo, como aluguel de bikes elétricas e estruturas como banheiro e descanso. Nem todos, contudo, são usuários desta modalidade. Parte dos entregadores utiliza as laranjinhas, destinada ao compartilhamento com o público em geral do Bike Poa.
“Alijadas de qualquer proteção”
Para o advogado Jefferson Alves, especialista em relações de trabalho pela UFRGS, o tratamento de trabalhadores como usuários fragiliza a categoria: “Por conta desse entendimento, de que não há relação de emprego, essas pessoas estão simplesmente alijadas de qualquer proteção que a legislação traz para as relações de emprego, sejam elas pela CLT ou por um futuro reconhecimento de relação de emprego”..
Segundo Alves, em face à situação de calamidade pública de Porto Alegre, que vai durar até o início de novembro –, os entregadores deveriam ser acolhidos por algum tipo de auxílio trabalhista. “A precariedade do entregador é tão grande que ele não tem cobertura nenhuma”, comentou. “São pessoas que não estão protegidas nem pelo direito do trabalho, nem pelo direito civil”, acrescentou. “Foram convencidas que não são trabalhadores, e sim empreendedores.”
Carmona, do Sindimoto, respalda a opinião: “Neste caso, eles não conseguem desenvolver as suas atividades. Em tese, todos são afetados na sua subsistência, e não existe nenhum direito a esses trabalhadores, porque se ele não trabalhar, não recebe”, observou. “É o sonho de todo o empresário. Ele não tem responsabilidade social nenhuma, porque se essa pessoa se machucar, ficar doente ou (ocorrer) uma questão de calamidade, como agora, esses trabalhadores acabam ficando por conta”, ilustrou. “O risco do empreendimento deve ser suportado pelo empregador. Mas, neste caso, é transferido ao trabalhador.”
Alves ainda pontua que a falta de transparência pode ocasionar não apenas a ausência de acolhimento direta, mas também atrapalhar a criação de uma futura assistência: “Há um apagão de dados. Só as empresas detêm esse conhecimento. Elas alegam questões de mercado e simplesmente não informam”, sinalizou. “O governo fica sem informações importantíssimas. E no momento que tu tens essa população precarizada, fica difícil até de fazer políticas públicas para eles.”
Em meio à crise, iFood deu auxílio a entregadores
Em meio ao cenário da adversidade climática, nem todos os bikeboys foram atingidos da mesma maneira. Por iniciativa do iFood, 138 entregadores que usam bicicleta foram contemplados com repasses emergenciais proporcionados pela plataforma. Segundo a empresa, cada repasse foi calculado com base na média de ganhos do profissional em abril, com pagamento mínimo de R$ 100.
Ao todo, 292 entregadores – entre ciclistas e motociclistas – seguirão recebendo um auxílio de R$ 500 por três meses da plataforma. A seleção da maioria do grupo foi feita pelo próprio iFood. O Sindimoto informou ter, posteriormente ao início dos pagamentos, solicitado ajuda a mais 44 trabalhadores que haviam procurado o sindicato e que foram atendidos pela plataforma logo depois.
O iFood informou à Matinal que, além de cupons de desconto em lojas às quais os trabalhadores estão vinculados, também forneceu atendimentos psicológico e social, entre outras ações. “Foi algo espontâneo deles”, elogiou o advogado Felipe Carmona.
Sem revelar os dados exatos de trabalhadores afetados, o iFood disse que, na primeira semana de maio, um terço de seus entregadores, entre motociclistas e ciclistas, não tinha se conectado ao app. Em junho, o índice de perfis ativos voltou a subir, porém, até esta semana, 12% dos entregadores seguiam desconectados do app desde 2 de maio, apesar de o índice de pedidos já ter voltado a crescer.
Ao longo dos piores momentos da enchente, iFood e Tembici mantiveram suas entregas por meio do aluguel de bicicletas elétricas – que, segundo o grupo, foi gratuito ao longo de maio, mês em que a maioria dos bares e restaurantes de Porto Alegre informava grandes dificuldades por conta da enchente, tanto por conta da queda de movimento, quanto pela falta de insumos, quando não foram os próprios estabelecimentos atingidos, segundo a seção gaúcha da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel).
TRT é acionado para mediação
Em que pese as ações do iFood, o diálogo do Sindimoto com as plataformas de entregas costuma ser complicado, conforme o advogado do Sindimoto, Felipe Carmona. Segundo ele, há pouca disposição de ajudar os entregadores. Em busca de mais diálogo, uma audiência de mediação foi protocolada no Tribunal Regional do Trabalho. A reunião foi marcada para 24 de julho, segundo o sindicato, com representantes das plataformas iFood, Zé Delivery, 99, Uber e Rappi.
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