Centro para autistas aberto por Melo não recebe novos pacientes há mais de um ano
Criado pela prefeitura, o Centro de Referência do Transtorno Autista (Certa) abriu as portas em maio de 2023, na zona leste de Porto Alegre. Poucos meses depois, no entanto, parou de receber novos pacientes.
Segundo dados da prefeitura, o Certa atende hoje 270 crianças até 12 anos. Elas foram direcionadas ao atendimento no serviço, pois já estavam na fila do Sistema de Regulação de Consultas Especializadas (Gercon) da prefeitura. Com a capacidade ao limite, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) encerrou a fila de espera do Certa. Ou seja, as equipes de atenção básica especializadas em saúde da criança e do adolescente não podem direcionar novos pacientes ao Certa nem incluí-los em uma lista de espera.
O congelamento da lista de espera gerou um apagão sobre o tamanho da demanda por atendimento especializado para autismo em Porto Alegre. Segundo o painel do Gercon, havia 734 crianças à espera por atendimento no Certa em agosto de 2023 (considerando também a lista de pessoas de fora de Porto Alegre, são 738). Desde então, não houve inclusão de novos pacientes na lista de espera do serviço.
Conforme o Conselho Municipal de Saúde (CMS), o número não corresponde à realidade, porque os profissionais da rede de saúde não podem mais cadastrar novos pacientes na fila do centro, que aparece “zerada” no Gercon nos últimos meses. “Não tinha como (o Certa) dar conta da demanda, pois o número de crianças é muito grande. Temos muitas famílias aguardando dois, três anos na fila do Gercon”, diz Nara Pinheiro, presidente da Associação de Familiares e Amigos das Pessoas com Autismo (Afapa). “A situação é muito séria”.
O Certa é gerido pela Associação Hospitalar Vila Nova (AHVN), alvo de uma investigação no Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS) e da Polícia Federal por irregularidades na prestação de contas. O serviço, localizado na Avenida Bento Gonçalves, foi inaugurado após a cúpula da prefeitura tomar conhecimento do rombo nas contas da parceria do Hospital da Restinga com a AHVN em uma reunião na SMS em 4 de janeiro de 2023.
Melo citou a abertura do Certa como um de seus feitos na propaganda eleitoral, mas não mencionou que o serviço está de portas fechadas. Também inflou o número de pacientes em “mais de 300 crianças autistas”.
Propaganda de Melo destaca o Certa sem dizer que ele não recebe novos pacientes
Serviço não tem regulação específica
Outro problema apontado pelo CMS é a falta de regulamentação específica do Certa, um serviço especializado que até então não existia no SUS da capital. Segundo o conselho, a prefeitura criou o Certa, direcionou crianças que estavam na fila de espera e fechou as portas meses depois, sem dar explicações. Não houve definição, por meio de portarias, sobre como seria o novo fluxo de atendimento ou quais seriam os casos prioritários a serem encaminhados ao Certa.
Como se trata de um novo serviço, faltou integrá-lo ao sistema de saúde. Conforme o CMS, o Certa não se encaixa hoje em nenhuma das redes temáticas existentes, como a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) ou na Rede de Atenção à Saúde da Pessoa com Deficiência.
Essa falta de integração dificulta o encaminhamento correto dos pacientes. Segundo o conselho, o serviço está num limbo administrativo e sem efetividade para reduzir as enormes filas de saúde mental. “O Certa foi uma grande esperança para as famílias com filhos autistas, e o seu fechamento ceifa essa esperança. Essa espera por atendimento priva crianças de frequentarem a escola, mães de voltarem ao trabalho, é mortífera”, diz a jornalista e ativista Débora Saueressig, mãe de Benjamin, de 6 anos. “Sem um laudo com o diagnóstico é como se os autistas não existissem”. O Certa faz avaliações diagnósticas em crianças até 12 anos e conta com uma equipe multidisciplinar para oferecer atendimento especializado a esse público. O objetivo é reintegrar a criança no ambiente escolar.
Por meio do seu perfil no Instagram, a jornalista formou uma rede de acolhimento de famílias em busca de um diagnóstico e acolhimento. E chama atenção para a incidência crescente do transtorno do espectro autista (TEA). Dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC, na sigla em inglês) mostra que uma a cada 36 crianças tem o transtorno. “É uma demanda que não para de crescer. A prefeitura achou que ia resolver o problema de uma cidade com 1,5 milhão de habitantes com um só centro especializado?”, questiona.
Sem respostas
O Conselho Municipal de Saúde fez perguntas à Secretaria Municipal de Saúde (SMS) sobre os motivos do fechamento do serviço e congelamento da fila de espera do Certa. Não obteve retorno. A Matinal fez as mesmas perguntas, além de questionar se a prefeitura havia dimensionado a demanda antes da criação do serviço.
Mais uma vez, a assessoria de imprensa recomendou que as informações fossem pedidas via Lei de Acesso à Informação (LAI), cujo prazo de retorno é de, no mínimo, 20 dias. Informamos a SMS que contrapontos não são objeto da LAI. Não houve resposta.