Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

Ninguém poderia imaginar

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Ninguém poderia imaginar Foto: Glenn Carstens-Peters/Unsplash

Dia desses eu me meti num debate despropositado. Li um comentário um pouco equivocado num post que divulgava uma das minhas colunas, na conta do Instagram da Matinal, e resolvi argumentar. Ao meu ver, o leitor não tinha entendido o meu ponto de vista. E, pensando agora, talvez não tivesse nem lido a coluna, bem ao estilo comentarista de portal: leu a chamada e saiu opinando. Mas não sei, não posso aferir.

Era sábado à noite, eu estava em casa, sã e salva dos perigos noturnos, já de pijama e banho tomado, mas ainda em frente ao computador colocando (ou tentando colocar) em dia a leitura das 6116544 newsletters que assino. Já ele, não sei o que fazia num post da Matinal àquela hora de um sábado. E depois pensei que não se deve entrar em debates de portal num sábado à noite. A pessoa pode estar entediada, bêbada, sei lá. Enfim, mais uma coisa que não posso aferir.

Sem mais delongas, o ponto era o seguinte: eu questionava no meu texto a frase “ninguém poderia imaginar” que a cobertura midiática insistia em usar para expressar espanto diante da grande enchente que destruiu o Rio Grande do Sul em maio; já meu antagonista defendia que realmente ninguém poderia imaginar, pois nenhuma previsão dava conta. Ele citou sua titulação acadêmica na área de Ciências Ambientais para dizer que tudo que aconteceu foi muito mais surpreendente do que as piores previsões e que apontar culpados naquele momento era uma estratégia desonesta de uma esquerda oportunista, interessada em politicagem. As palavras eram essas, bem específicas.

Minha primeira resposta a isso foi: “Você leu a coluna? Eu estava falando de literatura”. 

*

embora eu não saiba nada

“desse rio que sobe
para lavar a terra a pedra molhar
a selva a boca seca que enche
as cachoeiras em que
amanhã brincamos. de cima
do morro todos nós olhando
com o coração na mão essa cena
pensando a natureza é bela que exuberante
a natureza e é por isso que olhamos
com a boca aberta mas também porque não
fomos nós que a começamos
portanto não somos nós que
podemos pará-la, a coisa não é
nossa para a gente dizer chega
podemos apenas planejar melhor
o lugar de construir nossas casas
nas alturas mais seguras pensar
escoamentos engenharias
sair correndo na hora h
é o que imaginamos olhando
em silêncio a coisa acontecer
de cima do morro uma de nós
está tocando flauta outro está
apavorado outra está fazendo
cálculos, tenta relembrar da escola
a fórmula de bhaskara
enquanto a quarta inventa
na cabeça a música que vai fazer
a água subir e descer mais
devagar se for preciso enfim
é assim que vou dizendo
para mim sobre esse rio que transborda
os meus conhecimentos
mas ainda assim sei
que não é uma pessoa que dá conta
de saber o que fazer por todas
e com um rio, talvez fosse preciso
mudar tudo
embora eu não saiba nada, sei isso
talvez fosse preciso algo muito
além dos jeitos de navegar os leitos as margens
nascentes desembocaduras
águas muito fundas
e não adiantava
não adianta
inventar sozinho nada
na natureza
ou com as pessoas
de cima do morro torcíamos
no atropelo entre sorte e infortúnio
que houvesse chance que talvez
houvesse gente
experimentada na única tecnologia
em que a gente confiava
tomara

[poema do livro Fotos ruins muito boas, de Moema Vilela, publicado em 2022, muito antes da enchente de maio de 2024]

*

Eu estava falando de literatura. Ele ignorou esse ponto e seguiu falando de suas leituras na área ambiental. Eu resolvi, então, entrar no ponto dele e argumentei que epistemologias não são neutras e que a gente certamente andava lendo coisas diferentes. Posso ter soado irônica, mas eu queria dizer que estávamos falando de linguagens diversas. Ele falava de dados; eu, de imaginação.

Ele seguiu dizendo que a esquerda não estava atuando de maneira isenta no debate e que acusava falhas nas administrações de direita de forma oportunista, pois se estivessem no poder, segundo ele, teriam cometido as mesmas falhas. Estranhei, pois a postura científica de antes se dissipou e se abriu ali um Grand Canyon para achismos. E o argumento não tem pé nem cabeça: se existe um espectro político-ideológico, com direta de um lado, esquerda do outro e inúmeras nuances no meio, é porque não existe isenção. E que bom!

Eu resolvi atalhar esse debate chatérrimo (sábado à noite, sabe…) e perguntei: a quem serve esse discurso que desacredita a política e joga direita e esquerda no mesmo balaio? Pois foi isso que nos jogou no buraco em 2018 e nos fez passar um aperto danado em 2022. 

*

por que não te respondi?

“primeiro que estávamos há três dias sem beber água

o gás acabou enquanto eu assava a última batata

um navio de proporções monstruosas encalhou nas horas mortas do dia

até as placas tectônicas estavam cansadas

uma porcentagem considerável de pessoas elegeu a desistência o seu
método e o desespero o seu profeta

era um milagre que alguém desse à luz quando havia algo de tão errado
com as calotas polares

no mesmo dia fez 57 graus no inverno e eu recortei uma manchete do
vice-governador do Texas dizendo que havia coisas mais importantes
do que viver

coisas mais importantes do que viver viraram moda no discurso oficial”

[Fotos ruins muito boas (2022), de Moema Vilela]

*

Falar de eleições era a deixa que faltava: ele cuspiu que não sabia por que tinha começado aquela conversa (!), já que eu sou o tipo que “só pensa em eleições” e que “enxerga tudo como política”. 

Olha, dizer isso de mim é a mesma coisa que me chamar de sapatão: 1) é verdade e 2) não me ofende.

Se você é uma ativista cansada, como eu, deve se perguntar o que diabos eu esperava de um debate com comentarista de portal num sábado à noite. Mas em minha defesa, vou dizer o seguinte: eu conheço a pessoa, achei que valia a pena. E se você é leitora da Matinal, talvez conheça também, pois já li alguns textos de sua autoria por aqui. Pois bem, as pessoas são complexas.

*

“Uma doença fatal assola o Brasil e o transforma em uma terra pós-apocalíptica: sem governo, sem leis e sem esperanças. Os sobreviventes tentam cruzar o país em busca de um porto seguro.”

Essa é a sinopse curta do livro Corpos secos, uma história imaginada não por um, mas por quatro autores: Luisa Geisler, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado

Primeiro, o uso de novos agrotóxicos sem os devidos testes. Depois, a reação inesperada com as larvas que eles deveriam dizimar. Não se sabe quem foi o primeiro infectado, apenas que o surto começou no Mato Grosso do Sul. Os chamados “corpos secos” são espectros humanos que não possuem mais atividade cerebral, mas seus corpos ainda funcionam e anseiam por sangue.

Seis meses depois, há poucos sobreviventes. Um jovem aparentemente imune à doença está sendo estudado por uma equipe médica e precisa ser protegido a qualquer custo; uma dona de casa vive em uma fazenda no interior do Brasil e se encontra sozinha precisando reagir para sair de seu isolamento; uma criança vê a mãe tentar de tudo para salvar a família e fugir do contágio; uma engenheira de alimentos percebe que seus conhecimentos técnicos talvez não sejam suficientes para explicar o terror que assola o país. Juntos, eles vão narrar suas jornadas, em busca do último refúgio ao sul do país. Corpos secos não é só um thriller, nem um romance-catástrofe, mas uma narrativa sobre os limites da maldade humana, e as chances de redenção em meio ao caos.

Qualquer um que tenha vivido os anos da pandemia de Covid-19, sobretudo no Brasil, onde tínhamos Jair Bolsonaro como chefe da nação, lê isso e se espanta com a precisão do tema. Mas o livro saiu no início de 2020, o que significa que já estava escrito antes.

E houve quem dissesse que ninguém poderia imaginar.

*

Samir Machado de Machado escreveu uma série de livros: histórias de capa e espada e fabulações de época amparadas em ampla pesquisa histórica. Quando vou apresentar qualquer um deles, começo pelo que todos têm em comum: há sempre um herói homossexual, um vilão homofóbico e é proibido matar LGBTs.

O livro Homens elegantes foi publicado em 2016, mas se passa em 1760. O soldado Érico Borges (isso mesmo que você pensou) é enviado a Londres para investigar uma rede de contrabando de livros eróticos para o Brasil. Na capital inglesa, enquanto se deleita com prazeres proibidos em seu país natal, nosso herói acaba por cruzar o caminho de Reinaldo Olavo de Gavíria y Azevedo (Samir gosta mesmo de misturar tudo, não é mera coincidência), o líder de uma rede de espionagem e grande vilão dessa história. E o melhor: Reinaldo Olavo é mais conhecido como Conde de Bolsonaro.

Samir começou a escrever Homens elegantes em 2013, quando Jair Bolsonaro era só um deputado do baixo clero que se notabilizava por declarações como “sou homofóbico sim, com muito orgulho”. Em 2018, todo mundo sabe o que aconteceu.

Impossível prever, mas imaginar era tudo que a gente podia.

*

Nos anos 80, quando a sociedade brasileira se livrava da lama pegajosa do regime militar, o xamã yanomami Davi Kopenawa avisou: o céu está caindo.

Em 1987, o então deputado Ailton Krenak pintou a cara com tinta preta de jenipapo durante uma sessão da Assembleia Nacional Constituinte, que elaborou a Constituição Brasileira de 1988, chamando atenção para a necessidade de garantir direitos e proteção aos povos e terras indígenas na Carta Magna.

Em 1991, a sambista Beth Carvalho cantava o partido alto Salve a natureza (Salve a natureza, amor / Salve a natureza!) no lendário show Ao vivo no Olympia, que virou disco com o mesmo nome. No mesmo lado do bolachão, ela gravou Na veias do Brasil (Respeito / Ao céu, à terra e ao mar / Ao índio veio juntar / O amor, a liberdade / A força de um baobá) de Luiz Carlos da Vila. O tema da natureza e do respeito à terra estava na boca do povo.

No ano seguinte, veio Eco-92, depois Rio+10 (2002), Rio+20 (2012). Mas já não sabemos mais quantas décadas temos pela frente para acrescentar nessa soma.

*

“o ailton krenak respondeu
a um arquiteto que as ocas
não tem paredes
porque nas tribos ninguém
tem nada a esconder
e quem prescinde da ideia de propriedade
não rouba.
tocar fogo à casa e seguir
caminho.
para alguns povos é natural
compreender as durações
das casas. toda construção
dura e desaparece.
toda ruína é a lembrança
de um desaparecimento.”

(Poema do desaparecimento (2024) de Laura Liuzzi)

*

Em tempo: quem for agora no Instagram da Matinal procurar os detalhes da fofoca lá do início não vai encontrar, porque lá pela enésima réplica o leitor desistiu da argumentação e apagou seu primeiro comentário e, com isso, desapareceu todo o histórico.

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