Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

Deslocamentos

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Deslocamentos Rodoviária de Osório. Foto: Nanni Rios

Quero começar dizendo que esse texto é uma crônica-serviço, algo que poderia estar na newsletter diária da Matinal, pela relevância e utilidade de seu conteúdo, mas com o floreio característico do relato pessoal, ideal para o formato da revista Parêntese. 

Felizmente, a Matinal é ambivalente, serve ao jornalismo e à literatura: desafia a nossa sanidade diariamente com informações urgentes e detalhadas sobre o estado das coisas (e as coisas do Estado), mas também se responsabiliza pelo contrapeso necessário. 

Se esse preâmbulo tivesse um título, seria “A vida não é útil”, parafraseando Ailton Krenak, muito citado por aqui. Um pouco de droga, um pouco de salada. Dias de luta, dias de glória. Ou qualquer clichê do tipo.

O fato é que eu vim contar como eu consegui viajar para outro estado, mesmo com aeroporto e rodoviária de Porto Alegre alagados e interditados. Vale pontuar que esse texto nem existiria se essas informações estivessem disponíveis nos locais mais óbvios: sites e redes sociais da ANTT, das prefeituras, do governo do estado, das empresas de transporte rodoviário que atendem o Rio Grande do Sul, das companhias aéreas que desviaram voos para outras cidades e dos próprios aeroportos. Mas se você procurar, não vai achar nada. Ou pior: o que achar vai estar deliberadamente errado ou desencontrado, não sei se por incompetência ou descaso.

Eu precisava fazer o trecho Porto Alegre-Florianópolis por terra. E de lá, pegaria um voo para São Paulo, para me apresentar no Nômade Festival. As passagens estavam compradas há meses. Com o fechamento do Aeroporto Salgado Filho, a companhia aérea ofereceu remarcação de aeroporto gratuitamente. Optei por Florianópolis por temer a situação das estradas para o interior do estado (tinha Caxias do Sul como alternativa também, mas o tempo de viagem era de 10h). E como não dirijo e nem viajo no carro de desconhecidos (pergunte a uma mulher o que isso significa), minha única saída era ir de ônibus.

Se você acessar os sites das empresas que têm a concessão para transporte rodoviário interestadual de passageiros, a primeira coisa que chama atenção é que nada parece estar acontecendo: nenhuma menção a maior catástrofe político-ambiental da história do estado, que comprometeu 90% de suas estradas, pontes e acessos. Não há qualquer aviso ou alerta sobre possíveis alterações na operação. Inclusive, é possível comprar normalmente passagens Porto Alegre – Florianópolis, um trecho que não existe. Ou seja, as viações Santo Anjo e Eucatur vendem linhas-fantasma.

Por determinação da ANTT, desde a interdição da Rodoviária de Porto Alegre, as linhas interestaduais devem partir da Rodoviária de Osório, no norte do estado. E as linhas intermunicipais partem alternativamente do Terminal Antônio de Carvalho, no bairro Agronomia, quase em Viamão. 

Quando você encontra essas duas informações e junta elas, você até entende que tem que pegar dois ônibus. Mas ninguém te diz que você tem que comprar duas passagens. Arrisco dizer que, ao vender uma passagem Porto Alegre – Florianópolis, a empresa dá a entender nitidamente que vai pegar passageiros em Porto Alegre e largar em Florianópolis, com baldeação em Osório. Os mais desconfiados podem até suspeitar de algo, já que são concessões diferentes, uma intermunicipal e outra interestadual. Mas uma informação importante como essa estaria em destaque, não é mesmo? Pois não está.

Então, antes de continuar a narração do absurdo, o serviço correto é: 

  • Entre no site da Veppo, empresa que opera as linhas intermunicipais, e compre uma passagem Porto Alegre – Osório
  • Lembre-se que o terminal é o Antônio de Carvalho, lá no bairro Agronomia, quase em Viamão. De carro, a partir do Centro, são 45 minutos sem trânsito. E tem também uma série de linhas de ônibus pra lá, procure saber.
  • Entre no site da Santo Anjo ou da Eucatur, empresas que operam as linhas interestaduais, e compre uma passagem Osório – Florianópolis (que custa o mesmo valor da passagem-fantasma Porto Alegre – Florianópolis, o que atesta a má-fé, na minha opinião)

Essas informações não aparecem em lugar nenhum. Muito menos juntas. Eu vi gente chegando no Terminal Antônio de Carvalho a procura do ônibus da Santo Anjo e descobrindo ali, de mala e cuia, que a passagem comprada (Porto Alegre – Florianópolis) saía, na verdade, de Osório e que chegar até lá era por sua conta e risco. Custava à Santo Anjo avisar?

Era possível comprar na hora uma passagem dali para Osório por R$45 (há totens de venda de passagens disponíveis no Terminal) mas, de qualquer forma, a pessoa perderia o ônibus lá, porque entendeu que o horário de saída previsto em sua passagem era a partir de Porto Alegre, quando, na verdade, era de Osório, que fica a 2h dali.

Deu para entender a confusão?

Tirando isso, tudo normal – o que me deixou ainda mais irritada. Porque era realmente “só” disponibilizar informação correta nos canais de comunicação das empresas.

A viagem de Porto Alegre para Osório atrasou uns 15 minutos para sair (eu estava preparada para muito mais) e levou menos de 2h para chegar. E a viagem de Osório para Florianópolis atrasou mais pela confusão das pessoas que não tinham informação do que por qualquer outra coisa. Teve um senhor que, por engano, despachou sua bagagem no ônibus da Santo Anjo (sem que nada o impedisse, ninguém conferiu sua passagem antes de guardar sua mala), mas na hora de embarcar viu que sua passagem era da Eucatur, cujo ônibus fazia o mesmo procedimento de embarque ao lado do nosso. Para resolver a confusão, o funcionário da Santo Anjo teve que retirar todas as malas até encontrar a dele, depois recolocá-las, fazendo aquele típico tetris para caber tudo, enquanto o ônibus da Eucatur também atrasou, aguardando aqueles pobres homens (o senhor distraído e o funcionário impaciente da empresa) darem conta de uma confusão que tinha muito pouco de culpa deles.

Por fim, mais um toque de quem aprendeu fazendo: os tempos das viagens são, em média, 2h do Terminal Antônio de Carvalho (em Porto Alegre) até Osório e 4h40 de Osório até a Rodoviária de Florianópolis. Qualquer tempo superior significa que são linhas “pinga-pinga”, que param em várias cidades antes de chegar ao destino final. Isso também não está explícito nos sites de compras de passagens. Pelo contrário: a informação do tempo de viagem aparece em letras miúdas e contraste cinza claro sobre branco. Compre com atenção e se poupe dessa aporrinhação.

Há outras opções de fazer o trajeto por terra, como as caronas por aplicativo. Eu ouvi de muita gente: “por que tu não foi de Blablacar?” Coincidentemente, todas as pessoas que me disseram isso eram amigos homens, na melhor das intenções, com certeza. Mas quando se é mulher, pegar carona com qualquer estranho vira uma operação complexa e até arriscada.

Enquanto eu ainda estava definindo o que fazer, baixei o app e analisei perfis de motoristas no Blablacar. Cheguei a reservar carona duas vezes pelo aplicativo. Na primeira, o motorista (cheio de selos, verificação da plataforma e boas avaliações) fez contato dizendo que quem iria dirigir (um outro carro, diferente do que eu reservei, ele me mandou até a placa) era um amigo dele. Não me senti segura e cancelei. Tentei de novo, dessa vez com uma motorista mulher, também muito bem avaliada, mas que também fez contato avisando que, na verdade, seu marido seria o motorista. Fosse quem fosse, podia ser que nada acontecesse, mas eu não tava a fim de passar seis (ou mais) horas tensa dentro de um carro, com a vida nas mãos de uma pessoa estranha, que eu não sei nem o nome verdadeiro ou se tem condições de dirigir.

Por fim, acho que vale também um comentário sobre uma alteração que deixou muita gente confusa e revoltada: assim que a Rodoviária de Porto Alegre foi interditada, a empresa Eucatur estabeleceu que, temporariamente, o embarque e desembarque da linha Porto Alegre – Florianópolis seria no posto Graal de Gravataí, na região metropolitana. 

Essa foi uma adaptação feita pela empresa e largamente divulgada em suas redes sociais, sem consulta à ANTT. A empresa tinha essa autonomia? Não, afinal ela opera uma concessão pública. Sair e chegar no Graal era melhor do que na Rodoviária de Osório? Depende. Por um lado, era um endereço mais próximo e isso era um ponto positivo. Mas por outro, era um local privado, onde não havia qualquer possibilidade de fiscalização do serviço oferecido. Fato é que a ANTT proibiu a utilização do posto Graal como local temporário de embarque e desembarque. É verdade que as rodoviárias também são locais privados, mas elas operam por concessão pública e estão sujeitas a fiscalização. Sem a ANTT em cima, ficaríamos vulneráveis a quaisquer regras que o Graal quisesse criar, desde taxas extras pela cessão do espaço até a simples alteração do serviço vendido.

Diferente de outras concessões públicas (como telefonia, por exemplo) em que a fiscalização é nula e o serviço é um lixo mesmo com a concorrência entre empresas, a ANTT tem se mostrado atuante. Por exemplo, no embarque de volta, na Rodoviária de Florianópolis, depois de quase 1h de atraso, a empresa Santo Anjo chegou com um ônibus com configuração diferente da que eu e todos os passageiros tínhamos comprado. Nossas passagens eram na modalidade leito, mas o ônibus só oferecia assento convencional (muito inferior ao serviço vendido) ou cama (nível superior ao leito). Poderíamos até aceitar um upgrade, mas não o rebaixamento sem o devido estorno da diferença. E não havia camas para todos. Até que chegaram dois fiscais da ANTT e obrigaram a empresa a trocar o veículo. Isso atrasou a saída em mais 30 minutos, mas todo mundo teve a entrega compatível com a compra. Não sei vocês, mas isso me convence de que foi melhor assim.

Agora um último causo para fechar o relato da saga: na Rodoviária de Florianópolis, uma família inteira (vó, vô, pai, mãe e três crianças) chegou com suas passagens Florianópolis – Porto Alegre em mãos para embarcar. O funcionário da Santo Anjo perguntou se eles sabiam do “detalhe” do desembarque. A mãe se apressou em dizer: “sim, o novo terminal, né? Pois pra gente é ótimo, vamos visitar a família em Viamão, ali pertinho”. E o funcionário corrigiu: “não, eu me refiro ao ponto final em Osório, o ônibus não vai até Porto Alegre”. A mulher argumentou mostrando as passagens impressas que diziam Florianópolis – Porto Alegre. O funcionário explicou que teriam que pegar outro ônibus em Osório e que as passagens lá custavam R$45. Ela retrucou com uma pergunta e a devida exclamação: “R$45 cada?!” Ele confirmou. Ela olhou para a trupe, como quem calcula por alto quanto dá R$45 x 7 e não demorou para decidirem que não iriam mais. Foram até o balcão da empresa pedir o estorno das passagens enganosas já compradas.

Também teve outra pérola do mesmo funcionário. Nossa partida estava marcada pras 23h59 e quando era quase 1h da manhã e ele já não sabia mais o que nos dizer para justificar o atraso, largou essa: “é até bom que atrase, daí vocês não ficam muito tempo esperando lá em Osório”. Ninguém disse nada, nem um amendoim para o palhaço, coitado.

Saindo de Floripa com 1h30 de atraso, chegamos em Osório bem depois do horário previsto e eu perdi o ônibus das 6h10 rumo a Porto Alegre, para o qual eu já tinha comprado passagem. Um funcionário da Unesul, empresa que opera a linha, me orientou a falar com o fiscal da empresa. Localizei fácil pela descrição: um senhor baixinho de uns 60 e poucos (talvez 70) anos chamado Francisco. Expliquei a ele minha situação. Parecia exausto, soltou um suspiro profundo e, sem nem me olhar, disse: vamos ver se cabe no próximo… pode esperar aí. Ensaiei perguntar: “aí onde?” Here, there and everywhere – preferi assobiar uma música enquanto esperava, pois o fiscal já tinha sido solicitado noutro canto. 

Mais uns minutos e ele me deu a poltrona 15 do horário seguinte, que também atrasou na saída, mas pelo menos não precisei comprar uma nova passagem. A volta levou 2h e foi tranquila. A linha 375 que passa dentro do Terminal Antônio de Carvalho me deixou na Borges de Medeiros, perto de casa, sem sobressaltos. Levou 30 minutos, menos do que o tempo previsto de Uber.

Bueno, trago esse relato detalhado na esperança de ajudar quem porventura precise fazer o mesmo trajeto. Fiz a saga de ida nos dias 20 e 21 de maio. Os causos da volta aconteceram nos dias 27 e 28 de maio. Mas todo o planejamento deve ter levado quase uma semana, entre catar informações dispersas, comprar passagens, intuir que comprei errado, pedir estorno, conversar com pessoas que viajaram, tentar caronas, cancelar caronas, recomprar passagens, alinhar intervalos etc.

Eu podia ter escrito tudo em tópicos para facilitar, mas o que acontece na vida é mais do que isso.

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