Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

A gente quer comida, diversão e arte

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A gente quer comida, diversão e arte Foto: Eduardo Aigner

Em tempos de exceção, como na pandemia de covid-19 e, mais recentemente, nas enchentes que tomaram o Rio Grande do Sul, emergem as urgências (ou urgem as emergências, como queiram). 

Saúde, certamente, a primeira delas. A questão sanitária é imperativa em qualquer situação de exceção, seja uma pandemia, uma enchente, uma guerra, o que for. Em seguida: moradia. No caso da pandemia, moradia era sobre resguardo, isolamento. Nas enchentes, o tema é ainda mais urgente e também mais primário: de uma hora pra outra, para milhares de pessoas, não havia mais moradia. Era preciso organizar abrigos. Do jeito que der, o quanto antes. E de forma impressionante, inúmeros abrigos surgiram. Colchões e roupas eram os itens mais urgentes, as pessoas chegavam molhadas e com frio. 

E em paralelo, comida e água, claro. O Brasil, historicamente, passa fome e sede, de norte a sul. E com fome e sede, nada mais funciona. Criança não aprende, não cresce; adulto não raciocina, não trabalha. Já foi bem pior, é verdade. Mas fome e sede ainda são problemas urgentes. Sem resolver isso, não adianta muito trabalhar no resto. Digo: a menos que esse resto seja renda (de preferência, a renda básica universal – um beijo, Suplicy!), que também resolve fome e sede. Mas entendam – e vou explicar, sobretudo aos neoliberais, que tem raciocínio mais limitado: não é ensinar a pescar, é dar o peixe mesmo.

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Durante a pandemia, todo mundo lembra: a principal recomendação era evitar aglomerações. E tudo que eu sabia fazer de melhor envolvia gente aglomerada: festas para milhares de pessoas em quadras de escolas de samba e encontros literários com gente amontoada na minha pequena livraria.

Então, contando a partir da minha experiência pessoal, foi assim: em março de 2020 tudo parou. Quer dizer, tudo parou enquanto trabalho que gerava renda, porque como tudo na área cultural/artística, as coisas seguiram acontecendo só que de graça.

Algumas festinhas foram para o zoom e os eventos literários viraram lives gratuitas em tudo que é rede social. Os grandes artistas (da música, principalmente) seguiram girando a roda graças a grandes patrocínios: o conteúdo era gratuito, mas tinha uma grande equipe trabalhando e recebendo por isso. Mas com os independentes é que a coisa foi bem diferente. 

Porque criar também pode ser verbo intransitivo: quem cria, cria. Mesmo em situações adversas (e às vezes justamente por causa delas), um artista não para de criar ou de ter ideias ou de investir naquilo que faz. Artista é um profissional autônomo quase que por definição. A gente fica o tempo todo de olho em oportunidades de monetizar umas ideias, seja cobrando ingresso (no caso das festas), seja agregando valor a algum produto comercializável (como os livros).

Como modelo de negócio, ser artista e trabalhar com cultura é bastante frágil. Livrarias, por exemplo, são negócios delicados. O equilíbrio é difícil, as ideias são perecíveis. Se a gente parar de trabalhar por algum motivo, as pessoas até demoram um pouco a perceber, afinal não fornecemos o ar que o ser humano respira. Nossa ausência não causa fome e sede. Na pandemia, não estávamos na lista de “serviços essenciais”, como supermercados, farmácias e hospitais, que deveriam ficar abertos. Pelo contrário, era melhor evitar. 

As livrarias (e negócios culturais em geral) que sobreviveram às restrições daquele período recorreram a ações emergenciais de toda ordem, durante e depois da pandemia. Ações de venda antecipada, linhas de crédito subsidiadas, doações diretas, malabarismos de toda ordem. E vou fazer uma simples menção honrosa para os auxílios emergenciais concedidos pelo governo para pequenas empresas, porque foram tão eficientes quanto um band-aid numa fratura exposta.

A gente precisava de tudo isso? Sim, sem dúvidas. Ativar a rede foi vital, não havia alternativa. Faria de novo? Não sei.

A pandemia me deixou meio traumatizada com o pique emergencial. Se não desenvolvi ansiedade (não?), foi por pouco. Tudo que eu queria era vender livros e, com isso, pagar as contas e ter uma renda. É isso que uma livraria faz, é isso que uma livreira espera. 

Não me entendam mal: pedir ajuda é bem digno, aceitar e receber ajuda é bem nobre, mas eu queria mesmo era conseguir pagar as contas vendendo livro, poder abrir a loja que eu montei, receber leitores e conversar sobre livros em segurança.

Você já deve imaginar onde eu quero chegar com esse flashback. O paralelo é bem óbvio: assim que Porto Alegre começou a encher, bateu um déjà-vu. Eu olhei para a água avançando pela Siqueira Campos, os alertas de evacuação, os primeiros eventos cancelados e logo senti aquela sensação de já ter vivido aquilo. Não exatamente aquilo, claro, porque essa enchente foi uma situação sem precedentes nos últimos 80 anos, mas as consequências daquele estado de exceção – em que as urgências são outras e aquilo que você faz perde a importância – era um sentimento bem conhecido.

É como um refluxo, um retrogosto amargo que não deveria voltar. Porque essa hierarquia de valores é uma falácia, um desequilíbrio nocivo e, infelizmente, muito naturalizado dentro de uma lógica de utilitarismo, que vê a cultura e as artes como supérfluas. Como se não fôssemos parte de uma economia, que paga impostos como qualquer outra atividade. E mesmo pela via utilitarista, a falácia se reafirma: a economia criativa movimenta uma fatia do PIB maior do que a da indústria automobilística. E mesmo assim, não é esse o argumento correto.

*

O Sarau Elétrico, evento que acontece semanalmente há 25 anos (!) no bar Ocidente, praticamente um patrimônio cultural imaterial da cidade, sempre sob a batuta de Katia Suman (que dispensa apresentações), está dedicando todo o lucro com ingressos neste mês de junho para mitigar emergencialmente os efeitos da enchente de maio no meio cultural de Porto Alegre.

Na semana passada, toda a grana dos ingressos foi para a Livraria Taverna. E nessa semana, o convidado especial José Falero deveria indicar uma instituição para receber a doação. Ele escolheu o Instituto E se fosse você? comandado por Manuela D’Ávila, que, por sua vez, acabou virando convidada do Sarau também. Foi, portanto, uma noite estrelada com Falero e Manu no Ocidente na última terça.

Contei tudo isso para citar um texto lido pela Manu, escrito por Zélia Duncan na época da pandemia. Dei um Google e achei o poema completo:

“Vida em Branco

Você não precisa de artistas?
Então me devolve os momentos bons.
Os versos roubados de nós.
As cores do seu caminho.
Arranca o rádio do seu carro, destrói a caixa de som.
Joga fora os instrumentos e todos aqueles quadros, deixa as paredes em branco, assim como a sua cabeça.
Seu cérebro cimento, silêncio, cheio de ódio.
Armas para dormir, nenhuma canção de ninar, e suas crianças em guarda, esperando a hora incerta para mandar ou receber rajadas.

Você não precisa de artistas?
Então fecha os olhos, mora no breu.
Esquece o que a arte te deu, finge que não te deu nada. Nenhum som, nenhuma cor, nenhuma flor na sua blusa. Nem Van Gogh, nem Tom Jobim, nem Gonzaga, nem Diadorim. Você vai rimar com números.
Vai dormir com raiva, e acordar sem sonhos, sem nada.
E esse vazio no seu peito não tem refrão para dar jeito, não tem balé para bailar.

Você não precisa de artistas?
Então nos perca de vista. Nos deixe de fora desse seu mundo perverso, sem graça, sem alma. Bom dia para quem tem alma!

*

O bar Agulha, localizado no Quarto Distrito, um dos bairros de Porto Alegre mais severamente atingidos pela enchente, passou quase 20 dias submerso em água podre. 

Quem não mora em Porto Alegre ou não estava aqui durante a enchente não consegue ter ideia do que era essa água. Impossível descrever, mas eu vou tentar dar umas pistas: imagine uma mistura de água do Guaíba, com eventuais animais mortos, restos de tudo que encontrou e destruiu pelo caminho; misturada com água dos esgotos da cidade que eclodiu dos bueiros; misturado com a sujeira da rua; misturado com produtos químicos das indústrias do bairro atingidas pela própria enchente; misturado aos insumos (comida e bebida) do próprio bar apodrecidos após dias debaixo d’água. Acho que não dá conta, mas foi mais ou menos isso.

Lá no início do mês, quando perguntei ao Edu, um dos donos do Agulha, como estava a situação, ele foi lacônico: “Foi-se tudo”. Aceitei o minimalismo como dor e preferi não ficar importunando. Dias depois me reuni com o Gui, curador do Agulha, para definirmos o que fazer com as nossas próximas agendas de festas no bar. Perguntei como estava a situação e ele foi quase poético: “o Agulha, daquele jeito como o conhecemos, não existe mais”.

Passado o baque inicial, a realidade foi se reafirmando dia após dia. Ao apurar as perdas, chegou-se a um valor para recuperar o local. Encontrei o Gui, semanas depois daquela primeira conversa, na pista da Casa Natura Musical, em São Paulo, à espera do show de Amaro Freitas e Zé Manoel cantando Clube da Esquina com a participação especial de Alaíde Costa. Um primor, uma noite linda, mas infelizmente não é sobre o show que eu vou falar, mas sobre o papo que tivemos. Gui me contou que seria lançada no dia seguinte uma vaquinha de R$500 mil para a recuperação do Agulha. 

Perguntei logo como funcionaria, se seria semelhante à vaquinha da pandemia, com faixas diversas de contribuição, recompensas, conteúdos, ações de venda antecipada, malabarismos de toda ordem. Ele respirou fundo balançando negativamente a cabeça e me disse: “dessa vez não, acho que ninguém tem energia para fazer tudo aquilo de novo”. Me identifiquei profundamente com aquela sinceridade. Não sei como eu me sentiria se tivesse que fazer tudo de novo. E em nada me assustou o valor de meio milhão de reais para recuperar uma casa de shows que foi totalmente destruída pelas águas. Pelo contrário, o valor me pareceu modesto, mas serviria bem para dar o pontapé inicial da reconstrução. O restante, certamente, seria levantado de outras formas muito mais criativas e estratégicas pelo Edu e o Nando, os Irmãos Titton LTDA (razão social do Agulha).

Da mesma forma que a parte sinestésica e simbólica da enchente não pode ser descrita com exatidão para quem não estava em Porto Alegre quando as ruas foram inundadas, a importância do Agulha como equipamento cultural para a cidade também não cabe em palavras ou descrições. Mas eu vou tentar dar umas pistas. 

Por exemplo: o que os paulistanos têm com o SESC – a oportunidade de ver música autoral, com curadoria diversa, oferecida com qualidade técnica impecável de som, luz, produção, divulgação e experiência de show – a gente tinha em Porto Alegre de forma única (e não com várias unidades pela cidade, infelizmente) com o Agulha. E, sim, o tempo verbal é esse mesmo: a gente tinha, não tem mais. 

De início, assim que a vaquinha foi lançada, uma onda de apoio se formou e se alastrou por todo o Brasil com um belo arranque de contribuições e compartilhamentos da campanha. Mas não demorou para que uma horda estridente começasse a atacar a ação, sobretudo no X/Twitter, rede social conhecida por suportar discursos de ódio sem a devida moderação. Os comentários destilavam a mais abjeta ignorância sobre como se faz cultura de forma independente (sem patrocínio e sem Estado) no Brasil.

Prestei-me a acompanhar parte da treta e vou tentar mais uma vez descrever o esgoto. O principal argumento era sobre prioridades: para aquelas pessoas era hora de doar para abrigos (roupa, comida, água etc) e não para recuperar o Agulha. Ora, que os abrigos precisavam de muitas doações naquele momento, ninguém discordaria. Mas a quem serve a hierarquia de “utilidades” que esse tipo de argumento sustenta? 

Em outras palavras: em que realidade paralela alguém ficaria em dúvida sobre doar para os abrigos OU doar para o Agulha? – com ênfase no “ou”. 

A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte – com ênfase no “e”.

*

Durante aqueles dias meio atônitos de maio, encontrei alguns amigos igualmente atônitos vagando pela cidade. A linguagem era mais ou menos a mesma: depois de um abraço, uma exclamação vaga de “quanto tempo!”, seguido de um “tudo bem?” meio protocolar (ninguém tava bem) e eu acabava sempre sugerindo um café: “tá com tempo?”. Fato é que fui várias vezes com diferentes companhias até a Quero Pão, padaria raiz aqui do bairro, onde café passado + farroupilha ainda custam R$10. 

Numa dessas, encontrei um querido amigo que tem uma filha pequena. A família toda estava abrigada na casa dos pais dele, numa região mais alta da Zona Sul da cidade, onde ainda tinha luz e água. Ele me contou que uns dias antes, quando ainda estavam em casa, ele conversou com a filha sobre o que estava acontecendo na cidade e propôs que eles separassem alguns brinquedos dela para doar às crianças dos abrigos. Num primeiro momento a pequena resistiu à ideia, mas depois entendeu que era justo dividir, já que aquelas crianças não tinham mais nenhum brinquedo. Eles, então, combinaram de ir juntos até um abrigo perto de casa, mas a reação àquela oferta os surpreendeu: “não estamos aceitando brinquedos aqui, precisamos de roupas”. Tinham separado também uma sacola de roupas para doar, ótimo! Mas e os brinquedos, por que não? 

Foram até outro abrigo e receberam a mesma resposta. Já estava ficando difícil sustentar o ensinamento sobre a necessidade de repartir os brinquedos com as crianças que tinham perdido tudo. Logo, aquilo virou uma missão.

Pegaram o carro e tentaram outros dois abrigos e a resposta era a mesma. Meu amigo sacou o celular e começou a fazer contato com outros abrigos mais distantes. Depois de mais negativas, finalmente um “sim” no abrigo do Jardim Lindóia, um bairro consideravelmente longe do Centro. Mas não era uma possibilidade eles voltarem para casa sem dar o devido destino àqueles brinquedos. O senso de solidariedade plantado na filha tinha que vingar. A viagem desenhada pelo Waze calculava 25 minutos até lá. Devido ao trânsito, a saga acabou levando quase 50 minutos, mas valeu a pena. As crianças já foram logo pegando os brinquedos e a menina viu com os próprios olhos a importância de seu gesto.

*

A Câmara Rio-Grandense do Livro lançou uma campanha emergencial. Confesso que eu mesma não entendi muito bem como funciona, mas não é meu papel aqui explicar. Só que mesmo sem entender, a comunicação da campanha invoca uma série de ideias que eu acho catastróficas, sobretudo para momentos de catástrofe (climática, política e/ou social), com tamanho impacto no mercado livreiro como o que estamos vivendo agora.

Eu poderia resumir a minha crítica dizendo que a campanha é amadora e muito pouco profissional. Mas acho isso vago e quase leviano sem o devido aprofundamento, pois somos um mercado diverso e bastante artesanal em várias etapas da cadeia do livro. A industrialização traz como efeito colateral alguma pasteurização na forma e no conteúdo, no jeito de monetizar. E a gente fica nessa corda bamba, um pouco dependendo disso para escalar vendas e fechar as contas, mas também um pouco combatendo essa lógica, para não ser engolido. Enfim, é complexo. Mas vamos à dita campanha.

Começando pelo título: “Se um país se constrói com livros, está na hora de reconstruir as livrarias”. Ele invoca o célebre aforismo de Monteiro Lobato – “Um país se constrói com homens e livros” – que joga, já de saída, uma primeira demão de anacronismo na campanha. 

O subtítulo que vem logo abaixo não acho problemático, mas sim muito vago: “Campanha de arrecadação de livros para bibliotecas, sebos e livrarias“. Quem vai doar? Seriam as grandes editoras a fornecer sem custo para a revenda em livrarias e sebos? Seria um sonho, tão bonito quanto impossível. Ou seriam os autores, que esperam da venda do objeto livro justamente o retorno material/financeiro de seu trabalho? Ou pior: seriam os leitores e leitoras, já tão escassos, que a gente vive tentando buscar das profundezas de suas bibliotecas e trazê-los para dentro das livrarias para, justamente, comprar livros? E se os leitores começarem a ter a função de doar livros, quem vai comprá-los? Difíceis questões, eu sei.

Por fim, queria comentar sobre a primeira frase da legenda que acompanha o card, abrindo o apelo: “Agora, a principal ferramenta de reconstrução é a doação“, diz o post. Não sei vocês, mas essa me doeu. Daqui de onde eu olho, a partir da minha ainda breve trajetória profissional (são quatro anos trabalhando com produção editorial acadêmica, outros quatro anos dentro de uma editora comercial e mais 10 anos a frente de uma pequena livraria), é nítido que a principal ferramenta de reconstrução para esse momento não é doação, mas política pública.

O Estado precisa recomprar os livros destruídos pelas enchentes. Lançar editais urgentes (e não necessariamente emergenciais) para reequipar as bibliotecas de escolas de todo o estado. Essa é uma política pública que já existe e resiste a duras penas, com cortes galopantes a cada governo, e que não teria apenas efeito emergencial, pelo contrário: seria um investimento com efeitos duradouros a médio e longo prazo. 

E tanto melhor se esses editais – aí sim de forma emergencial – tivessem cláusulas que incentivassem a escolha de títulos de editoras gaúchas. Mas bom mesmo seria se, além disso, fosse estabelecida a obrigatoriedade de compra dos livros em livrarias locais – se não da própria cidade, das cidades mais próximas – sem o critério (por vezes injustificado e um pouco desleal) do menor custo.

Não vou nem entrar no mérito da imagem usada no post para não alongar ainda mais esse solilóquio. Espero não ter soado idealista demais. Mas sinto que uma campanha como esta desiste antes de começar, sobretudo porque a CRL é uma entidade que deveria representar os interesses econômicos (no melhor sentido) de todas as partes de um ecossistema já tão precarizado.

É evidente que as pessoas precisam comer, vestir e morar. E toda doação ajuda. É evidente que as bibliotecas, sebos e livrarias precisam se reerguer. Mas entre necessidade e desejo, a gente quer inteiro e não pela metade.

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