Juremir Machado da Silva

Com Michel Maffesoli e Edgar Morin: encontro de mestres para lembrar boas histórias

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Com Michel Maffesoli e Edgar Morin: encontro de mestres para lembrar boas histórias Fotos com os mestres Maffesoli e Morin em Paris

Talvez a vida possa ser medida pelos encontros que se perpetuam no tempo, como uma cadeia de sentimentos que se fortalece com os anos, pelas relações que se consolidam no fazer cotidiano, pelas afinidades afetivas, estéticas, intelectuais, culturais, enfim, que se tecem como uma malha feita de pequenos ou grandes gestos, e pelas fidelidades que emanam do cruzamento de ideias, de valores e de expectativas. Uma viagem no espaço e no tempo com nomes de cidades e de livros.

Na minha vida acadêmica devo quase tudo a Michel Maffesoli, assim como devo muito a Edgar Morin. Encontrá-los é sempre uma enorme alegria. Em Paris para reunião do conselho editorial da revista Hermès, dirigida por Dominique Wolton, fui, com Cláudia, jantar na casa de Maffesoli. Jamais falo dessas coisas por esnobismo, algo que nem consigo entender e jamais poderia valorizar, ainda que me acusem disso. Falo por agradecimento e para comentar sobre o tanto que aprendo nessas horas. Maffesoli mora simplesmente de frente para a Sorbonne. Da sua janela se vê o busto de Augusto Comte na praça. Somos vizinhos. Estamos num hotel a dois passos do edifício dele. A surpresa foi grande. Hélène e Michel nos receberam com um jantar magnífico da entrada à sobremesa, uma “soupe de fraises” que ainda me dá água na boca. Como convidados, além de nós, Edgar Morin, de volta a Paris depois de alguns anos morando em Montpellier, a esposa dele, Sabah, e o médico e professor de medicina na Sorbonne, Christian Hervé.

Foi uma noite de muitas lembranças e vários projetos. Em novembro, Maffesoli completará 80 anos. Haverá um evento comemorativo acadêmico em Paris e outro em Porto Alegre, promovido pelo nosso Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS. Na ocasião, lançaremos o “Dicionário Michel Maffesoli”, obra de dezenas de pesquisadores de diferentes universidades e países reunindo as noções mais usadas pelo mestre do imaginário e da socialidade. Falamos disso e de tantos eventos dos quais participamos juntos nos últimos 35 anos. Perdi a conta de quantas viagens de Maffesoli ao Brasil já organizei. Em todas elas aprendi sobre generosidade, cotidiano e imaginários.

Morin está com a cabeça em forma. Toma menos remédios por dia do que eu. Vai fazer 103 anos de idade em 8 de julho. O sinal mais evidente da idade avançada é a audição bastante prejudicada. Nada, porém, que o impeça de participar com alegria de uma noite de histórias e memórias. Os seus olhos brilharam quando falamos de Dona Beija e da atriz Maitê Proença, nome que povoou nossa relação desde o nosso primeiro encontro, em 1991. Ele via a novela Dona Beija e queria que eu lhe contasse o final. Mas eu não tinha visto, o que me valeu um puxão de orelha por não prestar atenção na cultura popular. Ele chegou a me convidar para planejar o sequestro de Dona Beija ou de Maitê mesmo. Finalmente, almoçou com ela numa de suas viagens ao Brasil.

– O que rolou no almoço com Dona Beija? – perguntamos todos.

– Apenas um bom almoço – ele responde, com um sorriso malicioso.

Michel e Edgar lembraram dos seus encontros com Martin Heidegger na Alemanha. Foi um momento interessante sobre as experiências de dois intelectuais encontrando um monstro da filosofia do século XX. Morin viveu em Berlim entre 1945 e 1946, do que resultou o seu primeiro livro, “O Ano Zero da Alemanha”, republicado pela Sulina no Brasil depois de décadas de esquecimento. Corajoso desde a juventude, então filiado ao Partido Comunista Francês, defendeu Heidegger da acusação de comprometimento com a filosofia nazista. Morin saiu cedo do PCF por não aceitar mentir em nome da ideologia e da causa revolucionárias.

Nesse vaivém de conversas, ele se lembrou do dia em que entrou no gabinete de Hitler, depois da queda do ditador, e se viu diante de pastas cheias de papéis. Não hesitou um instante: pegou o que pôde. Os seus olhos brilham novamente enquanto ele, com seu sorriso mais característico de quando faz travessura, responde a Michel:

– Ao longo da vida e das mudanças, perdi tudo o que peguei.

Perdeu, por exemplo, um romance feito na juventude, descoberto recentemente, como conta a socióloga Sabah Abouessalam, guardiã da vida e da obra do marido, em caixas de documentos doados a uma instituição. O livro acaba de sair pela editora Denöel, “O ano perdeu a sua primavera”. Na capa, uma foto do autor com ar adolescente.

Lembramos de quando fomos a Amazônia juntos. Era a primeira vez de todos nós por lá, Michel, ele e eu. Um encantamento inesquecível.

Edgar não recusou uma taça de vinho tinto. Lambeu os dedos na sobremesa. Em certo momento, virou-se para mim e disse:

– Arroz e feijão no Mercado Público…

E contou de quando me fez fugir com ele do chique Il Gattopardo para comer feijão e arroz no Mercado Público de Porto Alegre. Ninguém sabia onde estávamos. Não havia celular. Só fomos descobertos depois do sorvete na Banca 40 e de uma aposta no jogo do bicho, que nunca conferi. Ele e Michel não esquecem uma linda jornada de 1993, na Usina do Gasômetro, organização de Esther Grossi e Fernando Schuler, com 2400 pessoas para ouvir os dois e um terceiro integrante genial do bando, Jean Baudrillard. O evento tinha um nome delicioso: “A decadência do futuro e a construção do presente”. Era o aqui e agora.

A noite na casa de Hélène e Michel nos fez conhecer uma pessoa especial, o doutor Christian Hervé, simples, culto e divertido, o que me lembrou bastante o amigo gaúcho Gilberto Schwartsmann. E Cláudia nisso tudo? Ninguém se diverte tanto quanto ela. Bebe o champanha que eu já não bebo, tem muitas histórias com nossos amigos nessas tantas viagens, curte o momento com intensidade e leveza. Desta vez, eu trouxe uma cachaça brasileira para os donos da casa, que adoram. Claudia tinha um presente secreto: um Oxalá para o altar de Michel.

É assim que crio coragem para enfrentar aviões mais uma vez. Amo estar nos lugares. Odeio as viagens. Quando alguém me diz, “fizemos Alemanha, Itália e França desta vez”, eu tento sair correndo.

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