Nossos Mortos

A vida de Cícero e um verso de Vinícius

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A vida de Cícero e um verso de Vinícius Foto: Chico Cerchiaro/Companhia das Letras

Antonio Cicero deixa seu nome marcado na cultura brasileira com uma produção ampla e de alta repercussão em, pelo menos, quatro áreas: ensaio de filosofia, crítica literária, canção e poesia. Centro aqui nas duas últimas, embora as outras duas, a filosofia e a crítica, sejam também basilares para seu trabalho como letrista e poeta.

Como parceiro da sua irmã Marina Lima, Cicero trouxe um ar novo para a música popular brasileira em meados da década de 1980. Com um profundo desprendimento ao que se esboroava, ele escreveu essa letra, cantada por Marina na abertura de uma telenovela da Globo: “Pra começar, quem vai colar / os tais caquinhos do velho mundo? / Pátrias, famílias, religiões e preconceitos / quebrou não tem mais jeito. / Agora descubra de verdade o que você ama / que tudo pode ser seu. / Se tudo caiu, que tudo caia, pois tudo raia / e o mundo pode ser seu.”

Essa afirmação do desejo e da abertura para a vida permeia toda sua obra. A base filosófica permite afirmar a liberdade de viver por sua conta e risco. No poema “Sair”, de A cidade e os livros, ele começa dizendo “Largar o cobertor, a cama, o / medo, o terço, o quarto, largar / toda simbologia e religião; largar o / espírito, largar a alma e sair. Esta é / a única vida e contém inimaginável / beleza e dor.” 

Sua morte, que pegou a todos nós com o susto de não ter mais sua presença luminosa, também reflete essa postura. Como em Sêneca, o direito ao suicídio é uma das afirmações da liberdade humana diante da vida. Isso porque, para o filósofo romano, a questão não é viver. E sim, viver bem.

Cicero foi para a Suíça. Lá teve a morte assistida, pois não suportava mais ir perdendo dia após dia a memória. Estava com Alzheimer. Antes que a doença completasse sua tirania, ele se retirou da vida. Para alguém que escreve e lê, a vida é memória. Sua poesia é profundamente ligada à tradição. Revisita os gregos, exercita a métrica, rediscute os mitos. Recusou-se a perder para esse mal que veio atacar o que estruturou toda a sua existência.

Nós é que não perderemos sua memória. A cada vez que Lulu Santos cantar num show e todos cantarem com ele “Fazer da minha vida sempre o meu passeio público / E ao mesmo tempo fazer dela o meu caminho só, único / Talvez eu seja o último romântico / dos litorais desse Oceano Atlântico…”, é Cicero que soa e nos convida a viver bem como dizia Sêneca. A cada vez que Marina cantar, e a gente cantar junto, “Você me abre seus braços / e a gente faz um país” é de novo Cicero nos abraçando. 

Um verso de Vinicius “porque a vida só se dá pra quem se deu” define bem a comoção causada nas redes e no meio das artes com a morte do Cicero. Diversos artistas relataram a atenção e a disponibilidade do poeta e filósofo para cada um. Seja estando presente em lançamentos, escrevendo prefácios, orelhas, divulgando os poemas de que gostou em seu blog Acontecimentos, fazendo letras para parceiros, fazendo pontes e apresentando pessoas, participando de mesas literárias, festeando e bebendo com os amigos em bares e restaurantes, estava sempre disponível e aberto a todos aqueles em que via valor e se dispunha a incentivá-los.

De minha parte, tive a honra e a alegria de ele ter expressado tanto para mim quanto publicamente a admiração pela minha poesia. Foi um leitor entusiasmado dos meus livros. Colocou vários poemas meus em seu blog. Um desses poemas, “não quero mais de um poeta”, que integra meu livro Palavra mágica, fazia parte dos seus cursos e palestras ao lado de textos de grandes poetas de todos os tempos. Recentemente, citou o poema na sua última palestra na Academia Brasileira de Letras. 

Mas nada disso que, é claro, me honra, foi maior do que o convívio alegre. Recebi em diversas ocasiões uma ligação dele dizendo “Ricardo, já está no Rio? Vamos jantar?”.  E lá íamos nós, inclusive de metrô, para um lugar que servisse um bom vinho ou um bom chope. 

 

 


Ricardo Silvestrin é poeta.

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

 

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