Nossos Mortos

Guardar Cícero

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Guardar Cícero

Antonio Cícero partiu. Eu li a notícia, demorei a assimilar, passou um filme na minha cabeça, de um tempo mais feliz, de uma Porto Alegre mais pulsante, mais provocativa, que recebia grandes pensadores brasileiros para nos inspirar, provocar ideias, fazer a cidade mais inquieta e cosmopolita.

Eu mesmo, muitas vezes, me vi cercado por grandes poetas e artistas memoráveis. Waly Salomão, com sua característica agregadora, foi reunindo todos, e com a benção de Waly foi fácil reunir em noitadas na Usina do Gasômetro mesas culturais com José Miguel Wisnik, Luiz Tatit, Luís Augusto Fischer, o próprio Cícero. Foram noites com sol. Música e poesia, a inteligência dos inteligentes circulando entre nós, como se fosse simples, como se fosse fácil. Sim e Não.

Sempre que podia eu os chamava, em grupo ou individualmente. Antonio Cicero aceitava os convites e foi sempre bom conviver com sua presença de poeta. Tímido, econômico, essencial, se impôs como um dos nomes mais importantes das letras nacionais. A Academia Brasileira de Letras foi o destino natural para um homem de cultura invulgar. Poeta e filósofo do primeiro time, li tudo o que Cicero publicou em vida.

Há, pelo menos, um poema que extrapolou e virou um escrito de excelência. O poema começa assim: “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda nada. Em cofre perde-se a coisa à vista.” Li incontáveis vezes esse poema. É uma obra-prima. Esses dias vi a leitura de Fernanda Montenegro iluminando cada sílaba dos versos iluminados.

Saber que ele, acometido por um Alzheimer agressivo, decidiu sobre sua morte assistida, com a carta que nos deixou, lúcida e serena, mas determinada e poderosa, é mais um sinal da extrema sensibilidade do poeta. Guardar Cícero agora é do jeito dele; espalhando sua obra, comentando seus trabalhos, aplaudindo sua trajetória.

Fará falta. Caberá a nós espalhar sua palavra ao mundo. Lembrar seu trabalho de letrista, que é fabuloso. Temos canções que o guardarão. Suas parceiras mais constantes, a irmã Marina Lima e Adriana Calcanhotto, estão aí e vão cuidar desse legado. Nós, daqui, estaremos cantando suas poesias líricas e afiadas. Como ele disse e eu repito sempre: “o inverno no Leblon é quase glacial.”. Eu uso pra tudo, porque tá tudo dito aí.

 


Luciano Alabarse é diretor teatral.

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

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