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Almodóvar aborda a eutanásia com compaixão em “O Quarto ao Lado”

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Almodóvar aborda a eutanásia com compaixão em “O Quarto ao Lado” Warner/Divulgação

Vencedor do Leão do Ouro no Festival de Veneza deste ano, O Quarto ao Lado (2024) é o primeiro longa-metragem do espanhol Pedro Almodóvar falado em inglês. O pungente drama crepuscular estrelado por Tilda Swinton e Julianne Moore acompanha duas antigas amigas que se reencontram por causa da proximidade da morte de uma delas.

Baseado no romance O que Você Está Enfrentando, de Sigrid Nunez, o filme narra o reencontro em Nova York da consagrada escritora Ingrid (Moore) com a correspondente de guerra Martha (Swinton), ex-companheiras de trabalho em uma revista nos anos 1980. Ingrid descobre casualmente que Martha está enfrentando um câncer severo e resolve visitar a velha conhecida, que está sozinha internada em um hospital.

A conexão afetiva e intelectual entre as duas melhores é rapidamente retomada graças a boas lembranças comuns, como a ligação com Damian (John Turturro), com quem ambas viveram romances em épocas distintas. A afinidade e a confiança mútuas levam Martha a fazer um pedido dramático a Ingrid: desenganada em seu tratamento e pressentindo um futuro próximo de sofrimento antes da morte, a repórter decide suicidar-se e deseja que a amiga esteja a seu lado quando efetivar o plano.

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Chocada com a proposta, a escritora acaba concordando e acompanhando a jornalista para um temporada em uma ampla, bela e moderna casa de campo nos arredores de Woodstock, onde Martha pretende tirar a própria vida ingerindo uma pílula. Enquanto esse momento fatal não chega, as duas experimentam nesse interlúdio junto à natureza uma diversidade de sensações e emoções muitas vezes contraditórias ⎯ que vão da tristeza à alegria, passando pela incompreensão, raiva, arrependimento, afeto, resignação, decepção e deslumbramento.

Embora tenha sido o primeiro longa-metragem de Pedro Almodóvar em língua inglesa, o cineasta já havia dirigido antes dois curtas falado no idioma: A Voz Humana (2020), também estrelado por Swinton, e Estranha Forma de Vida (2023). “Minha insegurança desapareceu após a primeira leitura de roteiro com as atrizes, com a troca das nossas primeiras impressões. O idioma, então, não seria um problema, e não porque eu dominasse o inglês, mas por causa da total disposição de todo o elenco para me entender e me ajudar a entendê-los mais facilmente”, explica o realizador.

O Quarto ao Lado dá sequência a uma série de bons filmes elegíacos sobre luto, superação e reconciliação assinados pelo diretor na última década, que inclui os longas Julieta (2016), Dor e Glória (2019) e Mães Paralelas (2021), além do western em curta-metragem Estranha Forma de Vida. Entusiasta do melodrama, o mestre espanhol explora o gênero tanto nesses títulos quanto na atual produção de maneira comedida, extraindo genuína comoção de suas tramas, sem sucumbir à tentação do sentimentalismo desbragado.

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Essa emotividade contida reverbera em qualidades artísticas de O Quarto ao Lado como a inspirada trilha sonora de Alberto Iglesias ⎯ colaborador habitual de Almodóvar ⎯ e a exata direção de fotografia de Eduard Grau de tons sóbrios, mas não frios. Já a concepção de cenografia e figurino apresenta as cores básicas, puras e contrastantes características dos filmes do diretor em uma paleta mais suave e rebaixada, sem a estridência visual almodovariana corriqueira.

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Como em Mães Paralelas, as angústias, sonhos e medos individuais dos personagens de O Quarto ao Lado evocam questões históricas e sociais coletivas: se naquele filme estrelado por Penélope Cruz o passado de resistência e colaboracionismo político da Espanha franquista era o pano de fundo, no novo longa é a crise climática global que ecoa na trama como um alerta sobre a iminência do fim.

Como é recorrente em suas obras, Almodóvar pontua seu novo trabalho com referências artísticas das mais diversas áreas, que incluem de citações explícitas aos pintores Edward Hopper e Dora Carrington e à escritora Virginia Woolf até sugestões cinéfilas a filmes como Persona (1966), de Ingmar Bergman, e Viagem à Itália (1954), de Roberto Rossellini, estrelado por Ingrid Bergman ⎯ atriz sueca cujo primeiro nome batiza o personagem de Julianne Moore.

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Reconhecido pela capacidade de formar elencos cuja principal qualidade é a sintonia de interpretações e, especialmente, pela sensibilidade na direção de atrizes, Almodóvar confia no talento e carisma de duas das maiores estrelas do cinema internacional para capturar a empatia do espectador. Além de descrever a delicada relação construído por duas mulheres que se reconectam no outono da vida, O Quarto ao Lado aborda com compaixão e respeito a difícil escolha pela eutanásia ⎯ um tema tabu e melindroso que nesta quarta-feira (23/10) voltou ao debate no Brasil com o poeta e filósofo Antonio Cicero, que foi à Suíça para submeter-se ao procedimento de morte assistida, permitido no país europeu, a fim de abreviar o sofrimento e a degeneração causados pelo mal de Alzheimer, registrando sua intenção em uma carta tornada pública.

Evitando alarido ou autocomiseração, com melancolia, mas sem desespero, O Quarto ao Lado lembra que o fim é inevitável como a neve que cai sobre todos os vivos e os mortos ⎯ imagem do final do conto Os Mortos, de James Joyce, lembrada por Almodóvar tanto com o original literário quanto com a reprodução de cenas da comovente versão cinematográfica do texto dirigida por John Huston em 1987.

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O Quarto ao Lado: * * * * *

COTAÇÕES

* * * * * ótimo * * * * muito bom * * * bom * * regular * ruim

Assista ao trailer de O Quarto ao Lado:

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