Crônica

A ciência da amizade

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A ciência da amizade Foto: divulgação

Os seres humanos são inegavelmente animais sociais. Poucas coisas rendem mais histórias e risadas do que reencontros de velhos amigos. Uma história recontada parece ainda mais divertida quando embalada por sorrisos que reconhecemos há mais tempo. Amigos, que podem estar até longe e cujo contato é esporádico, nos oferecem uma confiança construída pelo compartilhamento de momentos e valores, produzindo um sentimento de acolhimento e pertencimento.

O conhecimento intuitivo dos efeitos prejudiciais que o isolamento social e a solidão podem ter no bem-estar físico e mental é amplamente disseminado, e a ciência corrobora essa leitura.A ciência moderna revela que nossos cérebros foram programados para a conexão social desde o surgimento do Homo sapiens, cerca de 300.000 anos atrás. Esses laços sociais são um mecanismo de sobrevivência. Precisamos de amigos que nos façam sentir seguros, apoiados e amados. Talvez seja por isso que os sentimentos de solidão e rejeição desencadeiam atividade nas mesmas partes do cérebro que a dor física. Essa reflexão se torna ainda mais importante em um momento em que a sociedade está cada vez mais desconectada socialmente. Vínculos digitais parecem ser mais valiosos do que um abraço fraterno. Em 1938, pesquisadores de Harvard embarcaram em um estudo de décadas para avaliar o que nos faz felizes na vida. Foram reunidos registros de saúde de 724 participantes de todo o mundo e feitas perguntas detalhadas sobre suas vidas em intervalos de dois anos. Não foi uma carreira, dinheiro, exercícios ou uma dieta saudável que trouxeram mais impacto na qualidade de vida. A descoberta mais consistente ao longo de 85 anos de estudo foi que relacionamentos positivos nos mantêm mais felizes, saudáveis e – um bônus interessante – nos ajudam a viver mais. Conexões sociais não apenas nos proporcionam prazer, mas também influenciam nossa saúde a longo prazo de maneira tão poderosa quanto um sono adequado, uma boa dieta e não fumar. Dezenas de estudos confirmaram que pessoas que têm relacionamentos satisfatórios com a família, amigos e sua comunidade são mais felizes, têm menos problemas de saúde e vivem mais. Pessoas com conexões sociais mais fortes têm 50% mais chances de sobreviver!

Além disso, evidências científicas mostram que os efeitos do suporte social na melhoria da vida se estendem tanto ao doador quanto ao receptor. Uma amizade sólida ajuda a aliviar os níveis prejudiciais de estresse, que podem afetar adversamente as artérias coronárias, a função intestinal, a regulação da insulina e o sistema imunológico. Algumas linhas de pesquisa sugerem que essa relação de cuidado com os outros desencadeia a liberação de hormônios que reduzem o estresse.

Uma revisão robusta, que agregava 38 estudos, descreve que as amizades entre adultos, especialmente as de alta qualidade que proporcionam apoio social e companheirismo, predizem significativamente o bem-estar e podem proteger contra problemas de saúde mental, como depressão e ansiedade – e esses benefícios persistem ao longo da vida. Pessoas sem amigos ou com amizades de baixa qualidade têm duas vezes mais probabilidade de morrer prematuramente, de acordo com a análise de quase 310.000 pessoas – um fator de risco ainda maior do que os efeitos de fumar 20 cigarros por dia, obesidade ou sedentarismo.

E as amizades mantêm seu cérebro afiado. Bons amigos nos encorajam a assumir riscos, atingir objetivos e perseguir nossos sonhos. Todas essas novas experiências e oportunidades ajudam a manter o cérebro flexível e provocam neuroplasticidade, ou a capacidade do cérebro de criar novos caminhos neurais que promovem a função cognitiva. Um estudo transversal publicado no início da década sugeriu que o apoio social, na forma simples de escutar, está associado a uma maior resiliência cognitiva, que é um marcador da saúde do cérebro e determina o risco de doenças neurodegenerativas, como a demência. Os amigos também motivam comportamentos saudáveis. O oposto também é verdadeiro. A obesidade é contagiosa, propuseram as manchetes, depois de um estudo de 2007 que descobriu que quando uma pessoa ganhava quilos extras, seus amigos tinham maior probabilidade de se tornarem obesos também. Mas vamos nos concentrar no aspecto positivo subdimensionado na pesquisa, publicada no New England Journal of Medicine: a magreza também se dissemina. As pessoas com quem você passa mais tempo podem influenciar diretamente seu comportamento, desde os alimentos que você ingere até a prática de exercícios físicos.

Enfim, os amigos são especialmente importantes em tempos de crise e turbulência. Ter um amigo em quem se apoiar pode tornar a situação mais administrável e, temos que reconhecer, crises e turbulências têm sido bem presentes em nossas vidas nos últimos anos.

Todos esses dados são uma ótima notícia, porque o envolvimento com os outros pode ser uma das estratégias de saúde mais fáceis de acessar. É barato, não requer nenhum equipamento ou regime especial, e podemos aplicá-lo sem restrição de dose. Quer viver mais e melhor? Concentre-se em seus relacionamentos mais significativos. Mantenha contato com amigos, nem que seja enviando um “olá” ou, mais raro nos tempos atuais, fazendo uma ligação e usando alguns minutos de conversa descompromissada, cujo benefício será mútuo. Se tiver a sorte e privilégio de reunir os amigos para algumas risadas e recordar momentos impactantes nas vidas de vocês, faça logo. A única certeza que temos é a incerteza de quando poderemos fazer isso novamente.

 


Stephen Stefani é médico gaúcho, formado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Fez residência médica de Clinica Médica  e de Oncologica Clinica no Hospital de Clinicas de Porto Alegre. Foi fellow na Unibsersity of California – San Francisco / Stanford. O médico trabalha com protocolos de medicina baseada em evidencia e analises de custo-efetividade, servindo como membro de vários conselhos técnicos como Americas Health Foundatio, International Society of Pharmacoeconomcis and Outocome Research  e The Lancet Oncology. Seu primeiro livro “Clinica Médica” lançado pela editora Artmed se tornou um best sellers na área tecnica e, na 5a edição, ja ultrapassei 80 mil exemplares vendidos. Dr. Stephen Stefani escreve com regularidade para jornais e revistas e, no livro “Saúde (em) Crônica”, recém lançado, reúne algumas dezenas de artigos publicadas nos ultimos anos.

 

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

 

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