Ensaio

Uma cultura da palavra na arte-documental de Alexandre Kumpinski

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Uma cultura da palavra na arte-documental de Alexandre Kumpinski

   

Convocada a escrever sobre o trabalho de John Cage, no livro Musicage palavras, Joan Retallack compartilha com os leitores as Conversações gravadas que teve com o artista antes de sua morte. Ela utiliza esse recurso para afirmar a presença do artista, assumindo que a conversação exige a implicação do seu significado etimológico – estar com (con), virar-se (versar) para.  Com essas conversas, a escritora evidencia a presentificação da figura real do artista, e insinua uma transformação do estatuto estético da arte tão marcada com a presença dele: o deslocamento da figura mitológica do artista para uma posição in process do ato criativo.

     Não muito tempo antes de assistir ao último show do Alexandre Kumpinski, eu havia lido essas conversas entre John Cage e Joan Retallack, enquanto preparava um artigo sobre psicanálise e arte. Elas retornaram para perto a partir de uma especificidade do estilo da apresentação que Alexandre trouxe nesse dia: a arte aberta ao diálogo.

     No show realizado no Teatro dos Vampiros, no Centro Histórico de Porto Alegre, o artista convida o público a entrar com ele na história de suas canções. Contemplando um repertório que perpassa em torno de vinte anos de sua produção musical, ele documenta – em ritmo, palavra e melodia – formas singulares e, simultaneamente, símiles, de ler o mundo. 

   Abrindo o convite com uma canção inédita, “O dia que não foi (a utopia de um carnaval)”, primeira letra escrita por Alexandre, em 2003, por volta dos 16 anos, e que posteriormente foi produzida com a Apanhador Só em seus inícios musicais, o compositor traz o que parece ecoar de suas primeiras referências com o campo das artes e da linguagem. 

   A canção narra uma cidade que constrói a própria sombra, ao recusar o convite ao samba, meta-figurado através da imagem do raiar do dia. O dia hoje/ raiou feliz/ e, de tola, minha cidade/ não sambou/ porque não quis/.  A canção lembra A Banda, de Chico Buarque, indicando uma referência nisso que podemos nomear certidão pra nascer do artista: o trabalho com um legado estético-político rumo à transformação. 

 

 

 

Com os passos marcantes da gravidade do tempo que declina, conforme as escolhas humanas decadentes, a composição inédita remete a submissão da multidão operante ao concreto do dia a dia. No entanto, a submissão não é espontânea, ela parece estar naturalizada pela necessidade cotidiana de um determinado fazer, revelando que, se em seu peito, a cidade recusa o samba, deve haver um porquê: o coração da gente que já não tem/ que já não quer ter/ que não pode ter/ quase que mais nada/ nada não.

    Nessa digressão, en détail, de um coração pulsante em torno do ritmo maciço do dia que passa e pesa, em meio à multidão, emerge a presença do artista: na rua, só sobrou a ventania varrendo a minha graça/ esfriando a melodia / a bela melodia que cedeu pra melancolia/ mas restou pura no meu peito/ e eu não me entrego não.

    Essa emergência da arte sobre a figuração cotidiana recupera a própria dimensão utópica da arte, que coloca em cena o mal-estar de um tempo, de um instante, e abre espaço para reflexão crítica. Estudiosos no tema da utopia entendem que, essa palavra derivada do grego (U – não), (TOPOS – lugar), a utopia é um lugar que não existe na realidade. A dificuldade de localizá-la no espaço é a possibilidade de seguir em frente, remetendo à ideia de um movimento do estado de insatisfação em busca de mudança. A utopia é, assim, um lugar que existe enquanto um ideal, que tem a marca da inconformidade e do desejo de transposição. 

    Nesse contexto, a utopia (ou a canção como metáfora) deriva, assim, de um efeito de observação da realidade, de uma inconformidade que se une à sensibilidade do artista. Na esteira desse pensamento, o dia que não foi é também, na qualidade reflexiva da canção, um outro possível dia que já é (carnaval) – “O dia que não foi (a utopia de um carnaval)”:

 

O dia
hoje raiou feliz
E, de tola, minha cidade
Não sambou porque não quis

Queria ver na rua um turbilhão
Virado inteiro em alegria
Aquecendo o coração

O coração da gente
que já não tem
que não quer ter
que não pode ter
Quase que mais nada
Nada não

O sol
Contrariando a solidão
Bem forte brilhou na praça
Convocando a multidão

A multidão alegre
Ébria, feliz e saltitante
Que não se deu nem que por instante
Ora, por que não?

Na rua,
Só sobrou a ventania
Varrendo a minha graça
Esfriando a melodia

A bela melodia
Que cedeu pra melancolia
Mas restou pura no meu peito
E eu não me entrego não

 

   

 A convocatória a uma transformação do estado das coisas é um elemento presente em outras composições interpretadas pelo artista, como aparece, por exemplo, em Reinação, RJ Banco Imobiliário, Rota, que estão presentes no repertório escolhido.

      Em Reinação, o autor apresenta a narrativa do desenrolar de uma decisão que foi  tomada por alguém, em contrapartida à renúncia de uma certa ordem: instituiu o fim da pressa/ decretou o deixa pra lá/ em seu peito mais amores / sem bandeira e sem fuzil / confortável mãe gentil. A ordem tem sua alegoria referenciada na letra que encontra a melodia do hino nacional brasileiro em confortável mãe gentil. Essa articulação da ordem com a saudação à pátria remete à recusa da submissão dos destinos pré-estabelecidos: assinou um documento / permitindo o bem-viver / e um brado forte e retumbante se espalhou nos meios fios / teve gente que sorriu. Anunciada a decisão, abre-se o convite para um outro modo de viver, aludindo a uma brincadeira infantil: quem quiser brincar / põe o dedo aqui / que já vai fechar o abacaxi / quem quiser mudar / quem quiser brincar. Nessa decisão, que indica a necessidade de revogar a covardia para tentar algo novo, deixa-se cego entre outros mil / o nó de tudo o que é vil. Com esse ritmo de transformação, que imprime um novo sentido ao que pareceria o destino bem-sucedido de servir a ordem do progresso, no país, surge um novo céu (o mais) azul na bandeira do Brasil:  suprimiu a covardia / eliminando a luta vã / verás que um filho teu não foge / ao firmamento azul anil / o mais azul que já se viu.  Aqui, a mudança de perspectiva inaugura um novo firmamento: a função estética de uma justaposição dos paradoxos.

        RJ Banco Imobiliário inicia com os versos repetindo as palavras alvéolos quadrados, que, no gerúndio respira coisas na cidade: alvéolos quadrados respirando gente / alvéolos quadrados respirando carros / alvéolos quadrados respirando motos / alvéolos quadrados respirando sombras / alvéolos quadrados respirando pombas / cachorros e gatos, ratos e baratas.  Tendo como título RJ Banco Imobiliário, os versos parecem fazer referência ao valor atribuído a alguma coisa como condição para viver, uma vez que o Rio de Janeiro é uma das cidades que tem, em termos de especulação imobiliária, o valor de metro quadrado por área mais caro no Brasil. Traz também a referência ao jogo Banco Imobiliário, que consiste em um jogo de tabuleiro em que os participantes lançam os dados para se movimentarem pelas casas na área delimitada do jogo, e ao pararem em algum terreno que já tenha dono, iniciam-se as negociações.  A indicação do gerúndio como forma nominal do verbo imprime a noção de que esse é o jogo que acontece, e que segue acontecendo.  Cortada a melodia para uma versão samba popular dos Pingos de Amor, de Paulo Diniz, a canção vai indicando que desse modo a vida vai acontecendo, com os dramas cotidianos:  ainda ontem pela praia alguma coisa retumbante em desespero me lembrou você / namorados tropeçaram e eu pisoteava só /.

 

 

       

Enquanto os dramas individuais acontecem, embalados por melodias consagradas, os fatores coletivos, reunidos nos versos em sucessão, funcionam como cenário, onde, na cidade do Rio de Janeiro parece que os excessos contra a vida passam aos olhos do dia como se não existissem. No entanto, as contradições indicadas tentam tornar nítido esse contexto: choque, camadas, melanina, exposição aos céus / baixo fator de proteção em nós / só você e deus eu e meus exus / superfantástico amigo / que bom estarmos vivos! / apesar que eu tô mal / rajadas de metralhadora / fazendo um arranjo bonito / numa bossa redentora / buquês de fogos de artifício / disparando um agito aflito / num reveillón inesquecível / areia esfoliando os pés / as mãos ao alto rendem jacarés / cabeça feita temperamental / concerto que vai sair caro / rio de janeiro banco imobiliário. Os cortes súbitos das melodias que acompanham as diferentes cenas letradas indicam uma espécie de apagamento, curto-circuito, vertigem, transmitindo uma impressão de cenas que surgem como se não fossem vistas.  Ao final da narrativa, a frase: pediu pra parar / não parou / pediu pra parar / não parou, cantada duas vezes em repetição sugere a insistência ao ouvinte para parar, chamando atenção ao que está acontecendo. Em contrapartida, a recusa a tal pedido “não parou” encontra a gravidade melódica que vai declinando e interrompe a música. Podemos inferir aqui um chamado para as condições ético-políticas do assujeitamento social e a presença da música como contorno na construção de sentido das palavras anunciadas.

        A canção Rota denota uma reflexão acerca dos efeitos dos modos de vida que tentam se instituir como universais. Essa posição reflexiva parece surgir no reconhecimento de que, ao viver um estilo de vida protocolar, em linha reta, produz-se uma ideia absurda de comodidade. A justificativa para tal ideia absurda parece vir de um convencimento de que uma posição subjetiva de fechamento, sem ouvir (a diferença) conquista-se uma satisfação plena. Os versos /delírios de comodidade nos conformam e convencem / sobre a forma de seguir olhando reto sem ouvir indicam essa reflexão de que a ideia de comodidade mimetizada é um absurdo da sujeição social. Em contrapartida, surge a arte:  entre as quadras / vai passando o ponteiro / e o meu pé quer tropeçar / o suor arranha, o rosto escorre / olho o caos na palma da minha mão / derreto e me misturo aos milhões que me carregam / e alucino na imagem daquilo / que devia ter um pouco mais de drama / entre as quadras / vai passando o ponteiro / e o meu pé quer tropeçar / vou seguindo a minha rota sem que eu possa controlar:

 

 

 

No entanto, esse modo de ler as canções não é sugerido previamente pelo artista. Não há como saber se os elementos figurados são alegorias inventadas para fins poéticos, ou se eles expressariam imagens abstraídas de algum tipo de caixa preta. No show intimista, realizado no Teatro dos Vampiros, em Porto Alegre, o compositor não indica um itinerário ou uma objetividade que possa delimitar o significado dos elementos de construção das canções. O significado ou sentido das composições entra em relação com a posição de escuta do público. 

          O estilo documental que vai se materializando ao longo da apresentação mostra uma historização que se constitui em segundo plano, enquanto o artista vai anunciando momentos de vida que coincidem com o momento de produção das canções. Assim, tomamos contato com uma espécie de historial, ao estilo faixa a faixa, indicando uma produção musical que passa por: 1. um interesse juvenil da época de escola, e que lança o trabalho com a Apanhador Só – momento do show em que da plateia, sobe ao palco Fernão Agra, para interpretar Na ponta dos pés, a convite de/ e com Alexandre, recordando a marca sucateira dos artistas; 2. uma realização de projeto solo, contando com diferentes parcerias, entre as quais: Danichi Hausen Mizoguchi, Bruno Neves, Negra Jaque, Lúcia Tietboehl (com quem também traz a filhinha que eles têm juntos – a Isa); 3. o mais recente trabalho com Ian Ramil (parceria de longa data), que evidencia um trânsito entre cinema e uma nova canção, anunciando algo como o estado de um frio na barriga, ao estilo novidades transformadoras, que surgem como fora de série.

 

Alexandre Kumpinski e Fernão Agra no Teatro dos Vampiros em Porto Alegre. Foto: Arquivo Pessoal

 

   

O modelo faixa a faixa apresentado oferece uma outra perspectiva das canções, ao incluir novas palavras, abrindo um diálogo com o público. Essa proposta se aproxima com o que o filósofo Giorgio Agamben traz como reflexão sobre uma noção de abertura da arte com o público, ao incorporar uma perspectiva entre o dizível e o visível, mostrando, assim, que dada ao diálogo, a palavra adquire uma espécie de função de fazer ver, instituindo um novo ângulo de visibilidade. O fazer ver, no entanto, não se evidencia por um significado definido de uma vez por todas. Não há uma tradução do que se fala. Ele segue a lógica do indício, que se apresenta no campo do real, a circunscrever uma nova significação.

      Em psicanálise, esse jogo enigmático entre o visível e o dizível está alicerçado no que entendemos como função ética da palavra, que pode encontrar na noção de significante uma dinâmica entre os efeitos de significado e de significação. Significante é um termo tirado da linguística de Saussure, a partir de um interesse do psicanalista Jacques Lacan. 

     O psicanalista utiliza essa noção para se referir ao som, a imagem, a palavra ou outros elementos que podem representar uma significação, entendendo que o significante é um caminho através do qual a palavra ou outros elementos encontram seu significado. Cada pessoa atravessada pelos efeitos de linguagem evidencia uma atribuição singular para o significado de alguma coisa, desde a perspectiva da cadeia associativa. Nesse sentido, a palavra não tem um significado definido de uma vez por todas. O que define o seu significado são os efeitos produzidos na cadeia significante, entretempos, ou seja, os efeitos de linguagem que as palavras podem desvelar em posição associativa, quando endereçadas a um interlocutor. 

      Essa qualidade oferece a possibilidade de desfazer uma ordenação da representação, dando lugar a uma relação substitutiva, tendo no lugar do sentido representado, o sentido construído. O sentido construído, por sua vez, requer a implicação de um décalage, um tempo de suspensão do que se tem, digamos assim registrado, como sentido atribuído. Ou seja, para o sentido construído acontecer, é necessário um tempo de abertura para a diferença. Essa é uma ideia que Sigmund Freud traz ao introduzir a noção de declínio do complexo de édipo, ao considerar que existe um tempo singular de reconhecimento da diferença, marcado por uma nova ação psíquica, a circundar uma recém-chegada perspectiva. Nessa lógica, uma ideia recém-chegada pode ser que se institua como tal ou como outra coisa, em um a posteriori, num só depois de uma articulação da cadeia significante.

 

 

    

Uma interlocução desses elementos com a arte, podemos pensar, por exemplo, na relação que se estabelece do público com a obra do artista, como acontece com a canção Mordido. Ao anunciar essa canção, Alexandre relembra no palco um momento político que coincide com uma aproximação do público com a letra Mordido, e explica que mesmo que não fosse uma intenção da banda (Apanhador Só) realizar uma produção com fins ilustrativos desse momento histórico, marcado, por exemplo, pela resistência contra o mascote da Copa, o famigerado Fuleco, entre os anos 2013 e 2014, aconteceu que passou a circular  na plataforma YouTube  uma montagem criada por outras pessoas que incluíram essa música no vídeo, borrando outros sentidos para a composição:

 

 

 

Outro exemplo desse tipo de lógica que se estabelece na cadeia associativa pode ser a que ocorre no vídeo que apresenta a canção Cartilagem, também interpretada pelo artista na ocasião desse show.

    A letra dessa canção parece trazer a narrativa de alguém que vai dar conta de diferentes aspectos da realidade: quilos de vontades/ frustrações, verdades, medos/, inserido em uma série de medos: medo, medo, medo, medo, medo, medo. Para tanto, infere-se que seja importante reconhecer, desde cedo, a se movimentar renunciando um pouco: Melhor que aprenda cedo/ A se virar cedendo/ Nesse ritmo, pode-se lidar de diferentes maneiras com esse contexto, balançando, esticando, mas mantendo-se firme ao propósito de conseguir dar conta, (ou não): balança, mas não cai/ estica, mas não rompe, ou rompe. Quando se anuncia um cenário de mudança, parece que esse alguém está em uma prancha, imerso em uma realidade que vai se alterar. Ao observar essa alteração acontecendo, parece haver uma dificuldade para conseguir corresponder a realidade como tal, de modo que, enquanto a onda tenta morder, esse alguém responde inversamente à realidade do contexto, sorrindo (ou rindo com medo, podemos pensar). 

    Parece que essa postura é uma tentativa de mudar essa realidade. Assim, parece surgir uma dúvida do que pode acontecer: Olha onda virando, eu vejo virar/ Vem pra cima mordendo, sedenta/ Querendo virar / eu sorrio pra ela querendo virar / olha a onda, olha a onda, vai ou não vai virar? / Entrando em novo contexto, a cena é caracterizada com a descrição de alguns elementos: Cegas guilhotinas/ Válvulas de escape/ novas consciências/ desastres, desastres/ Tribunais ao vento/ Tribos tristes, tigres/ Atropelando trastes/ Verdades, inverdades/. Dentro dessa onda, observa-se o que está acontecendo, e o que era dúvida se desenrola, quando se abraça essa nova situação, lidando na companhia dessa realidade: Olha a onda virando, eu vejo virar/ Vem pra cima beijando, tentando/ Querendo virar/ eu sorrio pra ela tentando virar/ olha a onda, olha a onda, a gente vai se virar/ Essa nova realidade dói :A tela dói no olho/ Dura cartilagem/ quem lê tanta postagem/ Espelho, espelho.

 

 

 

Acompanhando o vídeo acima, temos uma perspectiva de leitura que se amplia, como é a situação em que a montagem marca a parte /balança mas não cai/ estica mas não rompe/ ou rompe. Na possibilidade de romper, o vídeo mostra que uma parte desse alguém se transforma, e abre a cena para uma outra narrativa. 

    Na letra, originalmente, sem o vídeo, /ou rompe/ parece figurar um momento mais breve. Já na construção do vídeo, acompanhamos um desenrolar dessa perspectiva, que parece indicar um corpo que sente uma mudança ao romper com uma outra parte, abrindo uma nova perspectiva, com a entrada de um novo plano de cena. 

    Um pouco mais, podemos pensar a partir do ângulo que se estabelece com o uso de imagens de filmes ou fotografias antigas. Por exemplo, ao serem incluídas telas gráficas em imagens de filmes antigos, podemos ter a ideia de que a virada da onda indica uma passagem do tempo (passado e presente), que vai se caracterizando com novas modas (ondas), como o uso das telas, que podem ter uma atribuição criativa, como a montagem de um vídeo, de uma canção ou uma atribuição compulsiva, que pode estar sinalizada com a frase /quem lê tanta postagem?/ , lembrando um pouco uma referência de Caetano Veloso /quem lê tanta notícia/ (na canção Alegria, Alegria)

     Esses elementos dão a ver as diferentes transformações que as letras adquirem ao serem lidas, e interpretadas por outras pessoas. Essas modificações podem materializar uma nova significação, desde a perspectiva subjetiva do artista, passando pela interpretação de uma equipe de produção audiovisual, por exemplo, ou pela subjetividade do público, cada qual atribuindo uma singularidade interpretativa.

      Nas conversas de Joan Retallack e John Cage eles evidenciam o trânsito do processo criativo que vai adquirindo novas formas, a partir da inscrição da palavra, seja através do seu encadeamento associativo, seja pela suspensão das palavras na composição. 

     As derivações criativas em torno do objeto original da composição trazem para perto a noção de transformação do objeto artístico, colocando em movimento uma função estético-política da arte: produzir novos sentidos, criticamente, desde a historização do objeto artístico, reinscrevendo-se em um novo tempo. Essa é uma conjectura depreendida do pensamento de Giorgio Agamben, em seu livro intitulado O homem sem conteúdo.

     Nesse livro, o autor reflete sobre o estatuto estético da arte. Ele propõe um diálogo entre o problema estético fundado na experiência do artista, e a perda de sentido supostamente fundada na experiência do espectador. Assim, o autor sugere uma noção de estética, na qual esteja implicada criticamente uma qualidade do sentir. 

     Inserindo no debate a consideração do objeto histórico, pensado por Walter Benjamin, como algo que escapa à ordenação dialética e cronológica, Agamben defende um trânsito na transmissibilidade da cultura. Ele aposta no diálogo criativo entre artista e espectador, no qual a palavra implicada adquire uma função de visibilidade, de ampliação de perspectiva. Nesses termos, ele sugere uma transformação que preza pelo estatuto estético-político da arte, no lugar do estatuto moral.

 

 

  Reunindo esses elementos no texto, como objeto integrador, podemos considerar, assim, que as canções revelam uma função ético-política de transmissibilidade da cultura, enquanto significantes que se transformam a cada nova composição, e também, a cada nova audição. Ritmo, palavra, melodia, samples adquirem novos sentidos e significados a cada nova interlocução pública, desde uma implicação ativa do pensamento, podendo ampliar tanto a sensibilidade do artista quanto do público.

   E pensar que isso deve ter começado com uma curiosidade sobre caminhos percorridos, a pé ou de bicicleta, de quem se desloca de um ponto a outro do litoral, prestes a se disparar embebido em maresia, a uma quadra da avenida Beira Mar. Tudo tão vivo, tudo tão prestes, como uma inspiração de carnaval …

 

 

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
Alexandre Kumpinski e Fernão Agra no Teatro dos Vampiros em Porto Alegre. Fotografia. Arquivo pessoal.
Alexandre Kumpinski. Vulcão. Vídeo. Mídia eletrônica. Disponível em https://www.youtube.com/watch?feature=shared&v=GQKPdHNjkDM . Acesso em 15.09.24
Apanhador Só – Mordido (Clipe Ao Vivo). Vídeo. Mídia eletrônica. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zVqkS5sNrE0 . Acesso em 19.09.24
Apanhador só – Mordido. Vídeo. Mídia eletrônica. Disponível em https://www.youtube.com/watch?feature=shared&v=JquCJ6d8jHU . Acesso em 19.09.24.
APANHADOR Só. Na ponta dos pés. Música. Canção interpretada por Alexandre Kumpinski e Fernão Agra no Teatro dos Vampiros em Porto Alegre. 2024
CAGE, John. Musicage: palavras. John Cage em conversações com Joan Retallack. Daniel Camparo Avila (trad.). Rio de Janeiro: Numa, 2015.
FREUD, Sigmund. O declínio do complexo de édipo. In: FREUD, Sigmund. Amor, sexualidade, feminilidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
HOLANDA, Chico Buarque de. A banda. Música. Mídia eletrônica.  Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=n-uywG1_GnI . Acesso em 15.09.24
Imagem musical. Fotografia. Lisiane Leffa. Arquivo pessoal
KUMPINSKI, Alexandre. O dia que não foi (a utopia de um carnaval). Letra de música. Arquivo pessoal do artista.
____________________. Reinação. Letra de música. Disponível em https://apanhadorso.bandcamp.com/track/reina-o . Acesso em 15.09.24
___________________. Rio de Janeiro – Banco Imobiliário. Letra de música. Disponível em https://www.cifraclub.com.br/apanhador-so/rj-banco-imobiliario/letra/#google_vignette . Acesso em 15.09.24
KUMPINSKI, Alexandre; RAMIL, Ian. Rota. Letra de música. Disponível em https://www.vagalume.com.br/apanhador-so/rota.html . Acesso em 15.09.24
KUMPINSKI, Alexandre; MIZOGUCHI, Danichi; TIETBOEHL, Lucia. Cartilagem. Letra de música. Disponível em https://www.musixmatch.com/ . Acesso em 15.09.24
Kumpinski ● Cartilagem . Vídeo. Mídia eletrônica.  Disponível em https://youtu.be/3JZpQzPQ4IE?feature=shared . Acesso em 19.09.24
LACAN, Jacques. O seminário, Livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
_______________. O seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais em psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
Paulo Diniz  Pingo de amor  Inédito 1981. Vídeo. Mídia eletrônica. Disponível em https://www.youtube.com/watch?feature=shared&v=4kg4O6MRxdA . Acesso em 15.09.24
Pelo telefone Donga. Vídeo. Mídia eletrônica. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=X99_DMzHPNg . Acesso em 15.09.24
Rota. Vídeo. Mídia eletrônica. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=vcMjMqXz1jk . Acesso em 15.09.24

 


Lisiane Molina Leffa é Psicanalista. Membro associado do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre. Mestra em Psicanálise Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected] 

 


As opiniões emitidas pela autora não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

 

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