Reportagem

Cúpula da gestão Melo soube de rombo nas contas do hospital da Restinga antes de renovar contrato

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Cúpula da gestão Melo soube de rombo nas contas do hospital da Restinga antes de renovar contrato Em reunião na sala do então secretário de Saúde, a diretoria do Fundo Municipal de Saúde mostrou situações problemáticas na parceria com a Associação Hospitalar Vila Nova (AVHN). Foto: Joel Vargas/PMPA

Falta de comprovantes. Pagamentos indevidos realizados por meio de empresas em nome de diretores da Associação Hospital Vila Nova (AHVN) e a familiares do presidente da entidade. Repasses a servidores públicos com recursos da parceria com o município. Despesas duplicadas em recursos humanos. 

Essas foram algumas das práticas irregulares identificadas no Hospital da Restinga e do Extremo Sul e relatadas em reunião a integrantes do primeiro escalão da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e da prefeitura em reunião de 4 de janeiro de 2023. A Matinal teve acesso à ata do encontro.

Mas a apresentação das provas colhidas em quatro anos de inspeção da feita pela diretoria do Fundo Municipal de Saúde (FMS), responsável por fiscalizar a prestação de contas da parceria, não surtiu efeito. Realizada no gabinete do então secretário da pasta, Mauro Sparta, a reunião ocorreu sete meses antes da renovação da parceria por mais cinco anos. O novo acordo foi assinado em 18 de agosto de 2023 pelo atual secretário Fernando Ritter. 

Ritter firmou a renovação no mesmo dia em que a gestora do contrato, a médica e servidora municipal Karen Cristina Correa de Melo, após ser solicitada pela Procuradoria-Geral do Município, listou novamente os problemas, recomendou a reprovação dos relatórios de execução financeira da Associação Hospital Vila Nova, o ressarcimento aos cofres públicos e apontou a dificuldade de fiscalizar a quantidade de atendimentos feitos no hospital da Restinga.

Em 3 de outubro, a Matinal revelou a existência de um rombo de mais de R$ 173 milhões na prestação de contas da entidade. O caso está sendo investigado pela Polícia Federal a pedido do Ministério Público Federal. Apesar de negar a existência do inquérito, o prefeito Sebastião Melo (MDB) abriu uma tomada especial de contas, procedimento administrativo para apurar danos à administração pública, a respeito do caso.

Ata da reunião ocorrida em janeiro de 2023

Falas contraditórias

Na reunião de 4 de janeiro, na sala do secretário, a diretoria do Fundo Municipal de Saúde (FMS) mostrou as situações problemáticas na relação do município com a Associação Hospitalar Vila Nova (AVHN). As  irregularidades já haviam sido documentadas e remetidas ao secretário, mas nessa ocasião foram exibidas na presença da cúpula da saúde.

Além de Sparta, estavam presentes o secretário-adjunto da SMS, Richard Dias, o então secretário municipal de Transparência e Controle, Gustavo Ferenci, o controlador-geral do município, Sílvio Zago, e a procuradora-chefe da prefeitura, Paula Carvalho da Silva Kleinowsk.

A diretora do Fundo Municipal de Saúde lembrou que aqueles não eram os primeiros apontamentos negativos em relação à gestão da AHVN. Um assessor técnico advertiu sobre os reiterados pedidos da entidade por mais celeridade nos pagamentos. Para ele, esse pedido não se justificaria, uma vez que os repasses são feitos sempre antecipadamente. A solicitação evidenciaria, na sua opinião, conforme registra a ata, um potencial risco de descontrole financeiro que poderia ameaçar a sustentabilidade da parceria em médio e longo prazo.

A preocupação parecia comum a todos os presentes. Durante a reunião, o controlador-geral Sílvio Zago anunciou que, em razão do prazo final da parceria, previsto para agosto de 2023, estava elaborando uma “nota de controle interno” a ser encaminhada à SMS, para tratar de valores não comprovados pela AHVN até aquele momento. Segundo Zago, o montante chegava aos 60 milhões de reais, conforme contabilidade feita por meio dos documentos inseridos no Sistema de Gestão de Parcerias (SGP), o sistema de parcerias da prefeitura. Essa seria a diferença entre o valor repassado pela prefeitura e a despesa apresentada pela entidade. Zago se referia aos repasses realizados em 2022, parte dos mais de 173 milhões citados em reportagem da Matinal

O documento registra que “houve debate” sobre as inconformidades em relação à Lei 13.019/2014, que estabelece regras nas parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade “e quiçá economicidade por prática de valores superiores ao de mercado”.

Na ocasião, foi registrada em ata a ausência de Karen Cristina Correa de Melo e Laline Menna Barreto, médicas servidoras da prefeitura que são gestoras da parceria, e que estariam em férias naquela data. Conforme o documento, foi destacada a “necessidade de ciência imediata aos gestores da parceria”. Em 23 de janeiro, porém, 19 dias depois do encontro, Karen Melo comunicou por e-mail que não estava de férias no dia da reunião e não fora avisada do encontro no gabinete do secretário.

Quem representou Karen e Laline na reunião foi o então diretor de contratos da SMS, o médico e servidor público municipal Vinícius Greff. Greff é um dos sócios em uma empresa que recebeu repasses da AHVN, a CR Rodrigues Assessoria e Consultoria Empresarial e Prestação de Serviços Médicos. Os servidores não podem, por lei, receber repasses oriundos da instituição à qual são vinculados. Greff foi dispensado da função de diretor de contratos em 24 de fevereiro daquele ano, após abertura de sindicância que teve resultado inconclusivo. Procurado pela Matinal, o médico não respondeu até a publicação desta reportagem.

Mesmo envolvido nos apontamentos de irregularidades, Greff emitiu sua opinião. Nesse momento do encontro, as intervenções do diretor de contratos da SMS mudaram de tom. Greff disse que a possibilidade de não renovar a parceria com a AHVN seria um problema, em função do curto prazo para um novo chamamento público de outra entidade para gerir a casa de saúde. Afirmou também que a Associação Vila Nova cumpriria suas obrigações nos “aspectos qualitativos” da parceria, sem demonstrar razões objetivas para isso. 

O controlador-geral Silvio Zago, que primeiro havia esboçado preocupação com a falta de comprovação de 60 milhões de reais, também disse “não haver óbice” para a continuidade. 

Sete meses depois, o contrato para gestão do hospital da Restinga foi renovado até 2028. Além da renovação dessa parceria, a prefeitura assinou 11 aditivos com a Associação Hospitalar Vila Nova para a gestão do Hospital da Restinga. 

Novos contratos viriam logo depois, como o do programa Agiliza, para reduzir filas no SUS, e o da Atenção Primária em Saúde (APS). No APS, o prefeito Sebastião Melo destituiu a comissão que elaborou a primeira lista, onde não constata o AHVN. Na listagem refeita pela nova comissão, a entidade voltou a constar entre as organizações da sociedade civil (OSCs) que poderiam gerir unidades básicas de saúde. A inclusão de uma organização com quatro anos de contas reprovadas levou a diversas manifestações do Conselho Municipal de Saúde (CMS).

AHVN teve 175 dias para se explicar

Os indícios de omissão da prefeitura quanto às falhas da entidade privada na gestão do hospital da Restinga tornam-se mais graves à luz das declarações do prefeito e candidato à reeleição Sebastião Melo (MDB). Em debate na Rede Bandeirantes na segunda-feira passada (14), Melo elogiou a gestão prestada pela AHVN.

Melo também reduziu a gravidade das irregularidades durante o debate da Band ao negar que havia investigação da Polícia Federal (PF) sobre o caso. Disse ser só um problema de atraso da entidade na apresentação dos comprovantes: “um processo de complementação de documentação”. 

A entidade teve 175 dias para corrigir os problemas apontados pela fiscalização. O prazo máximo estipulado por lei é de três dias prorrogáveis até 10 vezes se houver justificativa, perfazendo 30 dias. A AHVN teve mais de seis vezes o prazo máximo estipulado por lei para entregar comprovantes de serviços prestados, explicar pagamentos indevidos e falta de três orçamentos para executar alguns serviços conforme exige a legislação.

AHVN teve 175 dias para adequar documentações

 

Estado cortou repasses ao hospital da Restinga

Em dezembro do ano passado, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) cortou os repasses destinados aos setores de traumatologia e ortopedia do hospital da Restinga para atendimento de moradores da Grande Porto Alegre. À época, a prefeitura alegou, ao jornal Correio do Povo, que o corte havia sido em razão de um novo programa estadual, o Assistir. A SES, no entanto, desmentiu a prefeitura. Disse que os repasses foram interrompidos pelo não cumprimento de metas.

Em nota, a SES disse: “A Secretaria Estadual da Saúde notificou o município de Porto Alegre por três vezes referente ao não cumprimento de metas — última notificação em 25 de outubro — exigidas para os repasses. Ou seja, recebia o incentivo e não prestava o serviço. Por exemplo, das 480 cirurgias de traumatologia que deveriam ser realizadas no período de maio de 2022 até agosto de 2023, foram realizadas somente 32. Importante ressaltar que a instituição foi oficiada por três vezes até serem tomadas as medidas extremas. Os serviços não deixarão de ser prestados, uma vez que já não vinham sendo executados. Com isso, a Secretaria Estadual da Saúde cumpre seu dever de zelo pelo recurso público, destinando verbas para serviços que efetivamente prestam atendimento ao cidadão. Os pacientes devem continuar sendo atendidos nos demais hospitais de referência da capital, como já vem ocorrendo.”

A Matinal questionou a Secretaria Municipal de Saúde sobre as questões apontadas na reportagem. Por meio de sua assessoria de imprensa, o órgão sugeriu que o questionamento fosse realizado por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). A LAI, porém, não é um sistema destinado a solicitar contrapontos, e sim um dispositivo legal para obtenção de dados e informações públicas. A reportagem fez esse esclarecimento à secretaria, abrindo novamente o espaço para contraponto, mas a pasta não respondeu até a publicação deste texto.

 

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