Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo CXXI: Carlinhos Hartlieb 

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Capítulo CXXI: Carlinhos Hartlieb 

Algo já falamos, muito ainda há que dizer sobre Carlinhos Hartlieb. Todos que o conheceram são unânimes em uma palavra: doçura. 

Carlinhos era um cara doce e quieto.

Nasceu Carlos Alberto Weyrauch Hartlieb, dia 28 de março de 1947, em Porto Alegre. Sua família era cheia de gente envolvida com música. Seu avô era o proprietário da mítica Casa Hartlieb, que concorria com Saverio Leonetti e sua Casa A Electrica no mercado de discos, instrumentos e partituras musicais na Porto Alegre de 100 anos atrás. Uma tia sua era cantora, a outra pianista. 

Adolesceu na rua André da Rocha, entre o Centro e a Cidade Baixa. E foi ali que, em 1963, assumiu o baixo acústico de um trio de Bossa Nova que se completava com o pianista Sérgio Reis e o baterista (sim, era baterista) Hermes Aquino. Carlinhos começou a compor aos 18 anos, em 1965, ainda num clima bossa. Mas aí Hermes chegou com uns discos dos Beatles e a gente já pode pular nossa história pra 1968.

 

 

 

Que foi quando, aos 21 anos, Carlinhos abandona a faculdade de História Natural (que depois de chamaria Biologia) da UFRGS para se mandar para São Paulo, matriculando-se no curso de Comunicações Culturais na ECA da USP. Pagava as contas trabalhando no Instituto Butantã, onde fora parar graças a seus conhecimentos sobre aracnídeos. Completava a renda escrevendo verbetes para uma enciclopédia da Editora Globo.

Volta a Porto Alegre rapidamente, para vencer o II Festival Universitário da Canção. A sua Por Favor, Sucesso é apresentada por ele, acompanhado da espetacular banda Liverpool. Os vencedores iam para o Festival Internacional da Canção, o FIC. E se saem muito bem na etapa paulista do festival. O Liverpool acaba contratado para gravar seu único LP, chamado… Por Favor Sucesso, que tem essa e mais duas músicas de Carlinhos: Planador e Cabelos Varridos.

Na cidade onde efervescia a Tropicália, Carlinhos conhece o pessoal do TUCA, o Teatro Universitário Católico – que havia conhecido o sucesso com o musical Morte e Vida Severina, de Chico Buarque e João Cabral de Melo Neto. Ele acaba assumindo a direção musical do grupo justo numa longa temporada por vários países da América Latina, que leva todo o ano de 1970. É ali que ele descobre as sonoridades andinas e o charango (instrumento de cordas) que seriam incorporados fortemente à sua música.

 

 

 

Na volta, seu passe é comprado pelo Teatro Oficina, convidado pelo próprio Zé Celso Martinez Corrêa, que já era então referência nacional, a vanguarda do teatro brasileiro. Carlinhos, seu velho amigo Hermes Aquino e a amiga Laís Marques, ambos também vivendo lá, passam a aparecer em programas como a Feira Permanente de Música Popular, da TV Tupi, dirigido por Fernando Faro. O trio começa a chamar a atenção da imprensa paulista (e também carioca). Eram o “grupo gaúcho” – que se completava com as bandas Liverpool e The Cleans (de Luís Vagner).  

Não era pouca coisa.

Só que depois de três feéricos anos paulistas ele, surpreendentemente, se manda da maior cidade do Brasil para um autoexílio num sítio em Viamão. Sentia que precisava processar toda a informação acumulada. 

O resultado toma forma em seu primeiro show: Sempre é Assim, de 1972. 

Zé Celso ainda o busca para mais um trabalho, mas em 1973 Carlinhos está definitivamente em Porto Alegre, para nunca mais sair. 

Numa entrevista prum jornal local declara:

 

Meus trabalhos sempre surgem de um reencontro com uma única realidade: Deus. Durante o tempo do Oficina a barra era bem outra. Foi trabalho e vida dura levada com muito amor e confusão por mais de 20 pessoas. Completamos trágica e naturalmente o ciclo que Tchecov deu aos seus personagens: nascemos, esperamos, quebramos e morremos. Eu vim morrer em Porto Alegre.

 

Começa trabalhando no que melhor sabia fazer: música para teatro – agora com o Grupo Província, de Luiz Artur Nunes. Em 1974, o segundo show, Toque, cumpre uma temporada de muitas semanas no Teatro de Câmara.

E aí ele aceita um desafio da equipe do Teatro de Arena porto-alegrense: montar e coordenar um projeto de música na pequena sala que era símbolo da resistência à ditadura na cidade.

É assim que surgem as míticas Rodas de Som do Arena, coordenadas por ele (hoje se diria “com curadoria de”). Dezenas de novos artistas como Nelson Coelho de Castro, Os Tapes, Mutuca, Utopia ou Jimi Joe se apresentam ali, – muitos deles estreando em um teatro. A noite de abertura é com o Bixo da Seda, a nova encarnação do Liverpool, que bota 240 pessoas numa lotação de 120, mais mil nas escadarias do viaduto, na vã esperança de entrar.

Ao longo das oito semanas em que coordenou o projeto – encerrando sua participação com um show solo seu – Carlinhos fundou um novo capítulo na música de Porto Alegre. 

E seguiu adiante.

Monta uma trilogia de espetáculos “multimídia”, que misturavam teatro, dança e artes plásticas, amalgamando pop, folk-rock, lisergia e o folclore gaúcho: M’Boitatá – a Serpente de Luz, Salamanca do Jarau (ambos em 1975, em longas temporadas) e Sonho Campeiro (no ano seguinte). Este último viajou por nada menos que 37 cidades do Rio Grande do Sul, numa turnê patrocinada pela Secretaria de Educação e Cultura do Estado – feito talvez jamais repetido por qualquer show de algum artista gaúcho. Os shows eram diferentes de tudo que a cidade tinha visto até então. Uma espécie de regionalismo psicodélico.

Em 1977, com os companheiros de viagem Bebeto Alves, Cao Trein, Everton Pires e De Santana, monta um novo espetáculo: Voltas. Que, por sorte, foi gravado pelo mesmo Anele da Rádio Continental em uma despretensiosa fita K7 e lançado em CD em 2003 pelo selo UPA!, de Bebeto, brilhantemente masterizado por Marcos Abreu

 

 

Fizeram uma longa temporada no auditório Tasso Corrêa, do Instituto de Artes da UFRGS.

Bebeto escreveu no encarte do disco, lembrando:

 

O Carlinhos exercia sobre mim uma saudável influência. Mais que saudável, uma enriquecedora influência. Pela primeira vez na minha vida tinha percebido, através da sacação do Carlinhos, que podíamos fazer uma música que nos diferenciasse em meio a tanta informação e tendências que se prenunciavam na música popular, tanto aqui no Brasil quanto no mundo todo. (…) Desembocar no mesmo rio que o Carlinhos já navegava. Ou seja: a fusão de rock’n’roll, do pop, com os ritmos regionais.

 

Em Voltas Carlinhos brilha com seu charango, seu violão de 12 cordas, sua gaita de boca, seus vocais e suas canções: Tô Aí, a belíssima Manhãs (com letra de Nei Duclós), Criar, Sonho Campeiro, Maria da Paz e a canção título Voltas.

Estava a ali a semente do disco coletivo Paralelo 30, da gravadora local Isaec – um marco realizado no ano seguinte.

Duas das mais interessantes, ousadas, comentadas e inclassificáveis canções do fundamental LP produzido por Juarez Fonseca são dele: Admirado por Todos e Maria da Paz – a única do disco que tocou bastante no rádio e ganhou até clipe no Fantástico.

Em ambas, melodias quebradas, ritmos insuspeitos, ecos roqueiros e andinos, tudo junto. O discaço da gravadora local Isaec, produzido por Juarez Fonseca, é o marco zero da nova música urbana da cidade, e juntava Carlinhos, Nelson Coelho de Castro, Bebeto Alves, Nando D’Avila e Raul Ellwanger. 

 

 

Entre 1979 e 1983 cria mais quatro shows – Dêem ao Homem Sete Dias; Encontro das Águas, em parceria com o ex-Almôndegas Pery Souza (dois meses em cartaz na Sala Álvaro Moreyra); Tempo de Borboleta; e Só Não Sai se Chover, com Pery, Hermes Aquino e Jerônimo Jardim. Os dois últimos, com bom público, no imenso Auditório Araújo Vianna, que então era a céu aberto.

Passa a trabalhar como produtor do Departamento de Assuntos Culturais da Secretaria de Educação e Cultura. Ali, cria o Projeto Lupicínio, com shows semanais ao ar livre na Esquina Democrática, sempre de artistas locais. Produz caravanas de músicos gaúchos para São Paulo, em 1980, e Rio, em 1982. No meio disso, em 1981, assume o cargo de diretor da Discoteca Pública Natho Henn, em Porto Alegre. Nunca a Discoteca foi tão badalada, com projetos de audições comentadas e programação bastante divulgada pela imprensa local. 

Segue trabalhando com teatro, em montagens que ficaram clássicas na cidade, como Pode Ser Que Seja Só o Leiteiro Lá Fora, texto de Caio Fernando Abreu dirigido pelo amigo Luiz Arthur Nunes.

E aí, em 1983, larga tudo pela segunda vez. Desta feita, para se dedicar ao primeiro disco solo, Um Risco no Céu

Nele estão grande parte dos grandes músicos porto-alegrenses daquele momento: Pedrinho Figueiredo, Kim Ribeiro e Luizinho Santos nas flautas e saxes, Rudi Cesar, Fernando Pezão e Chico Ferreti nos pianos e órgãos, Glauco Sagebin no teclado, Zé Flávio e Bebeco Garcia nas guitarras, Paulo Marreco no baixo, Edinho Galhardi e Fernando Pezão nas baterias, mais as múltiplas percussões de De Santana. Arranjos de Carlinhos, Rudi e Pery Souza. Participações especiais da cantora Loma no bolero Um no Outro e de Hermes Aquino em Linda, outro bolero, escrito pelos dois. 

O disco é um típico álbum de MPB da virada dos anos 1970 pros 1980. Tem um pouco de tudo, com momentos altos como a faixa título e o diferencial das sonoridades latino-americanas que espreitam a cada tanto (como na própria Risco no Céu, uma chacarera estilizada).

Com a fita pronta viaja para tentar vendê-lo a alguma gravadora do centro do País. Volta sem conseguir nada, frustradíssimo, e vai desopilar passando mais um verão na modestíssima casinha que construíra na praia do Rosa, em Santa Catarina, então pouquíssimo frequentada.

Dia três de fevereiro de 1984 seu corpo é encontrado nesta mesma casinha. Pendurado por uma corda, com os pés no chão, sem 11 dentes, morto há muitos dias. As circunstâncias de sua morte, surreal para um sujeito doce como ele, nunca foram esclarecidas. 

Tinha 37 anos. 

Aparentemente alegre e bem disposto, era admirado por todos.

 

***

 

Logo depois de sua morte, sua família recebeu uma carta da universidade de Harvard. Em 1963 – quando tinha 16 anos e uma caranguejeira de estimação – Carlinhos havia enviado a eles uma aranha muito esquisita que coletara no morro de Santa Teresa, em Porto Alegre. Quase 20 anos de pesquisa depois, concluíram que era, efetivamente, uma espécie não conhecida. 

Batizada a parti dali como alpaida hartliebi

(Até hoje o Museu de Ciências Naturais do Rio Grande do Sul tem incríveis 309 lotes de aranhas coletadas por Carlinhos nos anos 1960).

 

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Em 1986 é o tema de um dos volumes da série de biografias Esses Gaúchos, da editora Tchê (texto escrito pelos jornalistas Jimi Joe e Rossyr Berny).

 

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Dois anos depois, cinco depois de ser gravado, seu disco é finalmente lançado, numa parceria do selo Nova Trilha, de Ayrton dos Anjos, com a coordenadoria de música da recém-criada Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre. O LP sai em dezembro de 1988 e se esgota rapidamente. Foi relançado em CD em 2004, pelo selo Barulhinho – do mesmo Carlos Branco que fora coordenador de música da secretaria. E aí com várias faixas bônus que completam a história da Carlinhos: algumas gravações caseiras de temas como Teiniaguá e a impressionante milonga Sonho Campeiro. Mais Por Favor Sucesso, na versão do disco do Liverpool e, do Paralelo 30, Maria da Paz

 

***

 

Em 2008 o diretor Renê Goya Filho lança, na série Histórias Curtas da RBS TV, o documentário Um Risco no Céu, que ganha vários prêmios. Uma linda sucessão de depoimentos de amigos e imagens raras de época.

Com base no doc, Renê e o músico gaúcho Marcelo Delacroix montaram um espetáculo sobre a obra de Carlinhos, apresentado com sucesso em 2011 e 2012: Memórias, uma Homenagem a Carlinhos Hartlieb.

O documentário a gente vê aqui

 


Arthur de Faria é pianista, compositor e arranjador. Doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS, na área de canção popular. Produziu 28 discos, dirigiu 12 espetáculos. Escreveu 52 trilhas para cinema e teatro em Porto Alegre, São Paulo e Buenos Aires. Lidera a Tum Toin Foin Banda de Câmara e teve peças interpretadas por orquestras e solistas de várias cidades brasileiras. Tocou em meia dúzia de Países e 19 estados brasileiros. Lançou 20 álbuns e EPs e três livros sobre a música de Porto Alegre, dois deles você leu primeiro aqui na Parêntese, em capítulos.

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

 

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