Ensaio

Viver na mesma cidade de Milei

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Viver na mesma cidade de Milei Foto: Fernando Seffner

Milei iniciou seu mandato presidencial em 10 de dezembro de 2023. Eu cheguei a Buenos Aires em 8 de janeiro de 2024. Desde então, somos habitantes da mesma cidade. Este artigo fala do Milei que percebo nas conversas com colegas da universidade e com vizinhos, nas frases pintadas pelos muros da cidade, na torrente de notícias dos principais jornais acerca de seus atos, nos dados econômicos do país divulgados na web, nos meus diálogos com os alunos e alunas da escola secundária onde realizo trabalho de campo, na minha observação direta em manifestações, nas falas que escuto no ônibus, no metrô, na rua e nas cafeterias.

Ao chegar, ainda no início do governo, eu escutava comentários sobre o dia da posse e os primeiros discursos. Com variações, a frase dita por Milei “Nossa situação vai piorar antes de melhorar” era repetida. A ela se agregavam duas indagações. Vai piorar por quanto tempo? Quando vai começar a melhorar? Milei falou em melhoras que viriam a partir de abril. Depois condicionou as melhoras a um acordo com os governadores que se celebraria em 25 de maio, data pátria. As negociações com os governadores foram demoradas. O pacto acabou sendo celebrado em julho. No momento em que se publica este artigo, mais de dez meses de mandato, ninguém mais pergunta quando a situação vai melhorar, ou quando vai parar de piorar. É impressionante como esse tema perdeu vigor no dia a dia, substituído por uma enxurrada de notícias e preocupações em relação aos atos específicos do governo. Pelas paredes da cidade, as pichações que falavam em “Fora Milei” foram substituídas por pichações que conclamam a resistir a tais ou quais atos de seu governo, numa dispersão de pautas de luta. 

Os números da pobreza das famílias e do aumento da desigualdade mostram uma piora da situação para a maioria. Encerrado o primeiro semestre de 2024, entidades oficiais publicaram o resultado da Pesquisa Permanente por Domicílios (na sigla local EPH, Encuesta Permanente de Hogares). A pobreza atinge um pouco mais de 50% das famílias argentinas. Destas, quase 20% estão na situação de extrema pobreza ou indigência, seus integrantes indo deitar todas as noites com fome. Comparando com o resultado do segundo semestre de 2023, houve um incremento de mais de 5 milhões de pessoas que passaram a viver abaixo da linha de pobreza ao longo do primeiro semestre de 2024. Outros números, também originários de instituições oficiais (Dirección de Índices de Precios de Consumo), mostram que o caminho em direção à redução da inflação experimentou alguns ganhos. O índice de preços ao consumidor registrou alta de 3,5% em setembro, tendo o acumulado dos últimos doze meses ficado em 101,6%. Estes dados permitem conclusões para todo lado. Frente a uma plateia de empresários, Milei declarou que “todo mundo vê o milagre que estamos conseguindo, menos os argentinos”. 

A frase que mais se discute hoje em dia é aquela que foi, e segue sendo, a tônica dos discursos presidenciais: não há dinheiro. No original, “No hay plata, carajo!”. Em torno desta frase, há uma disputa política. Não há dinheiro para quem? Na visão de Milei, enunciada logo no primeiro discurso e a partir dali repetida continuamente, o ajuste fiscal será duro, e deve se concentrar com toda força sobre o Estado, e não sobre o setor privado. Por “setor privado” parece que se entendem apenas as grandes empresas. Mas o nível de informalidade aqui na Argentina, com a proliferação do empresário de si, ou trabalhador precarizado que se vira por si mesmo, é enorme, tal como no Brasil. Na visão neoliberal praticamente todos somos empresas, ou logo deveremos nos tornar empresas. Mas o discurso do governo diz, por vezes sem meias palavras, que “o ajuste não deve recair sobre as grandes empresas, que geram lucros e empregos”. Diz também que “a liberdade para empreender fica sufocada pela alta carga tributária, e então há que aliviar as empresas para gerar desenvolvimento econômico”. A ideia de que a Argentina tem a maior carga tributária do mundo aparece insinuada a todo instante nas falas oficiais e na imprensa de direita. Embora os dados e rankings mundiais comprovem que tal ideia é falsa, isso não impede a produção de uma legião de crentes nela.

 

 

Neste período, comprovei que três coisas pertencem quase inteiramente ao campo da oposição aqui: as manifestações de rua, a bandeira nacional e o patriotismo. Estas três coisas aqui não são um patrimônio da direita. Elas são um patrimônio da esquerda, ou das forças progressistas de oposição. O governo Milei é claramente um governo de direita ultraliberal, que se define como libertário. Ao chegar em janeiro fiquei assustado com a quantidade de bandeiras azul celeste e branco pelas janelas e praças. Logo me dei conta que, diferente do Brasil, aqui elas são carregadas em todos os atos contra o governo. Mesmo em um evento como o 8 de março, dia da marcha das mulheres, é nítido que a cor verde é de uso intenso, com o famoso lenço verde (pañuelo verde), bem como as bandeiras de cor do arco-íris do movimento LGBTI+. Mas elas repartem espaço em igual quantidade com bandeiras nacionais e faixas de cor azul celeste e branco. E com uma enorme quantidade de gente usando camisetas, blusas, bonés, lenços, meias e jaquetas com as cores nacionais. O mesmo vale para o discurso que fala em patriotismo. Ao lutar contra os decretos de Milei, uma das frases mais cantadas é “a pátria não se vende”. Nos protestos dos trabalhadores aeronáuticos para evitar a privatização das Aerolíneas Argentinas, um dos lemas é “os céus argentinos não se vendem”. As acusações de que Milei é um traidor da pátria são gritadas o tempo inteiro em manifestações, e se escrevem pelas paredes.

Nestes meses todos, não presenciei e nem fiquei sabendo de nenhuma manifestação nas ruas a favor de Milei. Duas linhas de ônibus que utilizo com regularidade passam pela Casa Rosada. Não há dia que não se tenha alguma manifestação por ali. Na maioria das vezes, são indivíduos isolados ou pequenos grupos protestando por algo. Foi neste lugar que vi, em duas oportunidades, manifestações públicas pró-Milei. Primeiro um grupo de não mais que 8 rapazes, vestidos de terno e gravata, levantando alguns cartazes escritos à mão, em apoio aos atos do presidente. E em outro dia vi um grupo de não mais que 5 mulheres brasileiras fazendo a mesma coisa. Na contramão dessa pequena ocupação das ruas em favor do presidente, assisti neste quase um ano a uma enorme quantidade de manifestações, algumas delas absolutamente massivas, como a do dia da memória e as duas marchas em apoio à universidade e à escola pública, onde a tônica era contrapor-se ao presidente. 

 

Fotos: Fernando Seffner

 

A manifestação pró-Milei que mais mereceu espaço e celebração foi realizada em maio, no Luna Park, um estádio para grandes eventos. Ali ocorreu uma mistura de show de rock e comício político, em ambiente fechado. O presidente discursou, cantou, usou roupas em seu estilo rockeiro e lançou seu livro Capitalismo, socialismo e a armadilha neoclássica. A imprensa comentou largamente partes do seu discurso, onde ele se definiu como anarcocapitalista e seguidor das ideias econômicas da escola austríaca, particularmente aquelas de Friedrich Hayek. Observei a coisa de longe e de fora, na calçada do outro lado da rua. O clima era de euforia e êxtase, com grande quantidade de jovens ingressando no estádio. Diversas pesquisas de opinião mostram que o apoio dos jovens a Milei segue superior a 50%, principalmente entre os jovens homens, enquanto o percentual entre jovens mulheres é menor e vem diminuindo mais rapidamente. Isto comprovo nos diálogos com os e as jovens na escola em que faço meu trabalho de campo. Muitos dos rapazes ali são simpáticos às ideias postas em circulação por Milei, particularmente as noções de liberdade de empreender e redução de impostos. Os ataques de Milei ao movimento feminista fazem com que muitas das alunas com quem dialogo na escola não tenham simpatia por Milei.

Milei foi eleito por uma coalizão intitulada “A Liberdade “Avança (LLA – La Libertad Avanza). As falas presidenciais são recheadas de alusões à liberdade. Os ataques ao socialismo, ao peronismo, ao kirchnerismo, à esquerda e a todo e qualquer inimigo de ocasião são feitos em geral denunciando a falta de liberdade. Desde que aqui cheguei é visível que bancos, universidades privadas, lojas, companhias de turismo, supermercados, shoppings e outros estabelecimentos ou empreendimentos incorporaram esta palavra em suas peças publicitárias. Para além de anarcocapitalista, Milei se define pela adesão às ideias do libertarianismo, e por esta via se fazem as críticas ao Estado. Ele já afirmou que assumiu o papel de Presidente, o principal gestor do Estado, para melhor destruir o Estado por dentro. A palavra liberdade é um conceito-chave para entender sua luta contra “as amarras que impedem a atividade econômica e o progresso”. É um tanto paradoxal, mas compreensível, que este vigor todo em defesa da liberdade tenha produzido neste período de quase um ano de governo uma proposição de lei para derrubar a liberdade de interrupção da gravidez via aborto, um decreto praticamente proibindo o direito de protestar em liberdade, fortes restrições à autonomia universitária, entraves à ação livre dos sindicatos, ataques à liberdade de cátedra, que aqui é um direito constitucional tal qual no Brasil, ameaças de censura a produções teatrais que critiquem o governo, interrupção do financiamento de grupos de atuação solidária que no entender do governo tem visão contrária a sua, recusa a fazer consultas públicas para saber se tais ou quais empresas públicas devem ser privatizadas, e muito mais do mesmo teor.

Destaco algumas das medidas mais polêmicas tomadas por Milei ao longo do ano, várias das quais fazem lembrar atos semelhantes do governo brasileiro anterior, também marcadamente ultraliberal e de direita. Embora o discurso oficial enfatize que “não há dinheiro”, a presidência argentina turbinou as verbas para a SIDE, o serviço de inteligência do Estado, a ABIN argentina. O aumento dos fundos secretos para este serviço de inteligência foi da ordem de quase 5.000%, sem que se tenham divulgado as rubricas de gasto, pois são secretas. Em julho deste ano os jornais publicaram matérias dando conta que cerca de três toneladas de lingotes de ouro das reservas do Banco Central da República Argentina haviam sido enviadas secretamente ao exterior. O governo primeiro desmentiu a informação, depois confirmou a operação, sem dar detalhes de para onde este ouro havia sido levado. Reportagens investigativas deram conta que os lingotes de ouro haviam sido levados para cofres de bancos da cidade de Londres que detêm títulos da dívida argentina. Em nome da liberdade, o governo publicou um decreto estabelecendo que a renovação da carteira de motorista (licença para conduzir) agora se fará por simples declaração pessoal, onde a pessoa indica que possui as condições para ser condutora, e anexa um atestado médico, tudo enviado em uma página web. Um decreto presidencial recente, e bastante polêmico, informa que o Estado tem 60 dias para responder a qualquer demanda individual sobre bens públicos. Se o Estado não se pronunciar dentro destes 60 dias, a demanda individual será tomada como positiva. Em palavras simples, se alguém demandar a posse de algum bem público, e o Estado não contestar em 60 dias, tal posse poderá ser efetivada. 

A vice-presidenta, Victoria Villarruel, manifesta um forte ativismo no sentido de libertar os militares já condenados por terrorismo de Estado na última ditadura. Igualmente, ela faz esforços para que se abram processos contra os grupos militantes de luta contra a ditadura. O governo vem aceleradamente demitindo funcionários dos centros de memória espalhados pelo país, com isso inviabilizando as atividades que mantinham. Visitei dois destes centros na cidade de Buenos Aires, e conversei com os funcionários, que relataram tais manobras. O Ministério da Economia vem progressivamente encerrando fundos financeiros para questões específicas. Recentemente, foram encerrados o Fundo Nacional de Emergências (para o enfrentamento de desastres climáticos), o Fundo Progredir (que alcança verbas para estudantes mais vulneráveis) e o Fundo de Proteção Ambiental dos Bosques Nativos. Por fim, vale destacar a escalada dos discursos de ódio e da produção de informações falsas. Aqui se denomina a um grupo de influencers apoiadores de Milei de “Ministério do Ódio”, o que faz lembrar o “Gabinete do Ódio” no Brasil. Os ativistas digitais de direita são aqui chamados em geral de trolls, com isso referindo-se a perfis anônimos que divulgam informações falsas ou então informações sobre a vida privada dos críticos de Milei, de forma claramente ameaçadora. Tal como no Brasil, a justiça já encaminhou processos contra influencers pelo crime que aqui se chama de “associação ilícita para produzir erosão na democracia”.

O movimento político que conduziu Milei à presidência se chama “A Liberdade Avança”. Mas o que mais percebo neste quase um ano vivendo em Buenos Aires é que “A Crueldade Avança”.

 


Fernando Seffner é professor da Faculdade de Educação UFRGS.

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

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