Resenha

Corpo e Castigo

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Corpo e Castigo Foto: Autêntica Contemporânea/Divulgação

E Deus Criou a Mulher é nome de um filme que me revolta. Não quero citar o nome do diretor, famoso também pelos seus relacionamentos com as mulheres definidas como as mais bonitas e apetitosas, porque penso que ele fez à sua geração e às que a sucederam um desfavor. E falo em apetite porque esse substantivo está entre os que mais direcionam o interesse de um homem. Na cultura machista, uma mulher tem de despertar fome e ativar o verbo comer. Mas quero falar sobre o que o filme trata: o desejo de liberdade e de rompimento com o controle social de uma jovem e onde o corpo feminino entra nisso tudo, tema que a escritora gaúcha Camila Maccari aborda no romance Infinita a partir do ponto de vista de uma moça com sobrepeso.

No filme, o corpo em questão é o da Brigitte Bardot, uma atriz curvilínea e esbelta, dentro das medidas de beleza de uma das indústrias mais moldadoras de padrões, convergente com as regras estéticas que transformam aparência física em capital. No caso dela, um corpo considerado tão perfeito que só mesmo Deus, em sua “sabedoria infinita”, poderia ter inventado. Ou seja, um corpo diferente dos corpos da maior parte das mulheres do mundo. Ficcional em um certo sentido. Fonte de muita frustração e de sofrimento, portanto.

E de sofrimento e de frustração, a ordem das palavras não altera as suas dimensões, as mulheres entendem. “Quando uma mulher olha para outra, ela não tem a menor possibilidade de saber qual é a imagem íntima que aquela mulher faz de si mesma. Embora desperte inveja por aparentar estar no controle da situação, ela pode estar passando fome”, diz a norte-americana Naomi Wolf em seu livro O Mito da Beleza. 

Eu, a Helena que vos escreve, por absoluta determinação genética, tenho baixo percentual de gordura. Meu organismo não demanda muitas calorias, o que, pensando em termos de saúde, parece positivo. No entanto, a única vez em que minha mãe perdeu o controle e me bateu, deu-me um tapa na mão durante o almoço, foi porque, aos doze anos, faltavam-me curvas, e ela achava-me lenta para comer. Não me chamou de feia, mas fez um movimento em prol da desconstrução da minha autoestima tal qual a mãe da protagonista do romance Infinita faz de modo sistemático com ela a partir de um presente.

 

Camila Maccari

 

“Pesava cinquenta e oito quilos quando ganhou de presente a primeira calculadora, no aniversário de dez anos, um incentivo que pretendia honrar a cada refeição. O presente veio junto com a primeira consulta em uma nutricionista e ela passou a ter em mãos a ferramenta para calcular a caloria de cada alimento que consumisse, graças a uma lista disponibilizada pela profissional, documento que ficava sempre em cima da bancada da cozinha, ao lado do cesto de frutas”, Maccari escreve, revelando a matemática de autorrejeição que se impõe sobre as mulheres desde a infância e a competitividade que essa dinâmica, ensinada quase sempre pelas próprias mães, desencadeia.

No Mito da Beleza, Naomi Wolf explica que nós, mulheres, competimos umas com as outras, em parte, por estarmos inseridas dentro do que ela chama de seita, ou seja, dentro dos julgamentos e valores estéticos patriarcais, e, em parte, para preencher, ainda que por um curto prazo de tempo, o mal-estar de não corresponder aos poucos modelos de beleza. Mal-estar que o mercado, com seus zilhões de recursos e procedimentos, pode amenizar. Afinal, as mulheres são corrigíveis e operáveis. Um cirurgião, por exemplo, pode brincar de Deus e manipular a aparência física de qualquer uma, parcelando no cartão de crédito o seu feito, o que não significa o encerramento da relação de sofrimento com a própria imagem e a cura dos transtornos alimentares decorrentes dos ataques e do desprezo da sociedade, inclusive de profissionais da área de saúde mental.

Para uma reunião com a psicóloga da agência e ter de ouvir que “a vida sempre vai apresentar situações desafiadoras, um dia é o trabalho, outro pode ser o relacionamento, um filho, um projeto pessoal, problemas com dinheiro, enfim. Não são os desafios que te desequilibram, mas sim o fato de você não estar firmemente equilibrada”, a protagonista do Infinita é convocada, mesmo depois de ela já ter assinado o seu pedido demissão no RH. Sente-se, a psicóloga, no direito de opinar sobre o que não lhe diz respeito. Não entende, a criatura, que o que precisa, na cultura, ser transformado não são os nossos corpos…

 

Infinita, de Camila Maccari
184 páginas
Autêntica Contemporânea, 2024

 


Helena Terra nasceu em Vacaria e vive em Porto Alegre. Publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013), Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021) e Os dias de sempre (Editora Besouros Abstêmios, 2023). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber O Que é O Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt). É jornalista e editora na Editora Peripécia e na Editora Besouros Abstêmios. É também conselheira e vice-presidente da Associação Literatura livre, no Rio de Janeiro. 

            


As opiniões emitidas pela autora não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

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