Entrevista

Giovanna Dealtry: “João do Rio antecipou o que se consagrou como Jornalismo Literário”

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Giovanna Dealtry: “João do Rio antecipou o que se consagrou como Jornalismo Literário” Foto: José Olympio/Divulgação

Luís Augusto Fischer conversou com Giovanna Dealtry sobre a nova edição de Vida vertiginosa (José Olympio, 2021), de João do Rio, do qual a pesquisadora e crítica literária foi responsável pela preparação, introdução e notas. João do Rio é o escritor homenageado da FLIP deste ano, que começa dia 9 de outubro, em Paraty.  

 

Luís Augusto Fischer – Primeiro conta, por favor, como começou teu gosto pelo João do Rio. Tem a ver com tua história pessoal, como cidadã carioca? 

Giovanna Dealtry – A primeira vez que tive contato com a obra de João do Rio foi no final dos anos 1990, quando cursava o mestrado em Estudos da Literatura, na PUC-Rio. Tive a sorte de ser aluna do Renato Cordeiro Gomes, grande especialista da obra do João do Rio. Minha primeira leitura foi A alma encantadora das ruas; uma espécie de choque descobrir, a partir do encontro com João do Rio, uma outra modernidade carioca que não me foi apresentada, que estava fora do meu raio de leitura. É preciso destacar também que o acesso à parte da obra de João do Rio só foi facilitado a partir dos anos 1990 pela criação da coleção Biblioteca Carioca, uma iniciativa da então Secretaria Municipal de Cultura, cujo principal objetivo era colocar em circulação obras significativas da literatura carioca há muito fora do mercado. Nessa mesma coleção foi publicada A mulher e os espelhos, também de João do Rio. Na mesma época, a Casa de Rui Barbosa, em parceria com a ed. Scipione e o IMS, lançou A correspondência de uma estação de cura e A profissão de Jacques Pedreira, ambas as edições com textos de Antonio Candido, Flora Sussekind, Alexandre Eulálio, entre outros. Faço essa anotação para demarcar a importância de políticas públicas para os estudos literários.

Essas primeiras leituras me apresentaram um Rio de Janeiro que ecoava a cidade atual. Não apenas pela descrição física, a nomeação dos lugares, mas pelo também pelo movimento, as multidões, a velocidade que, ingenuamente, acreditava ser uma característica da contemporaneidade. Então, sim, o reconhecimento dessa cidade em palimpsesto foi um fator de atração. Outra marca da prosa de João do Rio, também encontrada em outros autores, como Lima Barreto, é o humor, a ironia, com o qual me identifico muito.  

 

LAF – Na tua formação como professora de literatura, na graduação especialmente, ele tinha lugar compatível com sua qualidade, no currículo? 

GD – Eu cursei Comunicação Social, habilitação em jornalismo, nos anos 1980, então não, nunca havia ouvido falar de João do Rio. O que é uma pena já que Paulo Barreto é reconhecido hoje como o criador da crônica moderna. Não deveria ser um nome ausente dos cursos de Comunicação Social ou Letras. Tive o prazer, no entanto, de contribuir um pouco para essa defasagem quando dei aulas de Literatura Brasileira e Comunicação Social, no curso de Comunicação Social da PUC-Rio. E o objetivo sempre foi mostrar como as inovações trazidas por João do Rio para a crônica – as reportagens feitas nas ruas, as séries de reportagens temáticas, o uso de entrevistas – exigiam a qualidade do literato e a perspicácia do repórter para transformar o ordinário, o comum, em elemento de alta voltagem estética. Não é mais suficiente colocá-lo sob a alcunha de decadentista. É um autor que, aos 17 anos, começa nos jornais elogiando Zola (e várias textos vão valer-se de recursos naturalistas para ambientar o leitor), passa pelo diálogo com Baudelaire, o cinismo de Oscar Wilde, e termina a vida criando pontes com Portugal, um gesto visto como “retrógrado”, por volta de 1920.  

Hoje, fico feliz em ver alunas, que tiveram o primeiro contato com João do Rio em minhas aulas, continuaram suas pesquisas na pós-graduação analisando suas obras. 

 

LAF – Agora uma pergunta que nos interessa aos dois aqui: que mistério explica a tão baixa valorização da obra do João do Rio ao longo dos tempos entre sua vida e a nossa? Não parece óbvio que ele deveria ser mais lido, a partir pelo menos do Ensino Médio?

GD – Tenho encontrado alguns alunos, bem poucos, é claro, que já tiveram conhecimento da obra de João do Rio no Ensino Médio. Claro, esse processo ainda é muito centrado no Rio de Janeiro. Talvez esse seja um impedimento. De qualquer forma, João do Rio foi sendo apagado aos poucos da história da literatura e do mercado literário. Sem esses dois elementos, não me parece ser possível haver leitores. Acho que podemos levantar algumas hipóteses. João do Rio colecionou diversos desafetos ao longo da vida, incluindo dentro da ABL. Não à toa sua biblioteca foi doada para o Real Gabinete Português. Além disso, o campo literário da época estaria interessado em manter os holofotes sobre um autor que todos sabiam homossexual e afrodescendente? A própria crônica, gênero em que João do Rio foi mais profícuo, é vista como “suficientemente” literária para mantê-lo no cânone do século XX? Mas acredito que o ponto crucial é que temos uma crítica literária e historiografia marcadas pelo modernismo paulista, que não deixou muito espaço para João do Rio ou escritores de outras regiões do país que não estivessem em acordo com o cânone paulista, uspiano, de cunho marxista. O elogio de Cândido a João do Rio em “Radicais de ocasião” limita-se às crônicas em que o escritor demostra empatia com os trabalhadores. Em comparação com Euclides da Cunha e Lima Barreto, dois notáveis, sem dúvida, João do Rio aparecia como um autor menor e – pecado maior – não se mostrava, à primeira vista, interessado em discutir a nação. Hoje, já é possível perceber que João do Rio toma o caminho da crítica da modernidade, da perda da memória, para pensar a nação, via a capital do país. 

Acredito que os alunos de Ensino Médio não só gostariam muito das crônicas, mas também dos contos, marcados pelo mistério, o insólito. 

 

LAF – Uma questão de ordem turística: o Rio que ele flagrou e deu a ver, não apenas neste A vida vertiginosa, mas nos outros, ainda existe? Pode ser visto? A olho nu? Pode ser visitado? 

GD – O Rio de Paulo Barreto já era uma cidade em transformação. Uma cidade que desaparecia à medida em que ele escrevia. Muitos desses lugares foram colocados abaixo com as constantes remodelações da cidade, como o desaparecimento do Morro de Santo Antônio, local da crônica “Os livres acampamentos da miséria”. Também hotéis, como o dos Estrangeiros, desapareceram, assim como o Teatro Lírico. O que se mantém são as Igrejas católicas (ver a crônica “Como se ouve a missa do galo”), o Teatro Municipal, o Passeio Público, a confeitaria Colombo, pontos também frequentados pelos escritores. É curioso lembrar que João do Rio e sua mãe foram alguns dos primeiros moradores de Ipanema, praticamente um areal. Acredito que o mais visível seriam os trajetos feitos por ele em suas deambulações. O mais interessante, nesse sentido, é ler os textos com o google maps aberto para conseguirmos visualizar os percursos feitos pelo escritor. Em “As religiões do Rio”, primeira série de sucesso, ele apresenta ao leitor os caminhos percorridos, como do “Largo da Carioca à Praça da Aclamação”(atual Campo de Sant´Anna). Nesse percurso, ele vai encontrar  “um esverdeado discípulo de Alikali, Omancheo, como eles dizem, duas mães-de-santo, um velho babalaô e dois babaloxás”. (sic). Tal descrição revelava ao leitor da época que numa área movimentada da cidade, os sacerdotes passavam anônimos entre as multidões. Em outros momentos, interessa a João do Rio dar a dimensão de seu conhecimento factual da cidade, como na reportagem “Os exploradores”, em que faz referência aos espíritas que se aproveitavam da boa fé alheia.  “Nós visitamos uns cinquenta desses milhares de centros. A cidade está coalhada deles. Há em algumas ruas dois e três. Estivemos no Andaraí Grande, na rua Formosa, na estação do Rocha, na rua da Imperatriz, no morro do Pinto, na praia Formosa, no Engenho de Dentro, na rua Frei Caneca, na rua Francisco Eugênio, assistindo às sessões e ouvindo a vizinhança, que é sempre o termômetro da moralidade de qualquer casa”.

Muitos desses lugares, como a Praia Formosa, foi aterrada. Outros, como o Morro do Pinto, no mesmo bairro de Santo Cristo, permanecem; aliás hoje é um lugar repleto de bares, ao contrário do ar lúgubre conferido por João do Rio.

 

LAF –  De certa forma, a crônica que ele sintetizou, uma forma mista de testemunho pessoal com o que hoje seria a reportagem cultural, perdeu espaço por quê? Ou perguntando pela outra ponta: por que a crônica mais lírica triunfou sobre a que ele produziu? 

GD – Acho uma excelente pergunta. Se observarmos a chamada época áurea da crônica brasileira, por volta dos anos 1960 e 1970, encontramos os jornais e revistas coalhados de grandes nomes da nossa literatura, como Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, tantos! São efetivamente crônicas mas líricas ou reflexivas onde o “outro”  aparece dentro dos espaços da rotina do cronista; as ruas por onde transitam, o bairro onde mora, os bares que frequentam. Acredito que a geração das primeiras décadas do século XX estava efetivamente interessada no trabalho nos jornais – seja como cronista, caricaturista, repórter, redator e diretor de jornais etc. – como uma forma de intervenção na sociedade da época. Desde o século XIX, vamos acompanhar o nascimento de um jornalismo incisivo e que visa interferir na política e no cotidiano. João do Rio, ao sair às ruas, é esmagado pela realidade do outro que não está necessariamente em seu círculo. Acredito que ele seja um antecipador do que se consagrou como Jornalismo Literário, a partir de Gay Talese e Truman Capote.  Num outro diapasão, com uma escrita totalmente diversa, mas seguindo protocolos semelhantes, estaria João Antônio. Apesar de João Antonio estabelecer uma genealogia com Lima Barreto por meio da boemia e da condição marginal, ele também se aproxima, no interesse pela vida do outro, da obra de João do Rio. Talvez, ao longo do século XX, tenha ocorrido uma especialização, uma divisão formal, entre reportagem e crônica, entendida por esse viés mais intimista, que tenha resultado no desaparecimento desse tipo de produção híbrida. 

 

LAF – De onde te veio a ideia de produzir uma edição anotada? Tu tens gosto pela empreitada? Tens algum modelo de trabalho, alguma inspiração?

GD – Fui convidada pela editora Lívia Vianna, do grupo Record, para fazer as notas e o ensaio de apresentação de Vida Vertiginosa, pela José Olympio. A palavra empreitada é muito acertada. Por certo, foi um dos trabalhos mais desafiadores que já fiz, principalmente por ter uma data de publicação definida. Em resumo, o trabalho foi realizado em pouco mais de três meses. Desse ponto de vista, fico satisfeita. Ao comparar com outras obras anotadas nem tanto. Parece que tenho gosto porque fiz em seguida a edição anotada de Memórias de um sargento de Milícias, publicada pela Antofágica. Sofri menos, porque havia mais tempo e porque já tinha apreendido um pouco a dimensionar o tempo. No meu caso, organizei diferentes planilhas referentes a vocabulário, personagens e fatos históricos, locais, referências e influências literárias e semelhantes etc. Gosto muito das edições anotadas da coleção “Clássicos da Ateliê”, da Ateliê Editorial. Acho que o que mais aprendi nos dois processos é que a pesquisa só abre mais e mais portas. No caso específico do João do Rio me dei conta da quantidade de referências literárias e históricas com as quais ele trabalha. 

 

LAF – E essa homenagem a ele pela FLIP 2024: o que significa? Que expectativas tu tens a respeito da badalação que vai rolar em torno dele?

GD – Sou suspeita, mas já não era sem tempo termos uma homenagem pública desse porte, fora do espaço acadêmico. Acredito que muitos só o conhece pela A alma encantadora das ruas, seu livro mais conhecido. Sem dúvida é uma oportunidade de apresentá-lo como intelectual que foi. João do Rio esteve quatro vezes na Europa, foi a Buenos Aires, foi dramaturgo, contista, folhetinista, romancista, tradutor, correspondente estrangeiro, primeiro escritor a descrever os rituais do candomblé no Rio de Janeiro, fundador do jornal A pátria, diretor ao lado de João de Barros do periódico Atlântida, enfim, um homem do seu tempo, cosmopolita, mas sem deixar de pensar nas especificidades do país. 

Acredito também que João do Rio é um contemporâneo nosso (talvez por isso seu nome esteja tão em voga ultimamente) e isso deve ser aproveitado na FLIP. Não conheço outro autor brasileiro que tenha se debruçado tanto sobre os efeitos da modernização na nossa subjetividade. Desde o trabalho braçal ao consumo. Também acho que sua relação com Portugal deveria ser mais debatida. Recentemente, Gilda Santos e Orna Messer Levin, duas grandes estudiosas de João do Rio, organizaram o volume João do Rio plural – centenário de um acervo luso-brasileiro. E, claro, discutir João do Rio é enfrentar polêmicas, seja em relação ao racismo em seus textos (e do qual ele também foi vítima) ou em relação a sua homossexualidade. 

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