Ensaio

A vida vertida em linguagem teatral: Buenos Aires

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A vida vertida em linguagem teatral: Buenos Aires

São dramas, comédias, monólogos, marionetes, musicais, fantoches, histórias de vida, enredos de crítica social, obras literárias adaptadas ao teatro, denúncias em direitos humanos teatralizadas, clown, exibições ao ar livre, teatro ambulante (que é quando a gente acompanha os atores por um recorrido histórico), teatro de sombras, teatro no escuro, stand up. A cidade de Buenos Aires é uma usina teatral. A concentração mais famosa dos palcos está situada na avenida Corrientes e ruas laterais, a metros do Obelisco. Mas não há bairro da cidade sem teatros. Mesmo naqueles mais humildes onde andei, lá se encontram oficinas de teatro, teatros populares, teatros de arena, teatros ao ar livre, cooperativas de atores e atrizes. Há apresentações teatrais pela cidade todos os dias, elas não se restringem aos finais de semana. Abrir o jornal numa segunda-feira, e ler que há teatros disponibilizando espetáculos no turno da tarde, e que não são infantis, e igualmente no turno da noite, é um espanto.

Com a quantidade de brasileiros que circula na avenida Corrientes, é fácil identificar o que assistem: são preferencialmente os musicais. Basta observar as filas para ingresso nestes espetáculos, e se percebem grupos de brasileiros. É mais difícil apreciar uma obra teatral sem o domínio da língua. Os musicais são uma linguagem que ultrapassa fronteiras linguísticas. Para o bom desfrute de um monólogo, gênero teatral muito apreciado aqui, a compreensão do texto é essencial. Nos teatros de bairro, a maioria da plateia é da vizinhança, nota-se porque se cumprimentam, saem juntos caminhando pela calçada. Nos teatros da área central se percebem grupos de amigos e famílias, muita gente toma o metrô ou ônibus na saída, e há mais pessoas sozinhas na plateia do que nos teatros de bairro. Os ingressos variam entre 5 mil e 26 mil pesos, algo como entre 27 reais e 144 reais, em valores de outubro de 2024. Há muitos espetáculos gratuitos, em parques e centros culturais. Mesmo em teatros de bairro, é altamente recomendável que se adquiram os ingressos com antecedência, via aplicativos ou plataformas e e-ticket, pois os espetáculos lotam, e isso é algo que produz efeitos de verdadeiro movimento social. Não há encerramento de espetáculo sem manifestações de natureza política feitas pelo conjunto de atores e atrizes, e isso, no momento, tem muito a ver com a gestão absolutamente hostil à cultura promovida pelo governo Milei.

 

 

De modo rotineiro, tenho perguntado para as pessoas com quem trabalho e estudo aqui sobre sua frequência ao teatro. Percebo que várias delas são mais assíduas às obras teatrais do que ao cinema. Algumas seguem as produções de tal ou qual diretor ou diretora, outras seguem os desempenhos teatrais de tal ou qual ator ou atriz. E é muito comum que se escutem frases como “pertenci a um grupo de teatro no tempo da escola”, “fiz oficinas de teatro quando jovem”, “participo de um grupo de teatro de terceira idade”, “eu frequento oficinas de teatro perto da minha casa”. Uma observação atenta do teor das obras teatrais em cartaz, semana a semana, permite perceber que aqui não se reproduzem apenas obras consagradas – encenar Macbeth, de William Shakespeare, por exemplo. Aqui se inventam textos originais e roteiros originais, em diálogo com grandes obras ou grandes questões. Do que venho observando, a maioria das produções teatrais caminha por uma autoria nacional, muito articulada com questões políticas nacionais ou de alcance mundial. Já no âmbito dos musicais podemos afirmar que a reprodução de obras consagradas constitui a maioria da oferta. Por conta disso, ninguém precisa ir a Broadway para assistir Legalmente Loira, A Caixa Mágica, Matilda, Rent, Escola do Rock, Mamma Mia! Basta ir a Buenos Aires, notadamente na avenida Corrientes.

Muitas peças teatralizam problemas sociais, mas isso não significa que sejam peças teatrais aborrecidas, ou aulas de História ou Ciência Política. Temos comédias, com enfrentamentos bem-humorados dos problemas sociais. E temos dramas pessoais costurados com problemas sociais e coletivos. E temos obras teatrais que nos capturam pelo cômico no início, e de um momento a outro viram para o drama, e nos impactam. O melhor que posso fazer é descrever o conteúdo das peças que mais me atraíram até o momento. É uma viagem pela vida vertida em linguagem teatral. De todas saí emocionado.

 

 

PUNDONOR. Uma professora universitária de Sociologia, depois de afastada algum tempo das atividades, por problemas de saúde mental, retorna ao exercício profissional. Sua primeira aula é sobre Foucault. Ela fala de norma, normalização, saber, poder, sexualidade, loucura, vigilância, disciplina. A cada conceito, se põe a falar de sua vida, interrompendo a exposição acadêmica. Cada vez fala mais de sua vida, a partir dos conceitos. A narrativa começa como comédia. Termina de forma dramática. A plateia do teatro fica convertida em sua classe de alunos.

PRIMA FACIE. Uma jovem e exitosa advogada, vinda de família pobre, faz carreira defendendo seus clientes, homens acusados de crimes de violência sexual contra mulheres. A seu modo, ela acredita firmemente na justiça, na lei, nos princípios do direito. A vida dá voltas, e ela se converte em vítima de violência sexual, cometida por advogado colega de trabalho. Percorre então delegacias e tribunais, agora como vítima, e não como advogada. Se interroga acerca da lei e dos procedimentos judiciais e policiais em casos de violência sexual. A narrativa começa em ritmo de comédia, enquanto ela narra seu sucesso profissional. Termina como drama, quase uma bofetada na cara da plateia, instigada a refletir sobre a realidade da violência sexual contra mulheres.

DESPOJOS. Três apresentações breves, todas elas mostrando pessoas simples enfrentando a crueldade da exploração capitalista. Uma trabalhadora doméstica reage à tirania da patroa e acaba sendo agressiva. O que era uma questão doméstica acaba sendo lido como ação terrorista. Uma mulher trans volta a casa familiar para um almoço, e ali se defronta com as pequenas tiranias do modelo heteronormativo. Uma mulher que trabalha como segurança em um supermercado se vê na contingência de necessitar da ajuda de um cliente que acaba de roubar alimentos para lhe ajudar a preservar seu emprego.

CERRARON SUS PIERNAS: MUJERES PATAGÓNICAS. Entre os anos de 1920 e 1921 os trabalhadores das estâncias de criação de ovelhas da Patagônia protagonizaram greves e ocupações, por conta das péssimas condições de vida e trabalho. Derrotado o movimento, com a matança indiscriminada de grande número de trabalhadores, as tropas do exército decidiram premiar os oficiais com uma visita ao bordel “La Catalana”, na cidade de Puerto San Julián. A peça traz o relato das 5 meretrizes, que se recusaram a atender os oficiais, chamando-os de assassinos de trabalhadores. O episódio ficou conhecido na história argentina como a “rebelião das putas de San Julián”, o ato das mulheres fecharem suas pernas aos oficiais.

IMPRENTEROS. Trajetória de família contada pela filha, atriz principal na peça, com a ajuda de seus dois irmãos e outros atores. O pai foi gráfico e dono de uma gráfica a vida toda. A narrativa, apoiada em depoimentos e documentação familiar, permite conhecer a história de uma pequena gráfica portenha, igual a outras tantas que existiam antes do surgimento da moderna impressão industrial, que acabou com os pequenos estabelecimentos. Trata-se de papéis, tintas, cheiros, gestos, ruídos, guilhotinas, máquinas, cilindros, bobinas. No meio disso tudo, vidas, crises familiares, economia em bancarrota, casamentos, separações, festas de quinze anos. A plateia sai do espetáculo expert acerca da imprensa e suas vicissitudes políticas.

UN GUAPO DEL 900. Obra clássica do teatro argentino. Na Buenos Aires dos anos 1900, estamos em tempos eleitorais corruptos. Conjuntura que reconhece apenas amigos ou inimigos, correligionários ou opositores, radicais ou conservadores. Aos humildes, sem voz política, só resta a lealdade absoluta a alguma das oligarquias, para sobreviver. Ou se vive de fazer favores ao político de plantão, ou se cai na miséria. Ecuménico López, espécie refinada de capanga, leva a lealdade a um político às mais extremas consequências. A obra envolve crime por adultério, pressão para obter votantes (mesmo que se trate de pessoas já falecidas), manobras para burlar as leis. A atualidade de tais temas na vida política de qualquer país torna a peça exemplar.

GOMEZ BROTHERS. Transcorrem os anos da Segunda Guerra Mundial. Dois irmãos são artistas de shows ao estilo de musicais, indo de uma cidade para outra. Um deseja seguir com esta vida, até alcançar uma posição na Broadway. O outro deseja largar tudo e casar. Um acompanha as notícias da guerra e do mundo. O outro não deseja saber de nada disso. Os diálogos e disputas entre eles trazem à tona temas que são parte da vida de todos nós, particularmente a dificuldade de levar adiante uma parceria familiar, em meio a tantos tremores políticos e pessoais. A peça é toda acompanhada por um grupo de cinco músicos, o que traz oscilações entre alegria e tristeza.

NOSTALGIAS DE CONVENTILLO. Conventillos eram habitações coletivas para as classes populares, comuns em Buenos Aires ao final do século XIX e início do século XX, quando a cidade recebeu grande número de migrantes, particularmente italianos e espanhóis. A peça reproduz a vida em um destes estabelecimentos. Mostra disputas, alianças, amores e vinganças entre pessoas que vinham de diferentes culturas, e ali compartilhavam suas vidas muito próximas. Oscila entre a comédia e o mais triste drama. Um destaque nesta peça foram as falas em diferentes línguas e dialetos de época, o que, para mim, dificultou um pouco a compreensão. A fusão de culturas europeias, formando a identidade argentina, é de certo modo celebrada na peça.

STEFANO. Texto clássico da dramaturgia argentina. Um jovem e premiado maestro italiano, recém egressado do Conservatório de Nápoles, convence seus pais, esposa e filhos a emigrarem a Buenos Aires, no sonho de “fazer a América”. A peça traça a genealogia de seu fracasso. Vivem amontoados em um porão, com parcos recursos, as três gerações. Todos argumentam e se indagam acerca de como e por que o fracasso se produziu. Difícil saber se o maestro fracassou, ou foi fracassado. As discussões na família trazem elementos pessoais, situações estruturais, rancores familiares. A obra tem carga fortemente dramática. 

LAS CAUTIVAS. Metade do século XIX. No meio de uma festa de casamento, um grupo de indígenas sequestra a noiva, Celine, mulher francesa. Já na tribo, ela encontra uma protetora, Rosalila, mulher indígena. A peça tem uma estrutura original. No primeiro ato, Celine relata o sequestro, a chegada na tribo, e o encontro com Rosalila. No segundo ato, é Rosalila quem narra a chegada de Celine na tribo, e seu encontro com ela. No terceiro ato, Celine relata a fuga dela e de Rosalila pela monótona paisagem da pampa, enfrentando perigos e aprofundando a relação íntima com sua parceira indígena. No quarto ato, é Rosalila quem relata a fuga das duas, a paisagem da pampa, os perigos e a descoberta do prazer sexual com Celine. Os desacertos dos relatos trazem momentos de comédia e de reflexão sobre o diálogo entre duas culturas tão distintas. No quinto ato as duas finalmente estão juntas em cena, e conversam, e declaram uma a outra o seu amor.

EL DAVID MARRÓN. No Museu de Belas Artes, frente à estátua do David de Michelangelo, um indígena e um loiro argentino se enamoram. Os indígenas têm um movimento de luta antirracista na Argentina que se chama de identidade marrom. As peripécias de um amor que desafia o estigma racial são apresentadas e discutidas. O monólogo oscila entre a comédia e o drama, e envolve três personagens: nosso David marrom conversa com Juan, seu namorado argentino loiro, e com o David de mármore, tomado como a norma da branquitude.

HABITACIÓN MACBETH. De modo absolutamente fascinante, um único ator interpreta sete personagens e várias vozes, acompanhado unicamente de um músico. A peça é tanto uma aula de atuação teatral, quanto uma aula de vida política, pensada enquanto atuação. Nos tempos em que vivemos, uma peça que nos mostra as pessoas fazendo coisas, que a elas pareciam inimagináveis alguns minutos antes, é de completa atualidade. As manobras políticas são uma encenação que exige tanto o sorriso da simpatia quanto o uso do punhal para abrir caminho ao poder. Frases dispersas ao longo do texto abrem conexões com o contexto político atual de autoritarismo.

AQUELLA MÁQUINA DE COSER…POR EL MUNDO ADELANTE. Não há nada mais vivo do que uma memória, frase de Frederico Garcia Lorca, bem resume o roteiro da peça. Na história da família, com pais migrantes de aldeias da Espanha para Buenos Aires, toma centralidade uma máquina de costura, marca Naumann. A máquina veio parar nas mãos de Filomena, a matriarca, como despojo tomado em uma aldeia bombardeada na guerra civil espanhola. A máquina atravessa o oceano e segue a história da família em Buenos Aires. A história teatralizada não apenas é verídica, como é a história pessoal da atriz que faz o monólogo. Impossível não se emocionar.

EL LOCO Y LA CAMISA. Uma família: pai, mãe, filho, filha e o noivo da filha que vem jantar pela primeira vez na casa. Ele é de um bairro rico, a família é classe média baixa. Todos falam o tempo todo, e ninguém escuta ninguém. Ao falar o tempo todo, escondem seus segredos. Os outros, como não escutam, também não percebem os segredos. Mas o filho, considerado louco, vai achando modos de ser escutado, e falar as coisas que enxerga. Os modos são os mais originais. As coisas são as mais pesadas. A peça é uma comédia na maior parte do tempo, mas no final vira drama, e as luzes se apagam. Muito impactante.

ESPERANDO LA CARROZA. É uma comédia clássica do teatro argentino, com larga trajetória em palco e filme. Num almoço de domingo, uma família com 4 irmãos, de diferentes classes sociais e casamentos diversos, discute com quem deve morar a mãe, já idosa e viúva. No meio de tumultos diversos, como falta de água e fofocas, a velha mãe desaparece, e é dada como morta. Um corpo é entregue, o velório se realiza, até que se dão conta que a velha está viva, o corpo foi identificado por engano. Há numerosas referências à política argentina. A plateia participou intensamente do espetáculo, parecia conhecer o roteiro por completo, inclusive alguns bordões. Me senti assistindo dois espetáculos, o que se desenrolava no palco, e o que se desenrolava ao meu lado, nas manifestações da plateia.

Concluo com duas observações totalmente prosaicas. Nos grandes teatros, há a figura dos “acomodadores”, funcionários que nos conduzem aos nossos assentos, e aos quais é de bom tom dar uma “propina”, ou seja, uma gorjeta. Adoro esta palavra, acomodadores. Estou sempre sozinho, então fico rodeado em geral por famílias, grupos de amigos, círculos de senhoras idosas, colegas de trabalho. Escuto as conversas. É absolutamente rotineiro que estejam discutindo aonde vão jantar depois do final do espetáculo. Saímos do teatro 23h. Vejo que se dirigem aos restaurantes da Avenida Corrientes e adjacências. Sigo alguns grupos. Pedem pizzas, pastas, carnes grelhadas, sanduíches de milanesa. Sempre acompanhados de vinhos. Fico espantado. Aqui ninguém parece sofrer com refluxo gástrico noturno.

 


Fernando Seffner é professor da Faculdade de Educação da UFRGS.

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

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