Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo CXIX: Hermes Aquino – 2 

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Capítulo CXIX: Hermes Aquino – 2 

De volta à entrevista de Hermes para Juarez Fonseca em 1976:

São Paulo e Rio não deram certo pra mim e, depois, teve a minha viagem pra fora, Peru e Colômbia, com o Tuca. 

Teatro Universitário Católico, uma das frentes da vanguarta teatral paulista naquele momento.

O Carlinhos Hartlieb tinha feito a metade da trilha sonora da peça do Tuca, eu fiz a outra metade. Ele tinha mais ligação com o pessoal, eu tava mais numa outra órbita, compondo coisas com o Tom Zé. Como pintou a viagem e eu já não tinha muito elo em São Paulo, me mandei mesmo. Em Bogotá, toquei guitarra na boate La Rampa.
(…)
Até que um dia encostaram em mim, pediram meu passaporte, que era de turista, e me levaram à “oficina”. Eu não entendia direito o espanhol, pensei “Bah, oficina… meu Deus!”, porque tava acostumado com filme em que levam o cara pra uma oficina e dão uma pauleira… Mas era o escritório, onde tinha um bigodudo, aí eu chamei um cara da Embaixada que me quebrou o galho. Eu disse que não tava tocando por dinheiro, mas na verdade tava ganhava 800 pesos por noite, era bacana. Eu entrava no show: “Y ahora… El espetacular hippie brasileño vá a tocar ‘Garota de Ipanema’, los sambas de Brasil e entonar sus tristes canciones”, blá-blá-blá. Eu entrava, cantava alguma coisa, mais duas músicas minhas, e o pessoal dançava. Fiquei uns dois meses entre Peru e Colômbia, depois voltei pra São Paulo.

Não estava mais acontecendo nada e daí, na virada de 1972 para 1973, volta pra Porto Alegre.

Me meti dentro do meu quarto e escrevi uma frase à giz na parede: “Como é que é, e a banda?” Acho que fiquei assim por um ano, com uma ideia embrionária de começar tudo de novo, só que não exatamente como tinha sido antes, porque não dava mais.

Seu irmão, Holmes Aquino, estava na rádio mais comentada da cidade, sucesso absoluto entre o público jovem. A já tão citada Continental. Ele começa a frequentar os bastidores da emissora, onde as estrelas eram Cascalho e Julio Fürst. Foi achando uma nova turma.

 E aí pintou um jingle da Gaúcha Car pra eu fazer. Fui pra casa, gravei, fiz outros jingles, produzi o programa do Cascalho Contursi e me ambientei bem. (…) Noutros tempos eu até poderia ter chamado eles de caretas, porque eu tava numa outra.
Com o tempo, fui enchendo o saco daquilo, achando um negócio muito insosso, sem vida. Duma hora pra outra, sei lá, eu me ocupava com macrobiótica, (…) achava que eu tava fazendo tudo, mas sem me flagrar que eu tava na casa da minha mãe, que alguém botava comida ali, pagava o aluguel ou me dava um sapato, como a minha irmã, que me vestiu e calçou durante um tempo… Pô, uma guria quase da minha idade!
E eu ali, um cara de talento, que poderia viver da profissão sem ser picareta. Depois a situação foi clareando pra mim. (…) Claro que dá pra acelerar o processo, mas se for rápido demais sem estar preparado, vai cair do cavalo, porque não pode responder por aquilo. 

Em 1975, Hermes tinha se estabelecido como compositor de jingles e produtor do Cascalho Time, do comunicador Antônio Carlos Contursi, o Cascalho. Só que o cara fazia jingles tão bons e que começaram a fazer tanto sucesso que começam a pintar shows, com ele acompanhado por Flávio Chaminé no baixo e Laurinho Nei na bateria. 

Entrevista pro Juarez, 1976:

O meu trabalho nessa área não envolve só uma questão monetária. Mais do que isso, é uma necessidade de expressar a minha arte, o que eu tinha dentro de mim. Comecei a fazer um jingle diferente aqui em Porto Alegre, tenho plena consciência de que eu abri um novo mercado. Comecei a fazer um tipo de letra que sutilmente menciona o nome do negócio, ou então um refrão que repete o nome da loja ou do cliente, como os Beatles falavam em amor ou qualquer coisa assim, freneticamente: “She loves you, yeah-yeah-yeah…”.
Tem a coisa de trabalhar em 30 segundos, que também é bacana, e tem o lado de grana, que é muito bom e vai dar chance de amanhã ou depois eu poder investir numa aparelhagem. Eu só não compro uma aparelhagem atualmente por achar um desperdício colocar dinheiro em know-how eletrônico nacional, que tá por fora.
(…)
Eu andei lendo uns livros e tem um velhinho, Claude Hopkins, que fez publicidade nos Estados Unidos da década de 1920. Ele diz que não adianta falar nada, porque a publicidade é baseada em três princípios fundamentais: vender, vender e vender, sabe como é? O resto é uma historinha que tem ali ao redor. Eu dou força pra essa ideia, apesar de estar na área de criação, como falei antes. Uma coisa que eu poderia estar largando em música eu tô largando num jingle (…) uma coisa bonita, que vai ser ouvida e repetida insistentemente, porque tem uma mídia “violenta”. Ninguém nota isso, mas o jingle abre campo pra minha música, pro meu estilo. Duma hora pra outra, todo mundo conhece a minha voz. Há uma troca: eu divulgo o nome do cliente mas ele divulga a minha música e a minha figura, é um negócio complexo. 

 

 

 

Um dia, esperando Chaminé e Laurinho para um ensaio, Hermes pega um violão de 12 cordas do amigo Mutuca e começa a fazer uma música brincando com a sonoridade meio de charango que o instrumento tinha. 

Em pouco tempo, tinha escrito Machu Pichu. Uma obra-prima – em letra e música – sobre a desilusão hippie com o sonho que tinha acabado.

 

Faço a mala depressa. Uma promessa não vou quebrar
Sigo pela avenida, aeroporto, vou viajar

Atravessando os Andes, de mil detalhes, me sinto bem
Vou para Machu-pichu, ouvir as flautas de muito além

Uma desilusão no meu coração se fez de repente
No meio da montanha, um Hotel enorme, cheio de gente

Fotos, chicletes, Coca – uma maçaroca pra lá e pra cá
Nem um Deus, uma prece… era o progresso chegando lá

Ah, meu Machu-pichu ninguém segura este meu delírio
Ah! olhos vermelhos, cuca cansada de mil colírios

Volto pra casa
esquento café no fogão
tomo café brasileiro
e vejo futebol na televisão

 

Logo havia uma gravação tocando direto na Continental, gravada ao vivo no primeiro dos concertos Vivendo a Vida de Lee, para o qual Hermes havia naturalmente sido escalado. O sucesso foi imediato: virou a música mais pedida pelos ouvintes em toda a programação da rádio. Na seqüência, gravadas ao vivo em outros concertos, Quero Ser Teu Rei e 2010 também viram hit.

Quero Ser Teu Rei é um sinceríssimo auto-retrato:

 

Eu faço jingle, faço propaganda
E o cliente manda e disso eu já sei
Mas eu não me afasto do meu destino
Sou Hermes Aquino
E quero ser teu rei. 

 

Nos Vivendo a Vida de Lee, ele só perderá em popularidade para os Almôndegas. Suas canções estavam entre os maiores sucessos naquele momento: o hit Nuvem Passageira é lançado no segundo dos concertos. No derradeiro deles, ele mostra pela primeira vez outro futuro sucesso nacional: Desencontro de Primavera

Quando os shows começaram a ser feitos em outras cidades do interior – e em Curitiba – todo mundo ia junto em ônibus fretados, no maior fuzuê. Começando pelos Almôndegas.

Hermes ia de avião.

Juarez, em 1976 – e é bom registrar que, no momento dessa entrevista ele ainda não tinha gravado nem seus compactos nem seus LPs da década de 1970:

– A que tipo de reinado você se refere?

– Um cara no palco, um comunicador quando tá escrevendo na sua máquina, ele é o rei, vai ocupar a mente de quem vai ler, ouvir ou se deleitar. É um reinado de papel, entendeu? Não de açoitar ou escravizar alguém. No momento em que eu for gravar um disco e sentir que é um negócio quente, que tem produção e tudo, claro que eu vou dar a minha atenção e meu tempo para o disco, porque eu sempre fui do lado artístico de compor pras pessoas dançarem, ouvirem, pra alegrar as pessoas, música popular mesmo. Mas enquanto isso não acontece, eu vau fazendo jingles, porque vivo disso. 

Eu tenho um trabalho aqui dentro da Rádio Continental, que está sendo divulgado, com músicas boas, que eu sei que são maduras. Eu ouço tudo o que acontece no Brasil em termos de música e sei me situar, perceber se tenho chance. Acho que eu não tô servil, como alguns caras da indústria do disco querem, aquela imagem do artista do interior que implora uma chance de gravar e tal. Depois de ir lá, eu tenho uma outra consciência em relação a isso e não tô mais a fim desse tipo de relacionamento. Quero um negócio de troca legal, eu sou eu, ele é ele, isso aí. Um dia, isso vai acontecer, tenho certeza. 

No Brasil, os grandes da música popular são gente de mais de 30 anos, entende? Eu já tô com 27 mas tô legal.

E então vêm o estouro. 

Em abril de 1976, pela gravadora Tapecar, sai o compacto com Machu Picchu e Nuvem Passageira. gera o primeiro clipe de músico gaúcho, com direito a passar no Fantástico. O compacto esgota nas lojas de Porto Alegre quase imediatamente. Na terceira semana era o disco mais vendido nas lojas da cidade. Tocava agora em todas as rádios. 

 

 

Antes mesmo de, em junho, do fado Nuvem Passageira virar tema de um personagem português da novela O Casarão, da Rede Globo, entrando no LP da trilha, pela Som Livre.

A novela estreou em junho e aí o que era um imenso sucesso regional se tornou nacional. Hermes virou figurinha carimbada em todos os programas da emissora, do Globo de Ouro ao Chacrinha.

Em 1977, novamente pela Tapecar, vem o LP de estreia: Desencontro de Primavera

O disco tem pérolas como a tensa Cuidado. Que, em tempos de justificada paranoia coletiva, atira, literalmente, à direita e à esquerda.

 

Cuidado com quem protege
Cuidado com quem corrige
Cuidado com quem dirige
Cuidado com quem não vê

Cuidado com a porta aberta
Cuidado com a hora certa
Cuidado que a fome aperta, e você vai se arrepender
Cuidado

Cuidado com o dia-a-dia
E muito cuidado com a filosofia
Cuidado com a nostalgia, pois os preços vão subir
Cuidado

Cuidado com a inocência
E muito cuidado com a eficiência
Cuidado com a influência que sempre ronda você
Cuidado

Cuidado com seu amigo
E muito cuidado com o inimigo
Cuidado com o que eu lhe digo, se cuide até de você
Cuidado

Cuidado com quem você anda
E muito cuidado com a propaganda
Cuidado com a autocrítica, a política e o prazer
Cuidado

Cuidado com a guitarra elétrica
E muito cuidado com a cadeira elétrica
Cuidado com a falta de nexo com o sexo e o lazer
Cuidado

Cuidado com a cena cômica
E muito cuidado com a bomba atômica
Cuidado com o poeta o violeiro e o cantador
Cuidado

Cuidado com quem diz que nasceu pobre
E muito cuidado com quem diz que é um nobre
Cuidado com quem te ajuda, pois na hora do Deus
Nos acuda ninguém vai aparecer
Cuidado

 

Desencontro de Primavera, canção título, vira tema da novela Locomotivas – curiosamente de um outro personagem português, vivido pelo mesmo ator, Tony Correia. Também é um fado estilizado, como Nuvem Passageira. Estão no disco todos os sucessos dos concertos, como 2010. Só ficou de fora Machu Picchu – por decisão da gravadora. 

O LP ganha disco de ouro: é dos mais vendidos do ano. 

 

 

Hermes é um astro pop, com direito a mais de três mil entrevistas em rádios de todo o País, e participação nos mais importantes programas de TV. O Globo de Ouro, que era uma espécie de parada de sucessos, mantém Nuvem Passageira como número fixo por meses a fio, com Hermes participando semanalmente.

Numa época de se querer casa no campo e dormir em sleeping bag, o bucolismo meio hippie, meio pop de Hermes caiu em cheio no inconsciente jovem nacional. Muita gente inclusive acabou indo pra Machu Picchu, ouvir as flautas de muito além. Real ou metaforicamente.

No ano seguinte, O Casarão estreia em Portugal e o fenômeno se repete: Nuvem Passageira chega ao topo das paradas portuguesas, o compacto com a música é lançado lá e vai fechar o ano como o sexto disco mais vendido de 1978.

 


Arthur de Faria é pianista, compositor e arranjador. Doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS, na área de canção popular. Produziu 28 discos, dirigiu 12 espetáculos. Escreveu 52 trilhas para cinema e teatro em Porto Alegre, São Paulo e Buenos Aires. Lidera a Tum Toin Foin Banda de Câmara e teve peças interpretadas por orquestras e solistas de várias cidades brasileiras. Tocou em meia dúzia de Países e 19 estados brasileiros. Lançou 20 álbuns e EPs e três livros sobre a música de Porto Alegre, dois deles você leu primeiro aqui na Parêntese, em capítulos.

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