Resenha

Todas as Mulheres do Mundo

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Todas as Mulheres do Mundo

Toda Nudez Será Castigada. A primeira vez que ouvi essa frase foi como se alguém tivesse gritado comigo. E digo alguém e não os meus pais, porque eles não falavam alto para serem ouvidos. Quem disse foi o escritor Jorge Duarte Barbosa. Na época, meu professor de inglês. My excellent English teacher! E ele a disse em uma conversa com minha avó sobre Nelson Rodrigues e os julgamentos que a sociedade vacariense emitia sobre as mulheres fora de seus padrões e que, talvez ele já imaginasse, também poderiam alcançá-lo. Professor Jorge foi espancado por um homofóbico e, como a Maria Madalena e a Geni, da peça do Rodrigues, ou a do musical A Ópera do Malandro, do Chico Buarque, foi perseguido e simbolicamente apedrejado. Se não tivesse deixado Vacaria, sabe-se lá o que não teria acontecido com ele. 

Nós, as mulheres, podemos elaborar muitas hipóteses. Pode parecer paradoxal, mas vítimas sabem mais sobre violência que agressores. E que nós somos um alvo permanente de hostilidades é incontestável. Em 2023, de acordo com o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mais de 250 mil casos de violência doméstica foram registrados no Brasil. Houve um estupro a cada seis minutos. Portanto, a mulher brasileira pode falar e escrever, com propriedade, sobre brutalidade, trauma e tentativas de superação. Por isso, hoje, escrevo sobre o livro Desnudas, da Cris Vazquez, um livro de ficção e de não ficção, de contos e de relatos. Ou seja, uma obra escrita a muitas mãos. Seis outras vozes femininas o apoiam. E por respeito aos seus depoimentos, faço questão de trazer os nomes: Vanessa Paulino Venancio Passos, Lisa Fátima Pereira Guedes, Letícia Schmidt, Thais Becker Henriques Silveira, Nadine Rossi e Cibele Moni Soares. 

Destaco Cris Vazquez e a ficção que ela desenvolve a partir das seis histórias, nem todas diretamente ligadas à violência de gênero, porque o seu trabalho literário, debruçado sobre a matéria viva que é uma pessoa que confia seu drama a uma escritora, transcende o que estamos habituados, desvestindo-nos, de certa forma, da catalogação e das instruções que temos para ler um livro. Os pontos de intersecção entre os fatos e o que ela cria, no Desnudas, são sutis e flexíveis. Por vezes, tudo parece ficção. Por vezes, tudo parece verdade. Vazquez é habilidosa, mostra e examina feridas sem aumentar as chagas de suas entrevistadas, aproximando-nos de um estado de mundo perverso que também é nosso e ao qual estamos todos sujeitos. Faça algo por você e pelas outras mulheres depois de ler, o Desnudas nos encoraja.

“– Olhe, vai ser um ano difícil. Eu vou ganhar essa eleição e não tenho tempo pra loucura de mulher. Venha, disse ele, forçando o corpo contra Gaia em direção à cama. – Eu vou lhe pegar agora pra você parar de falar bobagem, entendeu?”. Osmar, o protagonista do conto Primeira-dama, um violador legitimado pela instituição do casamento, diz à esposa. Fato recorrente na vida de muitas mulheres, o estupro marital quase não é denunciado. Assistindo à segunda versão da novela Gabriela, baseada no livro do Jorge Amado, nunca esqueci da cena em que o coronel Jesuíno fala: “Dona Sinhazinha, se prepare que hoje à noite vou lhe usar”. E ela obedece por enxergar o sexo como um dever conjugal, mesmo que o ato a humilhe e machuque.

Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, explica que, durante a infância, o ordenamento social volta-se para a mutilação da personalidade das meninas e, na adolescência, ainda que de uma maneira mais ou menos velada, para que o sentido de ocupações se sobreponha ao de projetos. Instala-se, de modo consistente, o ideal de espera por um homem que seja o destino de uma mulher, independentemente do que ela faça, sem que ela seja o dele. Dos homens, se quer individualização, atitude e liderança. Das mulheres, que os compreendam antes mesmo de compreenderem a si mesmas. No Desnudas, essa regra não se sustenta. Quando Vazquez transforma o drama de cada uma das entrevistadas em contos, ela pensa sobre mim, você, nós que somos, mesmo sozinhas, todas as mulheres do mundo.

 

Desnudas, de Cris Vazques
176 páginas
O Grifo, 2022

 


Helena Terra nasceu em Vacaria e vive em Porto Alegre. Publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013), Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021) e Os dias de sempre (Editora Besouros Abstêmios, 2023). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber O Que é O Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt). É jornalista e editora na Editora Peripécia e na Editora Besouros Abstêmios. É também conselheira e vice-presidente da Associação Literatura livre, no Rio de Janeiro.

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