Ensaio

Qual o lugar dos “outros” alemães na história do Bicentenário? – Parte 3

Change Size Text
Qual o lugar dos “outros” alemães na história do Bicentenário? – Parte 3 Friedrich Kniestedt e Elisa Hedwig Kniestedt em frente à Livraria Internacional – GERTZ, René. (tradutor e organizador). Memórias de um Imigrante Anarquista: Porto Alegre: EST, 1989.

No meu texto anterior, relatei que nas últimas décadas do século XIX e primeiras décadas do XX, ocorreu uma forte expansão industrial em Porto Alegre, com a instalação de muitas fábricas que pertenciam à alemães e a seus descendentes, assim como existiu a formação de comunidades teuto-operárias na capital. Essa presença de trabalhadores alemães se refletiu na organização da classe, na formação das primeiras ligas, partidos e sindicatos. A primeira (e mais importante) entidade socialista de Porto Alegre naquele período foi a Allgemeiner Arbeiter Verein (Associação Geral dos Trabalhadores), criada por operários imigrantes em fevereiro de 1892, sob influência das ideias do Partido Social Democrata Alemão (SPD). Entre suas lideranças estava o escultor Franz Goerisch, que foi um dos responsáveis pela primeira caminhada pública de 1º de maio do Brasil, no ano de 1892, aqui em Porto Alegre. A Allgemeiner também foi relevante por colaborar com a criação de outras entidades operárias no período, como a Liga Operária Internacional, em 1895, que procurava congregar trabalhadores de diversas origens étnicas e raciais, assim como do Partido Socialista do Rio Grande do Sul, em 1897. A entidade partidária dos socialistas teve uma vida curta, mas a Allgemeiner e a Liga Operária se consolidaram como a vanguarda das organizações de classe naquele momento.

É importante ressaltar que algumas destas organizações eram formadas por militantes alemães e descendentes (como a Allgemeiner), mas outras entidades e espaços propiciavam trocas e construções coletivas entre sujeitos de diferentes origens étnicas. Uma das principais figuras do movimento socialista da época, Francisco Xavier da Costa, era um tipógrafo negro que falava alemão e casou-se com uma tecelã austríaca, atuando como liderança tanto para operários brasileiros, quanto para imigrantes. Outro espaço de trocas foi o Congresso Operário de 1898, em que participaram diferentes entidades étnicas como a Sociedade Floresta Aurora (principal clube social da comunidade negra), a Allgemeiner Arbeiter Verein e o Círculo Operário Sueco. Também é importante ressaltar que nesta quadra histórica se iniciou uma participação mais ativa das mulheres nas atividades do movimento socialista: nos atos de 1º de maio de 1897, Elisa Sonnenstrahl e Leopoldina Schacherslehner, duas trabalhadoras de origem germânica, fizeram discursos públicos para suas camaradas de trabalho fabril.

O crescimento do movimento operário e das reivindicações por melhores condições de trabalho levaram à Greve dos 21 dias entre setembro e outubro de 1906. Nesta paralisação, a Allgemeiner e a União Metallúrgica (que era uma entidade sindical cuja língua oficial era o alemão) tiveram um papel decisivo nas mobilizações, com lideranças como Wilhelm Koch e Joseph Zeller-Rethaller. Este foi um momento em que houve uma fratura na comunidade alemã de Porto Alegre, quando trabalhadores e empresários se confrontaram por interesses divergentes, fazendo com que muitos operários abandonassem uma lealdade étnica que tinham com seus patrões, por uma solidariedade de classe. Um dos principais saldos desta greve foi a formação da Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS), que serviu como articuladora das várias entidades sindicais que vinham surgindo. 

Depois da Greve Geral, as ideias anarquistas começaram a tomar força entre os militantes operários de Porto Alegre; eles se contrapunham aos socialdemocratas, criticando a formação de partidos e defendendo a ação direta, ou seja, que a luta operária deveria ser expressa pela propaganda, pela educação e pela greve. Os anarquistas estavam muito menos identificados com alguma origem étnica específica se comparados aos socialdemocratas, mesmo assim, militantes de origem germânica também faziam parte de suas fileiras. Henrique Martins e Espertirina Martins, por exemplo, eram netos de um ex-oficial do exército prussiano e Djalma Fettermann era filho de uma trabalhadora negra e de um sapateiro alemão. Em termos de organização, a presença teuta pode ser encontrada na Escola Moderna dos Navegantes, dirigida pelo Professor Jean Heffner e pela Professora Catharina Heffner: essa instituição seguia a pedagogia libertária, era bilíngue e estava voltada principalmente para os filhos e filhas de imigrantes.

O ano de 1917 vai mexer profundamente com o movimento operário da capital gaúcha, por conta da Greve Geral que aconteceu entre julho e agosto daquele ano. Friedrich Kniestedt, que era uma importante liderança anarquista em sua terra natal, vai chegar em Porto alegre neste mesmo ano. Assim que ele se estabeleceu na cidade, se associou à Allgemeiner Arbeiter Verein, que estava pouco ativa, tornando-se seu presidente e fazendo daquela associação um lugar de encontro para imigrantes alemães socialistas e anarquistas. A sede da entidade ficava na Rua Comendador Azevedo e se tornou palco de agitação e debates durante as Greves Gerais de 1918 e 1919. No começo dos anos 1920, por conta de algumas divergências internas, Kniestedt abandonou a Allgemeiner e decidiu fundar, junto com outros militantes, a Sozialisticher Arbeiter Verein (Associação dos Trabalhadores Socialistas), que era uma entidade voltada para anarquistas, passando a editar também o jornal Der Freie Arbeiter (O Trabalhador Livre). 

Durante a década de 1920, existiu uma disputa mais intensa entre posições políticas divergentes dentro desta comunidade operária de origem alemã. O Partido Comunista do Brasil havia sido fundado em 1922 e neste mesmo ano, o seu congênere alemão (KPD) enviou o líder sindical Fritz Haberland para organizar uma célula teuto-comunista em Porto Alegre. Nesta empreitada ele foi ajudado pelo Professor Jean Heffner, que havia abandonado o anarquismo e havia se tornado comunista. O PCB em Porto Alegre, inclusive, tinha vários quadros que eram de origem alemã ou haviam imigrado da Alemanha, tanto que o primeiro jornal editado pelo grupo era bilíngue e se chamava “Martello e Foice/Hammer und Sichel”. As disputas entre comunistas e anarquistas tiveram lances violentos pelas ruas do Quarto Distrito e troca de acusações pesadas pelas páginas dos jornais. Neste ambiente foi convocado o 1º Congresso dos Trabalhadores Socialistas Alemães no Brasil, que ocorreu em Porto Alegre em 1923, com predomínio dos anarquistas e socialdemocratas, mas com o boicote dos comunistas.

Em 1925, Friedrich Kniestedt e Elisa Hedwig Kniestedt fundaram a Livraria Internacional na Rua Voluntários da Pátria, próximo de onde hoje fica a Estação Rodoviária. Esse endereço vai ser um importante ponto de encontro de anarquistas e operários de origem alemã, com a venda de literatura social e exposição de obras de artistas engajados politicamente. Depois da Revolução de 1930, com avanço da nacionalização da mão-de-obra e com a vinculação dos sindicatos com o Ministério do Trabalho, as organizações operárias de língua alemã vão desaparecendo, mas a Livraria Internacional permaneceu como ponto de referência para esta comunidade. A partir de 1933, com o avanço do nazismo na Alemanha e com a proliferação destes grupos no Brasil, Friedrich Kniestedt criou a Liga dos Direitos Humanos (Liga Für Menschenrechte) como organização de resistência à barbárie hitlerista e a Livraria Internacional se tornou um dos principais pontos de combate ao fascismo em Porto Alegre. 

Depois de 1935, existiu um processo de repressão e fechamento político que vai levar ao regime do Estado Novo em 1937. A partir desta data, se ampliou uma campanha de nacionalização que vai atingir diretamente as comunidades imigrantes da capital gaúcha, como os italianos, poloneses e alemães. No contexto da Segunda Guerra Mundial essa tendência se ampliou, com a proibição do uso de línguas estrangeiras e fechamento de diversas associações de imigrantes. Mesmo que a repressão visasse a infiltração de nazistas e fascistas, os discursos usados contra os imigrantes fazia com que mesmo pessoas evidentemente antinazistas (como Friedrich Kniestedt) fossem vistas com desconfiança. Depois da Segunda Guerra Mundial, com a situação normalizada, quem conseguiu manter vivo seu passado foram os grupos vinculados à antiga elite alemã e às suas famílias, que tinham recursos para cultivar sua história ou então instituições sólidas como escolas, clubes e igrejas, detentoras de patrimônio e ricos arquivos. As antigas associações operárias perderam-se na bruma do tempo e da repressão, assim como os antigos militantes socialdemocratas, anarquistas e comunistas, que faleceram sem deixar registros e cujas famílias se dispersaram, emudecendo suas memórias. 

Isso começou a mudar a partir dos anos 1980, com o trabalho do Professor René Gertz, que traduziu os relatos de vida de Friedrich Kniestedt, publicando-os como “Memórias de um Imigrante Anarquista”. O historiador contou, posteriormente, que em sua busca pelas memórias dos militantes encontrou uma antiga companheira ainda viva, que ficou tão emocionada com o interesse de Gertz, que depois de chorar muito confessou que jamais pensaria que alguém daria valor à história dessa gente! Desde então, estas histórias estão sendo resgatadas e divulgadas por historiadores e historiadoras como Sílvia Petersen, Isabel Bilhão, Benito Schmidt, Lucas Delwing e Angelica Schneider. Hoje em dia, ao falarmos da imigração alemã, não podemos mais dizer de boa-fé que operários, sindicalistas e socialistas não marcaram seu nome nesta história. 


 

Frederico Bartz é mestre e doutor em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e trabalha como técnico em assuntos educacionais nessa mesma universidade, onde coordena o curso de extensão Caminhos Operários em Porto Alegre.

RELACIONADAS
;
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.