Ensaio

Machadianos gaúchos: quatro mms e um raimundo

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Machadianos gaúchos: quatro mms e um raimundo Imagem: Reprodução

Mas de fato a sucessão de Maya, Meyer e Moog acontece na figura de Raymundo Faoro, também parte do Quixote, colega de turma do também machadiano Wilson Chagas na faculdade de Direito, leitor agudo e criativo da obra de Machado de Assis, tomado por Faoro como uma espécie de guia geral para a leitura sociológica do Brasil, em particular do Rio de Janeiro da segunda metade do século 19.
Luís Augusto Fischer

É possível rastrear uma tradição de estudos machadianos na cultura do Rio Grande do Sul, inclusive no sentido específico em que autores gaúchos retomam tópicos e até problemas de ensaístas que os antecederam. Há, de fato, uma tríade sul-rio-grandense que consta em quase todas as listas de intérpretes consagrados de Machado de Assis: Alcides Maya, Augusto Meyer e Raymundo Faoro. Todos eles, vale notar, tornaram-se membros da Academia Brasileira de Letras, a instituição de que Machado de Assis foi fundador e tornou-se presidente até falecer. Foi bem depois da morte desse ilustre sócio fundador que se estabeleceu, em cerimônias de gala, aquele fardão cômico com espadim, vale lembrar. Mas disso não decorre que estes ensaístas sejam oficialistas ou encomiásticos em suas análises. Em vários momentos da crítica de Augusto Meyer, por exemplo, as restrições ao autor em pauta são evidentes. Antes de mais nada, estamos aqui diante de comentários criativos e consistentes que revelam e abrem perspectivas, mas talvez o mais surpreendente seja que os três autores famosos não estão isolados, fazendo parte de um conjunto de ensaístas gaúchos que se dedicou a Machado de Assis em algum momento de sua lida intelectual. 

Talvez o conceito de tradição não se aplique aqui, e devamos retornar ao termo “linhagem” para referir o fenômeno, pela simples razão de que, se uma tradição machadiana sul-rio-grandense de fato existe, ela ainda está por ser melhor estudada, muito embora essa referida linhagem já tenha sido notada, pioneiramente, por Carlos Dante de Moraes, em ensaio publicado em 1959, no livro Figuras e Ciclos da História Rio-Grandense. Trata-se de nota de rodapé que encerra o texto:

Esta posição de alternativa entre o rincão e o mundo se reflete, de um modo quase dramático, em nossos ensaístas. No estudo “A tradição rio-grandense na obra de Erico Veríssimo”, ela ficou bem assinalada. Queremos aqui apenas observar uma singularidade. Enquanto os temas regionais levam os nossos ensaístas a um frequente convívio  com a terra, a história, o folclore e a figura gauchesca, a obra de Machado de Assis representa para alguns deles, dentro da literatura nacional, uma como polarização das tendências universalistas. Recordemos  os estudos enfeixados em livros ou esparsos, de Alcides Maya (Machado de Assis – algumas notas sobre o humor); de Augusto Meyer (“Machado de Assis”; “Da sensualidade na obra de Machado de Assis”, “Capitu”, “Sugestões de um texto” em À sombra da estante); de Moysés Vellinho (“Machado de Assis – aspectos de sua vida e de sua obra” em Letras da Província; “Machado de Assis e a Abolição”); de Vianna Moog (“Decadência do Mundo Moderno – Machado de Assis” em Heróis da Decadência); de Carlos Dante de Moraes (“Brás Cubas, o defunto autor” em Tristão de Athayde e outros estudos).

Isto é, no final da década de 50 um comentarista bem informado já anotara o fenômeno e tratava de indicar uma dinâmica que ia do local ao nacional, com “polarização de tendências universalistas”, um diagnóstico revelador que vai ser retomado mais adiante por mim. Fiquemos aqui com o registro do assunto por Carlos Dante de Moraes, assunto que retorna na apresentação de Flávio Loureiro Chaves, em seu excelente O ensaio literário do Rio Grande do Sul (1979), em que refere que a abordagem de Machado é “verdadeiro tema itinerante do ensaio rio-grandense”. 

O ancestral mais remoto da linhagem é Alcides Maya (1878-1944), com seu Machado de Assis: algumas notas sobre o ‘humour’ (1912). O jovem e promissor Maya chegou a conhecer Machado de Assis, a quem teria encontrado no Rio de Janeiro. Quando vem à luz o ensaio pioneiro, suas duas obras de ficção mais famosas já tinham sido publicadas, Ruínas Vivas (1910) e Tapera (1911); e  na imprensa Maya publicava artigos em que o ímpeto combativo se aliava à lucidez. Vale notar que, em Através da Imprensa (1900), reúne ensaios em que polemiza abertamente com Adolfo Caminha e Sílvio Romero, o que é eloquente ao revelar a contestação da perspectiva determinista, nacionalista e cientificista, com a forte mitologia racista típica da época, que era adotada com ênfase por Sílvio Romero. No livro dedicado a Machado de Assis, de 1912, o combate ao ideário de Romero é frontal e explícito, e não é acaso algum que seja Maya quem vá reavaliar com enorme perspicácia e de forma precoce Machado de Assis mediante a noção de humour. Maya alcança também revelar zonas sombrias de Machado, além de apontar, sempre pioneiro, aproximações com Flaubert e revelar entrecho insuspeitado, por exemplo, no plácido Memorial de Aires (1908):

O verdadeiro entrecho do Memorial gira em torno de uma herança de duzentos contos; e a comédia chega a parecer cruel pela perfeição com que, no caso, os protagonistas simulam sentimentos, às vezes sem que o saibam. Os sentimentos para o autor só existem pela sua expressão social ou como estampa psíquica. Ele não acredita no amor, mas crê no romanesco, e a amizade, por exemplo, apresenta-a como um cultivo delicado e inteligente do egoísmo, condição de sociabilidade. 

Isto é, Maya atina com a dimensão materialista armada no entrecho do romance que era considerado um relato melancólico vazado em estilo refinadíssimo mas que ficaria longe das perfídias retóricas que ainda pulsavam no Aires de Esaú e Jacó (1904).

Enfim, há algum método, ainda a ser melhor avaliado, na objeção de Maya ao cientificismo romeriano, que poderia ser tratado como um capítulo a mais das derrapadas ideológicas da elite brasileira, em especial no circuito carioca, não estivesse tal cientificismo aliado ao nacionalismo ambivalente, oscilando entre condenação e ufanismo, presente na prosa de autores decisivos como Aluísio Azevedo e Euclides da Cunha. São clássicos da literatura brasileira que apresentam longos trechos que se tornaram quase intragáveis por se alinharem com a mitologia científica da época, que encontrava no inexpugnável Silvio Romero o paladino prolífico. O jovem Maya contesta esse cientificismo nacionalista, que também prega a inferioridade racial brasileira, e considera e repensa o famoso “Instinto de Nacionalidade”, de Machado de Assis. O ensaísta gaúcho elabora um raciocínio em que valoriza a formação nacional, mas ela não deve mais praticar algum tipo de nativismo e sim procurar “universalizar a nacionalidade”, tarefa em que Machado de Assis seria mestre. Enfim, em mais de um ponto alcança-se objetar ao livro de Sílvio Romero, Machado de Assis (1897), em que o grande ficcionista é acusado de pouco nacional e excessivamente estrangeirado. 

Augusto Meyer (1902-1970), que muito deveu a Alcides Maya, registra a leitura ousada e contraintuitiva do já citado Memorial de Aires:

Esta “interpretação econômica” do Memorial, reduzido a estudo balzaquiano de interesse em conflito, a “anedota pecuniária”, mostra como procedem levianamente os críticos que na obra veem quase só o lado Philemon e Baucis, a áurea mediocridade do casal Aguiar. Ainda neste último livro, em que parece resserenado, o sarcasmo do humorista não se conformou de todo. 

Maya, no testemunho de Augusto Meyer, é de uma autonomia intelectual espantosa que acaba rendendo um instigante e revelador estudo, cujos achados interpretativos ainda não perderam a atualidade. Mas se o ensaísmo de Maya alcança alto nível, sua literatura padece de uma verbosidade excessiva, que prejudicou a obra de um ficcionista com grande capacidade de definição de personagens e ambientes. O parecer de Flávio Loureiro Chaves é enfático, e, acredito, acertado: “No caso de Alcides Maya prevaleceu, como afirmei, uma contradição: bastante avançado e já moderno em suas posições críticas, faltou-lhe o fôlego para executá-las na sua obra de ficção, esta sim provinciana e regionalista em sentido restrito.” 

Com Augusto Meyer a reflexão estética e a prosa crítica ganham um novo patamar: trata-se de um poeta e um ensaísta de sensibilidade complexa, que na crítica literária demonstra erudição, capacidade reflexiva e notável discernimento. Dedicou-se com afinco aos temas regionais, vindo a escrever ensaios cruciais sobre Simões Lopes Neto e Alcides Maya, entre outros temas, mas manteve sempre o interesse pela tradição literária ocidental, capaz de ir de Camões a Rimbaud, revelando extenso conhecimento mediante prosa requintada e serena. Um dos ensaístas de literatura mais prestigiados do país, foi fundador e administrador do Instituto Nacional do Livro. Na condição de ensaísta, não se interessava em acompanhar a produção que lhe era contemporânea, dedicando-se a temas clássicos e consagrados, como notou Antonio Candido, que o admira muito. Sua obra crítica encarna aquela dinâmica enunciada por Carlos Dante de Moraes entre temas da terra gaúcha, folclore, etc., e apetite cosmopolita pela literatura em geral, sendo que, em Meyer, Machado de Assis foi assunto examinado durante a vida inteira. Tanto que seu livro de estreia na crítica é Machado de Assis, de 1935, reunião de ensaios onde, por exemplo, aproxima Brás Cubas de O homem do subsolo, de Dostoievski, em um ousado raciocínio comparativo que se mantém provocando debate. 

É ainda no ensaio de abertura do volume, O homem subterrâneo, que Meyer aponta o quanto o capricho e a digressão são cruciais na forma literária de Machado, comentário que inspirará as já clássicas formulações de Roberto Schwarz sobre a volubilidade do narrador machadiano. O crítico marxista trata de registrar seu débito em Machado de Assis – um mestre na periferia do capitalismo, depois de referir “De Machadinho a Brás Cubas”:

As observações e deduções de Meyer, neste e noutros estudos, são o ponto alto da crítica machadiana. Conservam poder de revelação notável, apesar do envelhecimento de seu quadro teórico, o que aliás ilustra a independência relativa entre conceituações adotadas e, de outro lado, a percepção literária e a capacidade de expressá-la. O presente trabalho deve muito às formulações de Meyer. 

Estamos aqui no âmbito do que de mais criativo, instigante e polêmico se escreveu sobre Machado de Assis, mas também do que mais revelador se escreveu sobre cultura brasileira, inclusive para além do debate propriamente literário, se levarmos em conta a repercussão das análises e argumentos de Roberto Schwarz sobre cultura brasileira, dialética entre forma literária e processo social, etc. 

Augusto Meyer vai render homenagem explícita a seu antecessor machadiano na linhagem que estamos apresentando, registrando o que Alcides Maya foi capaz de revelar em seu ensaio iluminador. Meyer incluiu o texto de avaliação de Maya no livro À sombra da estante, reunião de ensaios de 1947, posteriormente recolhido na edição ampliada (1958) daquele Machado de Assis de 1935. As primeiras linhas do ensaio fazem a síntese:

O estudo de Alcides Maya marca o início de uma fase nova na biografia póstuma de Machado. Pela primeira vez encontrava o mestre um intérprete à altura do seu espírito, capaz de analisar-lhe a obra com igual paixão de análise, decidido a romper a crosta de opiniões feitas, para insuflar vida nova ao morto ilustre. Foi a partir desse estudo que Machado de Assis o complexo, Machado de Assis o sombrio e sutil começou verdadeiramente a crescer noutras direções, perdendo o cheiro a incenso e o ar acadêmico e oficial em que o haviam embalsamado. Podemos dizer que nasceu então o genuíno Machado, por volta de 1912, das oficinas de Jacinto Silva, de envolta com as melhores páginas sobre o humour que já se escreveram em nossa língua. 

Fica claro o quanto os comentários de José Verissimo, Araripe Júnior, Sílvio Romero e Alfredo Pujol teriam sido superados pelo livro de Alcides Maya, que marca profundamente o que virá a ser a análise do próprio Meyer. 

Caberia especular aqui, talvez, a razão deste interesse tão intenso pela obra de Machado de Assis entre os ensaístas gaúchos, expresso em ensaios de relevância e prestígio. Talvez a posição periférica em relação ao centro da cultura brasileira, que então era o Rio de Janeiro, permita um distanciamento que deflagre a avaliação mais equilibrada e penetrante. Ou mesmo certa recusa do nacionalismo acrítico, que pode oscilar entre o ufanismo afetivo que reivindica a obra consagrada e a contestação que acusa a perspectiva irônica e pessimista de não ser brasileira e/ou de ser elitista.

Seja como for, um outro machadiano gaúcho publicara já em 1934: Vianna Moog (1906-1988), em Heróis da decadência: Petrônio, Cervantes, Machado de Assis, alinha os autores citados sob a perspectiva do humour, em um ensaio algo esquemático, mas repleto de achados interessantes. Assim como em Meyer, temos outro autor estreando com foco em Machado de Assis. Sem forçar a interpretação, basta ler a introdução para que se já revele o quanto Moog deve a Alcides Maya; em mais de um sentido trata-se de ampliar o estudo do humour para a escala dos séculos, ou melhor, tentar uma interpretação em que o conceito de humour permita marcar fundas alterações históricas. O debate ganha dimensão internacional e por certo arbitrária, que elide o campo nacional do problema: vai-se da Roma de Nero ao Brasil entre Império e República, passando pela Espanha entre séculos XVI e XVII. Segundo o esquema de Moog, Petrônio representa a decadência do mundo antigo, Cervantes, a do mundo medieval, enquanto Machado de Assis revelaria a decadência do mundo moderno. O andamento um tanto vertiginoso e arbitrário do argumento tem a vantagem de alcançar a síntese, já sugerida no início do livro: “O humour às vezes é isso. Mas o que ele sempre revela e nunca deixa de ser é heroísmo nas fases de decadência”.

O apetite cosmopolita de Vianna Moog rende ainda na década de 30 outro livro ambicioso sobre literatura: Eça de Queiroz e o século XIX (1938). A obra de Vianna Moog ainda está por ser melhor avaliada, e o contraste entre seus estudos sobre Machado e Eça também está por ser feito; fiquemos aqui com o registro de certo método no procedimento do autor em pauta que trata de avaliar a literatura em língua portuguesa dos dois lados do Atlântico nas últimas quadras do século XIX e no início do XX. O leitor há de convir que a trinca Maya, Meyer e Moog parece uma brincadeira fonética, mas não é. E o quarto M já está despontando no parágrafo abaixo: Moisés Vellinho. De volta ao trio provincial de autores machadianos, vale notar que os dois últimos deixam registrado seu débito em relação ao primeiro; além disso Meyer e Moog estão iniciando uma vida intelectual intensa e longa, cuja repercussão nacional será de impacto significativo. Não deixa de ser eloquente que ambos estreiem no ensaísmo tendo por tema Machado de Assis. Outro dado sobre Vianna Moog: também ele cumpriu o discutível destino, assim como Maya e Meyer, de se tornar imortal ao ingressar na ABL.

A obsessão pela figura de Machado de Assis e por Alcides Maya ressurge com força em outra figura desta geração, que também estreia em livro com Machado de Assis. Moysés Vellinho (1902-1980), que  construiu sólida carreira de crítico literário, ensaísta e historiador, lança em 1939 seu opúsculo Machado de Assis: aspectos de sua vida e sua obra, pela editora Globo. Também ele, como Moog, lida com as letras de língua portuguesa de cá e de lá do Atlântico mediante Machado e Eça: em 1945 lança Eça de Queiroz e o espírito de rebeldia, por editora portuguesa. Foi o editor da famosa revista Província de São Pedro (1945-57, Editora Globo), destacando-se no comentário da literatura sul-rio-grandense contemporânea, embora seu livro mais prestigiado seja obra de maturidade, o estudo histórico Capitania d’el Rei (1964). Voltando a Alcides Maya, Moysés Vellinho, sob o pseudônimo de Paulo Arinos, manteve polêmica sobre a obra ficcional de Maya com Rubens de Barcellos nas páginas do Correio do Povo ao longo de 1925. E no livro Letras da Província, publicou o ensaio Alcides Maya – expressão literária e sentido sociológico de seu pensamento. Muito mais tarde, em 1960, recolherá seus ensaios votados a Machado em Machado de Assis: histórias mal contadas e outros assuntos, onde  estuda, com prosa incisiva, entre outros temas, a argúcia psicológica e o alcance da crítica social do autor celebrado. 

O ensaio de 1939, fique o registro, surge rebatizado com o excelente título de “Um brasileiro contra a paisagem”, a revelar o quanto Machado, sendo brasileiro, ia muito além da paisagem brasileira entendida como cenário mais ou menos pitoresco. O quarto M do ensaísmo machadiano destes pagos não deixa por menos e avança com análises de temas que seriam melhor estudados só nos anos 70.  Segundo Vellinho, o elegante prosador encarava os dilemas mais agudos da vida nacional, entre eles a escravidão e seu contexto mercantil abominável. Vellinho extrai de “Pai contra mãe”, um conto que então estava longe do prestígio que tem hoje, os extraordinários recursos de Machado de Assis, e prossegue analisando trechos devastadores de romances para aquilatar a potência crítica do escritor supostamente niilista e psicologizante. O desfecho revela o quanto Vellinho articula a prosa machadiana com mercantilização e expropriação:

O nosso grande escritor não era absolutamente alheio à questão social. Foi sobretudo um artista, mestre surpreendente da arte de escrever, mas nem por isso deixava de folhear o seu Proudhon, como se vê em Esaú e Jacó. Quem falava com desimpedida ironia nas serenas funções do capitalismo, no sentimento e sensação de propriedade, no erotismo pecuniário, chegando mesmo a denunciar que dinheiro dói como coisa viva, sabia perfeitamente até que ponto o fator econômico concorre para o desentendimento entre os homens e para semear os ventos que, se fazem os mendigos tiritarem o seu sono num recanto de praia, ao mesmo tempo ameaçam os altos muros da cidade burguesa. Vimos que pelas frinchas de seu pensamento é às vezes possível captar ideias ou insinuações que parecem inspiradas em algum panfleto subversivo. Vez que outra, chega a surpreender-nos a aguda intuição com que, naqueles dias de bem-aventurado alheiamento, o mestre de Quincas Borba entrevia problemas cuja realidade só depois de várias gerações parece nos terem despertado a consciência. 

Dinheiro erotiza e dói em Machado de Assis, observa Vellinho, com a ironia das formulações agravando a crítica em vez de atenuá-las, o que não deixa de ser um procedimento subversivo. Já quase no fim do ensaio, o autor insiste: “A condenação de um mundo construído sobre equívocos e desigualdades reponta com insistência, através de cortantes insinuações, alegorias ou epigramas, ao longo de suas páginas da maturidade, emprestando-lhes um sentido de crítica social sobre o qual não se disse ainda a última palavra”. O crítico equilibrado reconhece que o diagnóstico sobre o autor clássico é ainda precário – a última palavra não foi dita – e aguarda melhores desdobramentos, os quais em boa medida serão implementados por um ensaísta gaúcho da geração seguinte não menos interessado em história e literatura, embora muito distante do conservadorismo político de Moysés Vellinho: Raymundo Faoro (1925-2003).

Fica registrado, enfim, que os três maiores ensaístas sul-rio-grandenses anteriores a Raymundo Faoro deflagraram suas carreiras publicando livros sobre Machado de Assis.

Nascido em 1902, Carlos Dante de Moraes é o autor do diagnóstico já citado, em nota de encerramento em ensaio “Condições Histórico-Sociais da Literatura Rio-grandense”, no qual demonstra acuidade e percepção histórica, além de registrar seu próprio texto sobre Machado de Assis. É dele o enunciado da regra que aponta a oscilação entre interesse localista a explorar temas do RS e disposição universalista que rende os estudos machadianos de relevância. Por fim, mesmo Erico Verissimo, já romancista de renome, escreveu alguns comentários abrangentes e interessantes sobre o autor carioca em sua Breve história da literatura brasileira, escrita em inglês ao longo de  sua primeira temporada norte-americana, e publicado em 1945 (Brazilian Literature – an outline. New York: MacMillan). O livro só recebeu edição em português em 1995, na tradução feita por Maria da Glória Bordini.

Raymundo Faoro (1925-2003), citado ali atrás a propósito da aguda observação de Moysés Vellinho, é o herdeiro e continuador mais ambicioso da linhagem machadiana gaúcha. Em 1973, o lançamento de Machado de Assis – A pirâmide e o trapézio virá trazer contribuição decisiva para que as histórias mal contadas do título de Vellinho recebam o esclarecimento cabível mediante a extraordinária capacidade de análise de Faoro. Aqui temos o ensaísta capaz de avaliar “um sentido de crítica social sobre o qual não se disse ainda a última palavra”, nos termos de Vellinho, até porque se trata do autor de Os donos do poder – Formação do patronato político brasileiro, de 1958, livro em que já ficava claro que Machado de Assis funcionava como uma espécie de guia intelectual para o exame sociológico e histórico do Brasil da segunda metade do século XIX. Para o Faoro de 1958 já era evidente a avassaladora quantidade e qualidade da informação acumulada na obra machadiana. Tanto é assim que, salvo engano, todas as referências a Machado de Assis já estavam na primeira edição de Faoro, inclusive a referência algo sibilina ao conto Dona Benedita que se encontra nas linhas finais do ensaio histórico, como que dando o arremate machadiano para a longa análise e interpretação dos meios, modos e desmandos dos donos do país:

Em lugar da renovação, o abraço lusitano produziu uma social enormity, segundo a qual velhos quadros e instituições anacrônicas frustram o florescimento do mundo virgem. Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse. O fermento contido, a rasgadura evitada gerou uma civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra que ambula entre as sombras, ser e não ser, ir e não ir, a indefinição das formas e da vontade criadora. Cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante. 

Não deixa de ser irônico que o devastador diagnóstico de Faoro revele o quanto a herança portuguesa, tão cara a Moysés Vellinho, é em muitos sentidos responsável pelo arbítrio e autoritarismo a grassar no Brasil. Para que se revelasse toda a força do “sentido de crítica social” machadiano, algumas premissas do elegante e erudito Vellinho teriam que ser criticadas. E note-se que A pirâmide e o trapézio, de 1973, encontra-se entre a primeira edição de Os donos do poder, de 1958, e a segunda, de 1974, revista e muito aumentada. Em A pirâmide e o trapézio é empreendida uma leitura completa, minuciosa, empirista da obra machadiana, que arma o ponto de vista do ensaísta disposto à longa incursão e à ampla interpretação histórica. Que as obras se completam, já está registrado no título, que remete a trechos decisivos de Os donos do poder, além de brincar com as epígrafes colhidas em Memórias póstumas de Brás Cubas, como notou Leopoldo Waizbort:

Uma nota acerca do título do livro sobre Machado de Assis: A pirâmide e o trapézio. Uma das epígrafes do livro fala das pirâmides do Egito, algo que é imutável, mas muda; e outra do trapézio na cabeça de Brás, no qual se dependurou a ideia fixa, algo que não muda, mantém-se balançando. Ora, a chave está dada em Os donos do poder: as pirâmides do Egito são a sociedade, que espera por sua salvação; a ideia fixa dependurada no trapézio é o estamento, balançando sem cair nos seis séculos de história.

Há aqui também uma combinação significativa, com Machado de Assis no encerramento de Os donos do poder, e com trecho de Os donos do poder contribuindo para o título de A pirâmide e o trapézio. Combinados e desiguais, os dois livros encerram grande coerência que evidencia o tutano e a dimensão estrutural do pensamento de Faoro, em cuja obra Machado de Assis ocupa uma posição crucial. Sem mencionar que a veleidade de Dona Benedita, citada por Faoro, está muito próxima daquela volubilidade que será central no argumento de Roberto Schwarz sobre o Brás Cubas de Machado.

            O conjunto da produção machadiana entre os gaúchos é consistente e extraordinário, e ainda não foi sequer estudado em suas conexões e no seu impacto. Nem mesmo a força dos ensaístas mais antigos – Maya, Meyer, Moog e Moisés Vellinho – foi devidamente avaliada e resgatada, mas sem dúvida há uma notável continuidade de interesses e procedimentos já consolidada que ainda pode produzir muito debate e esclarecimento.


Homero Vizeu Araújo é professor de literatura brasileira UFRGS.

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