Resenha

Uma coisa é um país, outra um aviltamento

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Uma coisa é um país, outra um aviltamento Foto: Divulgação

          “Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós”, escreve o escritor português José Saramago em O Conto da Ilha Desconhecida. Ideia difícil de se refutar, ainda que o escritor inglês John Donne tenha dito que nenhum homem é um pedaço de terra cercado de água. Ou de mágoas, eu penso, e coloco o substantivo feminino no plural porque mágoas não costumam andar sozinhas. Faz uns duzentos mil anos que contribuímos com elas, repetindo erros como se fossem acertos. Em parte, por ignorância; em parte, pelo aprendizado, nem sempre para o bem, que começa ainda no berço, antes mesmo do verbo. Independentemente do que João tenha escrito em seu Evangelho, o ser humano demora uns dois anos para articular palavras.

          Entre as minhas favoritas, está o verbo ler. Minha vida se divide em antes e depois de ter sido alfabetizada. E minha alfabetização passa por um momento político, no mau sentido, extraordinário: a ditadura militar. Meus pais abrigaram jovens fugitivos dos coturnos que chutavam a democracia. Os dois não queriam que eles morressem, tampouco que fossem torturados. É claro que eles não me falavam sobre isso, mas, como eu nunca acreditei que a curiosidade matou o gato, shakespeareanamente entendi que havia algo de podre no reino da Dinamarca. Meu pai lia o jornal resmungando “quanta mentira”. E a mentira faz a gente ter vontade de conhecer a verdade.

          E sobre a verdade, o direito a ela e à memória, escreve a brasileira Maya Falks no romance Já Não Somos os Mesmos. Nascida mais perto da redemocratização que eu, poupada, portanto, de sentir os exageros escolares do patriotismo na pele, a violência da época instiga também os seus neurônios. Acredito que desde a infância. O mundo adulto é muito mais explícito do que se pensa. No romance A Vida Mentirosa dos Adultos, a italiana Elena Ferrante coloca abaixo as máscaras e a fantasia de que crianças não estão entendendo nada. 

          No romance Já Não Somos os Mesmos, quem nos fala sobre o Brasil dos generais é Priscila, 19 anos, encarcerada em uma ilha de quatro paredes sob a acusação de subversiva. Como um náufrago, ela está à deriva, isolada em poucos metros quadrados. Seus movimentos limitam-se a “sete passos ida, sete passos volta. Sete passos ida. Sete. Quatro dá na porta”. E ela está, como todas as vítimas atingidas pela farsa jurídica da Lei de Segurança Nacional do Brasil, sendo destituída de humanidade. Mais do que isso, da categoria de ser vivo, quebrada como um mineral.

          Também Guardamos Pedras Aqui, título de um livro de poemas da paulista Luiza Romão, poderia estar escrito na porta da cela de Priscila; o vocábulo chumbo, título do romance de estreia da mineira Virgínia Ferreira, também sobre a ilegitimidade e a violência do período, em sua mente. De “Chumbo, pólvora, tacos de madeira e punhos. E ratos. E pênis. E baldes. E paus de arara”, o cérebro e o corpo de Priscila estão povoados. Os versos “De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo”, da Adélia Prado, parecem ter sido escritos para ela, traduzem o vazio que a ferocidade inocula nos torturados.

         Eu coleciono pedras e guardo as que me jogam. Talvez para um dia arremessá-las de volta. Se eu tivesse, na década de 70, idade suficiente como a personagem Priscila ou como a ex-presidenta Dilma Rousseff, teria uma cordilheira. A Torre das Donzelas, o presídio Tiradentes, a Casa Amarela, todos os círculos do inferno seriam mais que nomes na minha existência. Fui protegida pela infância. O mais perto que cheguei das atrocidades se deu às oito horas de uma manhã de setembro quando eu tinha nove anos de idade. Uniformizada com saia e meia escolar, desmaiei de frio em frente à prefeitura em uma sessão de hasteamento da bandeira. Do episódio, lembro de estar enfileirada, de meu pai com um cobertor e da frase: “Que cidade é essa que tortura crianças?”. Acredito que o Affonso Romano de Sant’Anna ainda não tinha publicado o Que País é Este?, mas, sem dúvida, era sobre esse mesmo Brasil que o meu pai falava.


Já não somos os mesmos, de Maya Falks
120 páginas
2022, Editora Penalux


Helena Terra nasceu em Vacaria e vive em Porto Alegre. Publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013), Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021) e Os dias de sempre (Editora Besouros Abstêmios, 2023). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber O Que é O Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt). É jornalista e editora na Editora Peripécia e na Editora Besouros Abstêmios. É também conselheira e vice-presidente da Associação Literatura livre, no Rio de Janeiro.

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