Juremir Machado da Silva

A vida e a morte do soldado Rey

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A vida e a morte do soldado Rey

Devo dizer que passei boa parte da minha já longa vida tentando entender a morte prematura do soldado Rey. Nada, no entanto, me ligava especialmente a ele, exceto uma estranha admiração por sua figura esquisita e pela sua maneira de rir. Em vários dos meus livros a sua morte aparece transfigurada sob outros nomes, datas, locais, circunstâncias e estações do ano. Tentei, em diferentes momentos, examinar as hipóteses levantadas para explicar o seu suicídio numa manhã ensolarada de junho. Quando releio o que escrevi sobre ele fico espantado. Como foi possível que eu tenha cometido tantos erros biográficos a ponto de lhe atribuir família ou solidão? A morte dele sempre foi para mim a certeza de que a tragédia espreita do outro lado dos trilhos, o que um psicanalista traduzia com certo reducionismo topográfico por outro lado da rua ou outro lado da cama.

Eu estava lá no dia em que ele morreu. Não o vi enforcado por um detalhe que ainda me impressiona: meu pai cobriu rapidamente meus olhos com a sua grande mão cheia de calos quando o cadáver se materializou diante de nós. Cheguei a considerar que essa tristeza suave que trago no peito e se manifesta em certas manhãs de sol tinha a ver com essa morte que me assombra desde criança sem que eu jamais tenha falado com o soldado Rey, salvo se for possível tomar por diálogo o dia em que, na rua de trás, ele apontou para um pássaro na tranquilidade do voo e disse olhando para mim:

– Assim… Assim mesmo.

Nos primeiros relatos era certo que ele havia se matado para fugir da miséria humilhante que era comentada por todos como falta de aptidão para o trabalho. Nos anos seguintes ouvi dizer que se matara por ciúme. Mas de quem? Conforme a época ou a pessoa, ciúme da mulher, que o teria traído, de um homem, a quem teria amado, de uma vida que não poderia ter. Assim, o soldado Rey morreu muitas vezes. Numa delas, que ressurgiu em outros momentos, por ter perdido a fé em Deus, nos homens e no amor. Passados tantos anos, mais de cinquenta, nunca parei de rever todas essas explicações. Ainda há pouco tempo, quando passava a cavalo na frente do terreno onde um dia se erguera a choupana do soldado Rey, eu me benzia.

Na época em que estive mais obcecado por essa história, voltei ao nosso vilarejo natal para fazer a minha investigação. Meu pai havia morrido vinte anos antes e não restavam muitos contemporâneos dele e do soldado Rey dispostos a falar sobre aquela morte durante a ditadura militar. Tentei encontrar documentos nas instituições acionadas em casos desse tipo e nada achei. O jornal local, porém, trazia uma nota lacônica que me aliviou: eu não estava louco. A nota dizia: “Morreu ontem, aos 23 anos, o soldado Aquiles Rei.  A polícia investiga a ocorrência”. Nada mais. Era isso.

Apesar dessa diferença de grafia, um “i” no lugar de um “y”, só podia ser a mesma pessoa. Eu me apegava a minúcias em busca de alguma pista. Dona Mariana, uma negra no vigor dos quase cem anos de idade, com quem eu me benzia de cobreiros quando era menino, havia sido a única fonte determinada a contar o que sabia do soldado Rey. O que ela sabia não era animador:

– Veio aqui um dia antes.

– O que ele lhe disse?

– A boa pergunta é outra, filho.

– Não sou capaz de saber.

– O que eu disse pra ele?

– O que a senhora lhe disse?

– Não tenha medo, filho.

*

Hoje me dou conta de que se usava a linguagem com relativa parcimônia naquela época obscura em nosso povoado resplandecente de sol entre setembro e junho. Julho e agosto eram de frio, geada, vento e chuva. Havia a rua de trás, a rua da frente, a rua do fundo e a rua do lado. O soldado Rey morava bem no meio da rua do lado, a vinte metros da rua do fundo, num casebre coberto com palha em torno do qual se viam o bocal de um poço de balde e um cocho de madeira. Era um jovem magro, ruivo, alto, mais de 1m80, com sardas no rosto chupado e um sorriso evasivo que lhe dava um ar distante, embora inofensivo. As quatro ruas agrupavam-se no lado esquerdo de uma linha sinuosa maior e avermelhada: a estrada. Esse era o mapa completo da vila.

Nos últimos dias da sua vida, pelo que pude levantar no meu inquérito particular, Rey havia se mostrado o de sempre, entre silencioso e sorridente, com alguma risada esporádica quando lhe contavam alguma coisa que lhe parecesse estranha ou que não entendesse. Certo é que jamais demonstrara qualquer comportamento anormal. Era o que se podia chamar de moço respeitador e correto, apesar de nem sempre manter a farda limpa, as botas rigorosamente lustradas e a barba aparada. Podia-se contar com ele para qualquer serviço braçal. Pendia dos seus lábios, no canto esquerdo, em geral, um toco de cigarro feito à mão. Nos bailes, mesmo quando sobravam moças nos cantos, ele não se atrevia a convidá-las para dançar. Em tudo, portanto, parecia-se com os demais rapazes da sua idade, exceto um ou dois, um pouco mais jovens, que brilhavam pela falta de compostura. Como não era de muitas palavras, não havia como esquecer a sua frase mais inesperada:

– A liberdade começa depois do medo.

É possível que ele tenha dito apenas “sei lá o que é essa tal de liberdade”, mas não foi o que a história registrou e nada se pode fazer quando a sabedoria popular se impõe sobre a mediocridade da verdade.

*

Os anos foram passando apressados para alguns, lentos para outros, desiguais como são as coisas compartilhadas por todos por ordem da natureza e reorganizadas pelos homens. Na minha procura persistente e descontínua, fiquei pasmo ao saber que minha memória mentia. O soldado Rey não tinha mulher nem filhos, mas não vivia sozinho. Dividia a casinha com dois colegas, amigos de longa data, com os quais jogava cartas e bilhar em dias de folga. Como eu não me lembrava deles? Não sei. Juan Quinteiro, a pessoa mais sábia do vilarejo na época da morte de Rey, dizia que a memória é um labirinto que se enrodilha com o tempo. Quis, então, encontrar esses homens para desvendar, de vez, o mistério da morte do soldado Rey. Só pude visitá-los nos seus túmulos, no cemitério velho da Almada, onde já não há enterros desde os anos 1980. Dona Mariana me disse que um dele “morreu de congestão”. O outro, afogado nas águas calmas de um ribeirão traiçoeiro.

A vida do soldado Rey já era então uma lenda. Para uns, que não o haviam conhecido, ele fora um guerrilheiro tupamaro refugiado no pampa gaúcho. Para outros, que haviam convivido com ele, era um revoltado. Se tudo o que me disseram sobre ele for verdade, o que nunca pude confirmar, teria sido poeta, trovador, mentiroso, pregador de invasões de terras, inimigo dos latifundiários, gay, mulherengo e até delator. A hipótese da delação ganhou força por algum tempo. Ele teria entregue um dos amigos, envolvido com a passagem clandestina de esquerdistas brasileiros para o Uruguai. Havia, porém, um problema nessa versão: todos que a confirmaram nutriam uma espécie de horror por comunistas sem jamais ter encontrado um.

*

Houve um tempo em que organizei a minha pesquisa sobre a vida e a morte do soldado Rey em três vertentes: a psicologia do personagem; o contexto social da sua existência; e o imperativo atmosférico da época. Eram tentativas vãs de estabelecer algumas referências num deserto de informações. Ainda me ocorre de ver o soldado Rey atravessando a vila no mormaço de uma tarde de janeiro de mangas arregaçadas, passo lento e abaulado, toco de cigarro pendente, olhar firme nalgum ponto impreciso. Onde ia? Aparentemente a lugar algum. Era isso o que mais me fascinava.

Eu me lembro de fazer muitas perguntas ao meu pai sobre o soldado Rey. Queria saber de onde ele vinha e, mais do que tudo, para onde ele ia com seu ar distanciado de tudo e de todos. Às vezes, era o seu destino que me interessava. Outras, era apenas o que o levava a andar pelas ruas nas tardes de sol escaldante, quando todos se recolhiam ao abandono sonolento à sombra dos cinamomos e dos umbus frondosos. Meu pai respondia enfastiado:

– O Rey é um caso perdido.

*

Assim se passaram as horas, os dias, os meses, os anos, invernos gelados, verões morosos, primaveras ligeiras, outonos de aparência esmaecida, décadas de pequenas rupturas vividas como eternas continuidades, noites de espreita e sonho, longas manhãs de semeadura, tardes de sesta e desejo, auroras de esperanças orvalhadas, estações de trens e calendários, nascimentos, mortes, rituais sempre iguais e tão diferentes, como flores que renascem num jardim coletivo de memórias espalhadas feito cinzas.

Um dia, diante de mim, eu me reconheci outro.

Era o tempo que me recolhia.

*

Quando eu já não tinha forças para revirar o passado, me contentando em remoê-lo para enganar os finais de tarde, sempre mais lentos do que as manhãs de sol e as noites de ventania, recebi uma correspondência anônima. A pasta sobre o suicídio do soldado Rey me foi mandada faz um ano e meio, na data exata da sua morte, que estranhamente eu nunca esqueci. Havia fotos do cadáver, uma certidão de nascimento, dados periciais e uma frase:

“Nada se apurou sobre as motivações do seu suicídio”.

Ele se chamava Achiles da Silva Reis.

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