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As Willis – Sexo, morte e escaravelhos

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As Willis – Sexo, morte e escaravelhos Foto: Besouro Box/Divulgação

Introdução

Antes de qualquer coisa: fodam-se as normas técnicas de redação científica de todos os países do mundo. Escrevo neste formato de dissertação porque foi o que fiz a vida inteira, apesar da enorme perda de tempo para adequar — com evidentes prejuízos epistemológicos — o que descobri em minhas pesquisas às incontáveis convenções acadêmicas que causam orgasmos múltiplos aos meus pares de todos os continentes, mas servem apenas para manter o que está escrito longe dos olhos do cidadão comum, um ser supostamente descerebrado que não sabe a diferença entre uma citação e uma paráfrase. Portanto, este texto é, além de uma confissão, uma vingança. Evitarei ao máximo citações e cortarei meus pulsos (metaforicamente, que é minha única opção) se perceber que cometi uma paráfrase. Dizem que vingança é um prato que se come frio. O meu está no congelador há tanto tempo que, se não o retirasse agora, viraria um fóssil. 

Fodam-se também as leitoras e os leitores que julgarem este relatório sob um ponto de vista moral. Já vivi o suficiente para saber que a moral e os bons costumes são tão arbitrários quanto as normas técnicas de redação. E mais perigosos, pois seus defensores costumam guardar espingardas no sótão. Meu pai, respeitabilíssimo desembargador do Juizado Criminal de Porto Alegre, tinha um rifle Springfield M1903, que limpava todo domingo, depois da missa, sobre a mesa da sala de jantar. De qualquer maneira, como ficará evidente nas próximas páginas, tenho boas razões para não temer pela minha integridade física nem pela morte da minha credibilidade. A absoluta honestidade com que descreverei os fatos aqui narrados nada tem a ver com preceitos éticos, e sim com minha vontade de abandonar os eufemismos que fui acumulando ao longo das décadas, em parte devido à extrema hipocrisia da vida acadêmica, para revelar o que realmente interessa: a fome da carne, a dor da privação do desejo, as tragédias e as glórias do sexo.

Começo explicando que meu nome de batismo é mesmo Irina Chaves. Ele está no meu diploma de graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (de 1966) e no de doutoramento em Berkeley (1978). No certificado de doutorado da Universidade do Cairo (de 1984), está escrito Carla Wertmüller, enquanto minha atual carreira aqui na Universidade da Austrália é vivida por uma certa Iolanda Cavani. Esses nomes (exceto o meu mesmo, Irina, escolhido pela minha mãe, talvez no único ato criativo de sua existência) foram obra de Mirtha Bohrer, que também providenciou a falsificação de todos os documentos, a criação de biografias ficcionais nas redes (inclusive as acadêmicas) e orientou as transformações cosméticas que me permitiram enganar as autoridades universitárias até hoje sem maiores contratempos. O mesmo acontece, com variações decorrentes do tempo de vida de cada uma, em relação às trajetórias da própria Mirtha e das outras Willis. As razões dessas trocas de identidade ficarão bem evidentes ao longo do texto. Porém, cabe uma advertência inicial: quando as Willis estão reunidas e conversam entre si, usam sempre seus nomes originais, e será assim que eu as chamarei, salvo em ocasiões que exijam o contrário. 

Também foi Mirtha que batizou nosso grupo como Willis, no ano de 1967, cerca de três semanas após nosso primeiro encontro num cemitério de Porto Alegre. Estávamos em seu estúdio, como costumávamos fazer nos finais de tarde. Subitamente, Mirtha levantou-se do divã e me apontou um trecho de Florentinische Nächte, ou Noites Florentinas, do escritor alemão Heinrich Heine, de quem lia as obras completas no original. Em duas ou três frases, ali estava a descrição de jovens noivas que, tendo morrido ainda virgens, à meia-noite saem de suas tumbas e atraem, com coreografias voluptuosas, homens para danças intermináveis que os levam à completa exaustão. Mirtha decidiu que, a partir daquele momento, nós duas seríamos Willis, e essa denominação foi estendida às mulheres que posteriormente integraram nosso clã.

Vou contar o que aconteceu no período de educação de Giselle Boaventura, a Willi mais recente, entre os anos de 2018 e 2019, na cidade de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil. O recorte temporal limitou bastante, espero que de forma positiva, a sucessão dos eventos narrados, de modo a impedir que esse negócio vire uma autobiografia, ou, pior ainda, uma tentativa de abraçar toda a história das Willis. 

Apesar de muitas hipóteses serem lançadas aqui sobre a natureza do nosso tipo de existência, isto é mais um exercício de memória, em que também especulo bastante sobre fatos que não presenciei, mas de que tive notícia por fontes absolutamente confiáveis. Usei a imaginação para criar cenas e diálogos, é claro, pois finalmente tenho a liberdade de escrever sem o rigor científico que sempre usei para tratar da extensa e prodigiosa família dos Scarabaeidae. Se quiserem chamar de ficção, fico lisonjeada, pois sou fã de Allen Ginsberg, Charles Bukowski, Joyce Johnson e Hettie Jones desde um certo verão em São Francisco. Mas fodam-se as influências também! Agora quero ser Irina, integralmente Irina, em vez de me esconder sob outros nomes.

O texto está dividido em cinco capítulos, de modo a organizar a narrativa no tempo. As considerações finais, na verdade, não são considerações, e sim um pequeno relato do que aconteceu após a educação de Giselle ter terminado. Peço perdão se, vez por outra, trechos deste relatório resvalarem para o estilo acadêmico. Abandonar vícios de linguagem pode ser mais difícil que abandonar a heroína. As notas numeradas talvez sirvam para acrescentar alguma coisa ao texto sem interromper o fluxo da leitura. Ou talvez não sirvam pra nada. Foda-se. Fiz tudo do jeito que quis.


Notas:
1 – A edição brasileira, da Mercado Aberto, é de 1998 e tem tradução de Marcelo Backes.
2 – Família que reúne várias espécies de insetos coleópteros comumente chamados de escaravelhos.
3 – Ginsberg e Bukowski são escritores homens do movimento Beat, bem conhecidos e traduzidos no mundo todo, inclusive no Brasil. Johnson e Jones são escritoras mulheres do mesmo movimento. Adivinha se são igualmente lidas e traduzidas…


Carlos Gerbase é cineasta, professor e escritor, mítico baterista da banda Os Replicantes.

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