Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo CXVI: Vivendo a Vida de Lee

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Capítulo CXVI: Vivendo a Vida de Lee

Lembrando: a inspiração eram os Mister Lee in Concert que rolavam nos Estados Unidos, só que adaptados para a realidade local. 

O resultado é que foi muito acima do esperado. E muita gente foi ver uma geração de novos artistas porto-alegrenses que, pela primeira vez, tinham a oportunidade de apresentarem-se num show com grande estrutura, para uma quantidade inédita de público.

Para a maior parte deles, pela(s) única(s) vez(es) em suas carreiras. 

Só um mês depois do Musipuc que deflagrara todo esse processo, na cabalística data de 13 de agosto de 1975, uma quarta-feira, o Teatro Presidente recebia o primeiro concerto Vivendo a Vida de Lee

Quarta-feira? 

Sim. Começar um projeto desse tamanho numa quarta-feira era muita certeza de que ia dar certo.

Deu.

À tarde houve uma bizarra pré-estreia: fechada, para três representantes da censura federal que ouviram seis dos 13 grupos e leram as letras de todas as músicas. O pessoal aproveitou pra fazer a passagem de som.

Já no comecinho da noite a cena era: tanta gente querendo entrar no teatro já lotado que tiveram de fechar a rua, com a polícia intervindo para trancar o trânsito. Mas nem a polícia conseguiu evitar que uma porta lateral fosse arrombada e muita gente invadisse a plateia. 

Fernando Pezão, futuro baterista dos Almôndegas, do Musical Saracura e dos Papas da Língua, então no Mantra, foi um dos que foi lá assistir. Mas, sem ser uma pessoa de arrombar portas e invadir, acabou ficando de fora:

Tentei entrar… não consegui. 
Disse: 
– Nossa, que afudê! Pô, agora quero tá lá tocando!

A capacidade do teatro era de 1.150 pessoas. Quando o show começou havia (os depoimentos variam) de duas a três mil lá dentro, mais duas mil no lado de fora, escutando a transmissão pelos rádios dos carros de portas abertas, sintonizados na Continental.

Nunca havia acontecido algo assim na cidade (a coisa mais parecida tinha sido a estreia das Rodas de Som, meses antes).

Tocando três músicas cada um (com direito a bis), apresentaram-se Hermes Aquino, Fernando Ribeiro, Status 4, Inconsciente Coletivo, Gilberto Travi e Cálculo IV, Grupo Ensaio, Byzarro, Utopia, Bobo da Corte, Em Palpos de Aranha, Mercado Livre e o redator da rádio Continental, Wanderley Falkemberg. Encerrando a noite, os já então famosos Almôndegas. No total, 43 músicos subiram ao palco.

Mudavam naquela noite as perspectivas dos músicos da cidade. 

É como, explodindo num milhão de significados, dizia o cartaz: 

Som pra baiano nenhum botar defeito

Antecedido da frase:

 Você vai ver o que os caras estão trabalhando em som, aqui no sul.

Cartaz Vivendo a Vida de Lee

A crítica do espetáculo no jornal local Zero Hora – obviamente, de Juarez Fonseca – é profética:

Há hoje uma sutil diferença, mais formal do que musical, entre os concertos do Clube de Cultura, do Teatro de Câmara, do Gigantinho etc., e o Vivendo a Vida de Lee. Preste atenção, tente viver o momento de agora. (…) A indústria do rock está chegando a Porto Alegre, embora a gente ainda não possa perceber isso com muita clareza. Preste atenção: os músicos, as bandas que você viu nascer fragilmente, estão partindo pra outra. Todos querem que o Bixo da Seda, ou que o Utopia, ou que o Palpos de Aranha, ou seja-lá-quem-for, ganhe o sucesso. Você, o público, vai gostar de ver a capa do disco de algum deles enfeitando a vitrine na Rua da Praia. Vai ser tudo bonito, e o preço que você vai pagar por isso será a perda de intimidade. Preste atenção: o rock profissional está chegando em Porto Alegre.
(…) 
Almôndegas (…) de uma ou de outra forma, foi o ponto de partida para o profissionalismo, a antenação, a visão de possibilidade.
(…) 
Vamos ver o que vai acontecer daqui pra frente. De qualquer forma, preste atenção: você pode estar assistindo ao fim (início) de um ciclo musical em Porto Alegre.

Alguns trechos em áudio do concerto estão no YouTube, com o folk dos Almôndegas, Hermes Aquino e do Inconsciente Coletivo, o rock do Em Palpos de Aranha e do Bobo da Corte, a MPB de Fernando Ribeiro. 

Tudo gravado por quem operou o show: Anele, Egon Alsher e Geraldo Schuler.  

* * *

A segunda edição acontece logo em seguida: nove de novembro de 1975, um domingo, e num lugar muito maior.

Dezoito grupos tocam das cinco da tarde até duas e meia da manhã de segunda, para um público de 5.500 pessoas que hiperlota o Auditório Araújo Vianna (cuja lotação era de 4.200).

Entre as bandas, o Mantra, do mesmo Pezão (e de Zé Flávio, Inácio do Canto, Jakka e Clóvis), que não tinha conseguido entrar pra assistir o show anterior e se deslumbrou com aquele público. Que agora o assistia. E justo quando o Mantra estava no meio do seu show, choveram no céu meteoritos – ou passaram por ali uma frota de discos voadores, cada um acreditou no que quis, conforme a fé ou a quantidade de substâncias psicodélicas ingeridas. 

O fato é que o show parou. Era como que uma bênção dos céus para aqueles artistas e aquele público que estava ali, junto, celebrando a nova música da sua cidade.

Pezão:

Nós tocando e o Zé: – Olha lá, olha lá! Pára! Pára! E aí foi aquela comoção incrível. Climão.

Vale ver, para entender o quão celebratórias foram essas horas, as imagens do show, do público e do camarim coletivo, gravadas em super-8 pelo Júlio Fürst. 

Pezão:

Muita gente se conheceu ali, no camarim coletivo do Araújo. Isso era muito legal: – Bah, o cara aquele da banda nãoseioquê! Isso era muito massa. Não tinha circuito de shows naquela época. A gente não se encontrava, não tinha os parceiros, os amigos…

* * *

Em 1976, o sucesso se repetiria no Concerto Nº 3, dividido em duas noites do Teatro Leopoldina (31 de abril e 1º de maio). 

E então um bando de músicos eufórico de tão feliz lota dois ônibus fretados e começa a desbravar o interior: os concertos vão a Caxias do Sul, Passo Fundo, Pelotas e Santa Maria – e, exceto por Passo Fundo, onde concorreram com um baile prestigiadíssimo na região, todas as lotações foram esgotadas.

Ângela Langaro, vocalista do Inconsciente Coletivo, hoje psicóloga, conta no livro Continental, A Rádio Rebelde de Roberto Marinho, de Lucio Haeser:

Era uma grande festa. 
Acho que esse foi o melhor período de todos, que foi viver não só dentro do grupo, mas viver a vida de todo mundo. Estar iniciando e ter muita perspectiva em relação à carreira. Muitos sonhos e muita gente junta. Só depois que passou que – não só eu, acho que eles também – a gente viu como tudo aquilo foi importante também historicamente naquela época. Naquele momento a gente não tinha a sensação, essa consciência de quanto isso estava sendo importante para o movimento musical em Porto Alegre.

Zé Flávio:

Era uma grande família. Eram diversas praias diferentes, diversos estilos. Mas todo mundo se dava com todo mundo. Era um circo.

* * *

Dia 23 de outubro o pessoal atravessa o sul do Brasil e, graças ao impacto das retransmissões do programa pela Rádio Iguaçu de Curitiba, 73 músicos gaúchos em três ônibus fretados levam 6.000 curitibanos ao Palácio de Cristal (o Ginásio do Círculo Militar, em plena ditadura) para conferir de perto aquelas bandas que eles ouviam pelo rádio. Cantaram junto todos os hits.

Pezão:

A sensação era totalmente assim: 
– Cara, tá rolando! É daqui pro mundo! 
…só que não, né?

O último Vivendo a Vida de Lee – que ninguém sabia que seria o último – acontece nas noites de três e quatro de dezembro de 1976, novamente no Teatro Leopoldina. 

Pela primeira vez em Porto Alegre, uma delas não lota. 

Parecia estar se fechando – cedo demais – o ciclo.

Juarez Fonseca, mais uma vez, é profético no jornal Zero Hora de seis de dezembro:

Como eu disse, comentando o primeiro Vivendo a Vida de Lee, que o show abria um ciclo, penso agora que o quarto[1]… encerra este ciclo. Entre agosto de 75 e dezembro de 76 abriu-se a perspectiva da profissionalização para vários grupos e agora, passado o entusiasmo-estusiasmado, dentro de um mesmo espetáculo já se nota muitas diferenças. (…) Quero destacar (…) Almôndegas, João Schu, Gilberto Travi/Cálculo IV, o Mantra de Zé Flávio e Nelson Coelho de Castro. (…) O Almôndegas porque deu uma demonstração definitiva de profissionalismo, é um grupo que sabe o que faz e sabe o que quer.
(…) Se tudo continuar como está, corre o perigo de desgastar-se, enfraquecer (…) Fernando, Hermes, Inconsciente Coletivo, Almôndegas, esses já passaram da metade do caminho, (…) já não são monopólio das gravações da Continental, estão em todas as emissoras através do disco.

Em 1978, quando o passo definitivo ia ser dado – shows no Rio e em São Paulo -, a Lee retirou o patrocínio. O diretor da Continental tinha pedido dinheiro demais pra renovar e o Marketing da empresa não topou.

Fim do sonho.

Saldo total: três anos, 12 concertos – 10 deles de absoluto sucesso. 

Júlio Fürst: Mister Lee em ação.

Graças aos concertos Vivendo a Vida de Lee alguns de seus artistas assinam com gravadoras nacionais. 

O Inconsciente Coletivo – de João Antônio, Alexandre Vieira e Ângela Longaro – lança em 1976, pela Tapecar, um compacto simples com Voando Alto e Fadas Douradas. Já Hermes Aquino e Os Almôndegas conseguem dar o passo adiante, com contratos bons, LPs gravados no centro do País e sucesso nacional. Fernando Ribeiro idem, ainda que sem o mesmo sucesso.  

(Um parêntese: não foi só a Rádio Continental AM que apostou nessa explosão gaúcha. A Rádio da Universidade, da UFRGS, também fez sua parte, ainda que o grosso da sua programação sempre tenha sido de música erudita.)

Julio Furst, em 2024:

Foda. Parece que foi ontem. 
Mas quem fez todo o movimento foram os músicos. Tava a mil a produção musical aqui. A única coisa que eu queria era mostrar isso pro grande público, que não tava ouvindo e não tava vendo. Então, a partir do programa, eu botei a galera toda no palco para o contato ao vivo – presencial, como se diria hoje. Mas a movimentação toda, os responsáveis, são os músicos que tavam na cena na época. E – cara! – vendo agora a foto do concerto em Caxias, de quando a gente saiu dos ônibus… olha isso aí, impressionante! Parece que foi ontem. 
Eu não tenho essa dimensão de 50 anos. Eu não consigo ver isso. Eu vejo essa galera toda aí… parece que a gente tava ontem lá em Caxias. 
Impressionante.

* * *

Como eu sou um amor, aqui tem um link do meu Dropbox pra ouvir tudo que se tem gravado dos Mister Lee, tanto ao vivo quanto nos estúdios da rádio. 


Notas:
1 – Quarto em Porto Alegre.


Arthur de Faria é pianista, compositor e arranjador. Doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS, na área de canção popular. Produziu 28 discos, dirigiu 12 espetáculos. Escreveu 52 trilhas para cinema e teatro em Porto Alegre, São Paulo e Buenos Aires. Lidera a Tum Toin Foin Banda de Câmara e teve peças interpretadas por orquestras e solistas de várias cidades brasileiras. Tocou em meia dúzia de Países e 19 estados brasileiros. Lançou 20 álbuns e EPs e três livros sobre a música de Porto Alegre, dois deles você leu primeiro aqui na Parêntese, em capítulos.

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