Ensaio

Poesia prescritiva

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Poesia prescritiva Foto: Divulgação

Por muito tempo, estudiosos da literatura e da poesia e os próprios poetas têm se dedicado a procurar respostas para a insolúvel questão da finalidade da poesia. Para que serve, afinal, a poesia? Poesia para quê?

Talvez em vista disto, alguns livros recentemente publicados tragam desde a capa a prescrição de sua utilização. É o caso do recente lançamento Feroz (Darkside, 2024), da poeta norte-americana Emily Skaja, que arrematou com o livro o Prêmio Walt Whitman da Academia dos Poetas Americanos no ano de 2018. No Brasil, o livro da jovem poeta de Illinois ganhou um subtítulo explicativo, vindo a chamar-se Feroz: poemas para corações dilacerados (tradução de Luci Collin).

Mas o seu não é o único caso assim. Em 2002, a editora Sextante, do Rio de Janeiro, publicou da médica paliativista Ana Claudia Quintana Arantes o livro Mundo adentro: poesia de sobrevivência. Já no título, como se vê, consta a descrição da sua motivação criativa e também do uso que se pode fazer do seu conteúdo. Além da coleção de poemas, o livro traz apreciações da própria autora e, ao final, um convite aos leitores para que usem a escrita em versos como um “poder restaurador”, visto que a poesia, de acordo com ela, está “disponível para todo mundo”.

Tudo isso, porém, nem pode ser chamado de novidade. Ao longo do tempo, antes nos jornais e agora provavelmente no Instagram, versos poéticos tem sido veiculados no afã de colaborar com os leitores, de ajudá-los a assimilar as questões da vida e de ser um momento especial de leitura contemplativa capaz de, talvez, levá-los a insights estéticos e existenciais. A bem da verdade, desde a Antologia Palatina, ou seja, da Grécia clássica, formas breves e lancinantes vêm sendo oferecidas ao público sequioso de conforto, sabedoria, elevação espiritual, etc.

Por certo os poetas e autores que determinam a priori o uso que se pode extrair de sua criação saberiam melhor do que ninguém, portanto, a resposta àquela insolúvel questão: para que serve, afinal, a poesia? Poesia, afinal de contas, serve para quê?

Mas não se espere por respostas desse quilate em livros assim. O máximo que eles alcançam é o próprio tamanho. Seja como for, para estas pessoas a sua poesia parece necessariamente abstrair da polissemia, da dúvida e da interpretação. É como se dissessem: esta poesia serve para isto, logo, se não é isto que você procura, ela não lhe servirá. A perspectiva não poderia ser mais fatalista. Nela, não cabe um “talvez”, um “pode ser” e nem a mínima sugestão. Ali, a poesia é que foi decidido de antemão ou não é nada.

Embora seja difícil resistir ao julgamento destas propostas, é preciso fazer mais do que o poeta ou os editores agora deram para exigir aos leitores. Assim como é possível (e desejável) que se busque os poemas de sobrevivência não por uma razão de sobrevivência e não se tenha o coração dilacerado antes de conhecer os poemas de Feroz, o que fica flagrante em ambos os títulos é o precário controle que os poetas têm de sua criação. Não bastasse a interferência de pulsões inconscientes, a ideia bakhtiniana de que a poesia maior se completa na interpretação e não se resume a sua forma original é generosa mesmo com autores tão restritivos.

Desta forma, pode-se aproveitar com deleite tanto os versos livres de Emily Skaja e sua potência juvenil ou as palavras de sabedoria de Ana Claudia Arantes sem que essas prescrições determinem tudo o que se pode extrair da leitura, seja em gozo estético ou percepção intelectual. Assim foi que pelo menos eu li a ambos os livros, sem saber se era para isso mesmo que serviam, e me parece que aproveitei mais do que se seguisse o que me ordenaram.

PS: Para quem desejar, a partir daqui, aprofundar estas questões, lembro da leitura do livro do Prof. Carlos Felipe Moisés, Em quê a poesia faz pensar? A versão digital do livro é livre para download na editora da UFPB.


Lucio Carvalho é editor da revista Sepé e autor de Down House, 1858: o memorial de Charles Waring Darwin.

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