A última sessão do Cinema Guarani
Cinem Guarani, circa 1968. Foto: Autor desconhecido
Hoje, mais uma vez, o cinema está em crise. O público vai pouco aos cinemas de shopping, normalmente só em filmes alavancados por imensas campanhas publicitárias diretas ou subliminares. Com o alto preço do kit estacionamento-ingresso-pipoca-refrigerante-café-etc, está mais fácil assistir qualquer história na tela de casa.
Em Porto Alegre o cinema também foi um lugar de reflexão, entretenimento, informação e amor no escurinho do cinema. Não sou historiador nem pesquisador, mas é fácil encontrar informações nos googles da vida. Vai um resumo. A chegada dos primeiros aparelhos de “cinematografia” na Capital está na edição do Correio do Povo em 3 de novembro de 1896. E se não tinham salas de cinemas, as projeções eram ao ar livre na Praça da Alfândega ou no Campo da Redenção. Até 1908, o cinema vinha através dos “exibidores itinerantes” que traziam todo o equipamento de projeção. O primeiro cinema permanente foi o Recreio Ideal (Rua dos Andradas, 321 – numeração antiga), aberto em 1908, na Praça da Alfândega. Porto Alegre teve 135 cinemas, desde o Recreio Ideal até 1980, conforme a relação no livro “Salas de Cinema – Cenários Porto-Alegrenses”, de Susana Gastal (texto), Eduardo Aigner (fotos), editado pela Unidade Editorial (Porto Alegre, RS, 1999).
O Cinema Guarany foi um deles e eu tive a tristeza de assistir a sua última sessão. O cinema da rua dos Andradas, em frente à Praça da Alfândega foi inaugurado em 1913, com 958 lugares. O prédio foi projetado pelo arquiteto alemão Theo Wiederspan, com esculturas do espanhol Jesus Maria Corona, e comprado pelo Banco Safra, em 1980.
Em 1975, aconteceu a última sessão do cinema Guarani (nessa época já grafado com “i”) e eu escrevi sobre essa experiência para o jornal vespertino chamado Hoje que durou apenas nove meses e pertencia ao Grupo RBS. Foi um momento, digamos, estranho. Para mim, havia um clima de velório mesmo antes do último suspiro do lugar, com um público no máximo de 30 pessoas. No texto que escrevi na época, veja como James Bond, travestido de Zed, venceu e “destruiu” o Guarani. É um texto com um jeito utópico-juvenil e que percebe que os mocinhos perderam…
A última sessão
A maioria não estava sabendo. A sessão das 22 horas parecia igual a qualquer outra. A clássica placa de “ar condicionado em conserto” estava lá, como sempre. Porém, quem olhasse com um pouco mais de atenção veria que não existiam os cartazes dos próximos filmes. E nenhum trailer foi projetado, somente um cinejornal. O velho cinema Guarani estava fechando.
“A grande carga de pirotecnia visual de John Boorman, diretor de Zardoz”, como diz o crítico de cinema Tuio Becker, foi a última projeção do Guarani. A mesma tela do cinema construído dentro do estilo art nouveau mostrou praticamente todas as fases do movimento cinematográfico mundial. Mas James Bond, travestido de Zed, foi quem liquidou “a tela das ilusões” que teve grande público em filmes como Cabaré, Os Dez Mandamentos, Deu a Louca no Mundo e outros.
A última sessão foi tão normal que não faltou a interrupção do filme, além de boa parte de Zardoz ser projetado fora de foco. Mas os que foram “curtir” a última sessão de cinema, como no filme de Bogdanovich, até não se impressionaram com isso e nem reclamaram. Afinal, estavam fechando as portas do cinema mais antigo do centro de Porto Alegre, fundado em 1913. E ele não terminou sozinho, desde 1970, cinco já foram fechados. As desculpas são muitas, porém as principais ficam com a concorrência da televisão e a crise do custo de vida.
“Dentro deste esquema, seu filme funciona como uma inquietante visão de um mundo futuro”. Quem analisa o filme é ainda o Tuio e a relação com o fechamento do Guarani parece não ser muito difícil. A arte é colocada, cada vez mais em segundo plano para dar lugar a uma corrida na busca dos chamados bens materiais e do conforto de uma sociedade voltada para o consumo imediato. Com o Guarani morre uma época e uma fase da arte mundial apontada por muitos como uma das mais criativas. Morrem horas e horas de trabalho de reconstituição de cenários ou de imaginação para mostrar mundos futuros em filmes feitos no século XX, E um frequentador tinha razão, ao final da sessão, em perguntar porque o cinema seria destruído para dar lugar a um edifício de 45 andares.
Nem ele e nem Delicarlêncio Esmério Altar, operador do cinema, sabiam para quem havia sido vendido o prédio. Uma repórter ainda pediu que a porta não fosse fechada enquanto tentava descobrir a causa do encerramento. Mas ela também não conseguiu. A explicação ficou por conta do progresso que cresce verticalmente, construindo edifícios para abrigar as salas de executivos e companhias de seguro.
Zed (Sean Connery) persegue uma ideia: conseguir a morte para os imortais do Vortex. Depois de muitos jogos de espelhos, corridas pelas terras proibidas, descoberta do centro do pensamento e aprendizado por osmose dos conhecimentos do Vortex, ele consegue e põe em prática. A morte chega para os imortais cansados de serem eternos. E Zed, sem querer, mata o cinema Guarani.
Mais uma vez o crítico Tuio Becker: “São belas e confusas as sequências finais de Zardoz. A descoberta do centro do pensamento no cristal perfeito e a destruição de uma das faces (a morte) do guerreiro levam o filme a seu clímax: a matança dos imortais pelos guerreiros das Terras Externas e a realização do amor de Zed por Consuela, expressa na gestação e nascimento de seu filho dá prosseguimento ao ciclo da vida”.
Lá, sentado na cadeira do cinema, vem a lembrança da bilheteira e da mulher que recebia as entradas: as duas estão grávidas e suas crianças não saberão como foi a última sessão e também não darão prosseguimento ao ciclo de vida do velho Cinema Guarani.
(Atualização: Depois da primeira morte do Guarani, o cinema reabriu em 1987 ocupando o mezanino do Cinema Imperial e fechou definitivamente em 2005.)
Gilberto Perin é fotógrafo, roteirista e diretor de cena.
