Crônica

A crônica sobre o passarinho de Duvivier

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A crônica sobre o passarinho de Duvivier Foto: Dan Netherton/Pexels

“Sempre quis escrever sobre passarinhos que pousassem na janela”, confessa Gregório Duvivier, externando uma vontade antiga, de tratar sobre algo trivial, cotidiano, bem a gosto de uma crônica clássica. E explica: “Nunca escrevi por falta de passarinhos. Até que no começo de março me deparo com um filhote agonizando entre as patas de Yoko, minha gata cinza. ‘Êêê, pshh, larga isso já!’ O bichinho ainda vive”.

A manifestação irônica da “falta de passarinhos”, na verdade, a ser confirmado mais adiante, seria a vontade de se libertar de temas mais áridos que o momento exigia, como o desgoverno Bolsonaro[1] e a pandemia[2], assim como a de fazer par com vários outros colegas de escrita, a começar pelo pai da crônica moderna brasileira, Rubem Braga[3], com seu “O conde e o passarinho”, algo assim como permitir se deter nas pequenas coisas do cotidiano[4], ou experimentar a sensação expressa por Mario Quintana[5] em “O poema”: “Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página ainda em branco. Mas ele, aquela noite, não escreveu nada. Para quê? Se por ali já haviam passado o frêmito e o mistério da vida…”

Assim, relata as peripécias da família para salvar o agora já identificado sanhaço-cinzento, nominado Carioca (“[…] é o aniversário do Rio[6] e um nome neutro — é impossível distinguir o gênero dos sanhaços filhotes”), embora, mesmo a veterinária afirmando que o pássaro ia ficar bem”, tenha advertido: “Não sei se consegue voltar pra natureza. A mãe pode rejeitar. Talvez tenham que cuidar dele pra sempre”, o suficiente para os olhos de Marieta, filha do cronista, brilharem[7].

A partir de então, relata: “Cá estávamos nós cuidando de Carioca como se fosse um príncipe (ou princesa) e eu já arquitetava as mil metáforas que meu pássare[8] não binário[9] poderia render sobre esse país que agoniza e já não pode voltar pra natureza”, refletindo, ao mesmo tempo, sobre seu ofício, já que “Um cronista vê o mundo como um extrativista, só pensa nas crônicas que conseguirá extrair dos sofrimentos que vê por aí”. 

Dessa forma, depois de aparentemente resolvida a questão da ave, já que, diz ele, “Encontramos seu ninho sobre o ar-condicionado. Colocamos o bicho lá e três vezes por dia aplicamos a papinha líquida”, remete ao título eminentemente político da crônica A vida é montanha-russa, e só se pensa em 2022, mas ainda não superei 2018, publicada na Folha de São Paulo, em 09 de março de 2021:

O garoto [o pássaro] ia bem quando Fachin me inventa de absolver Lula[10], e em seguida Gilmar, de condenar Moro[11]. Um vizinho põe pra tocar “Lula lá”, enquanto outro berra “fora, Bolsonaro”, e um terceiro berra “Lula na veia/ Moro na cadeia”. Caso o leitor não esteja ouvindo esse tipo de coisa, convido-o a conhecer o aprazível bairro das Laranjeiras.

Misturando, então, uma coisa à outra, e fazendo uma homenagem ao bairro que habitava, conclui: “Impossível, no Brasil de hoje, escrever sobre pássaros. Só se pensa em 2022[12] — e ainda nem processei 2018[13]. Continuo revoltado com o golpe de 2016[14], sigo comovido pela eleição de 2002[15] e atravessado pelas quase 2.000 mortes por dia em 2021[16] — isso sem contar os pássaros”.

Mas, como um parêntese, pós-final, volta ao passarinho, e relata que, depois de terem descoberto o ninho vazio, o que provocaria uma crônica fúnebre, é redescoberto em outro local junto com mais dois, o que o faz inferir: “Carioca, tenho quase certeza, é um dos três. O mais gordinho. E voltou pra casa”, o suficiente para que, extasiado pelo milagre da vida — e da política —, exclamasse feliz: “Que montanha russa, a vida”. 

E assim estava escrita a sua crônica sobre passarinho…


Notas:
1 – O Governo Jair Bolsonaro foi um período da história política brasileira, que teve início no dia 1.º de janeiro de 2019 e chegou ao fim em 31 de dezembro de 2022. O militar reformado Jair Bolsonaro foi eleito o 38.º presidente do Brasil no dia 28 de outubro de 2018, com 55,13% dos votos válidos no segundo turno das eleições presidenciais, derrotando o candidato do PTFernando Haddad, que obteve 44,87% dos votos válidos. […] Seu governo se caracterizou por forte presença de ministros de formação militar, alinhamento internacional com a direita populista e por políticas antiambientaisanti-indigenistas e pró-armas. Foi também responsável por um amplo desmonte das políticas e órgãos da cultura, da ciência e da educação, além de promover repetidos ataques às instituições democráticas e fazer maciça divulgação de notícias falsas. Apesar da criminalidade e do desemprego terem seguido a tendência de queda vista desde o Governo Michel Temer, a média de crescimento do PIB foi de cerca de 1,5% ao ano, a precarização do trabalho, a inflação e a fome aumentaram, enquanto a renda per capita, a desigualdade e a pobreza atingiram os piores níveis desde 2012. https://pt.wikipedia.org/wiki/Governo_Jair_Bolsonaro
2 – A pandemia de Covid-19, também conhecida como pandemia de coronavírus, é uma pandemia da doença por coronavírus 2019 (Covid-19), causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). O vírus foi identificado pela primeira vez a partir de um surto em WuhanChina, em dezembro de 2019. As tentativas de contê-lo falharam, permitindo que o vírus se espalhasse para outras áreas da China e, posteriormente, para todo o mundo. Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou o surto como Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional (PHEIC) e, em 11 de março de 2020, como pandemia. A OMS declarou o fim da PHEIC no dia 5 de maio de 2023, apesar de ainda continuar a se referir a ela como uma pandemia. Até 16 de junho de 2024, conforme a OMS, 775 643 495 casos foram confirmados em 231 países e territórios, com 7 051 600 mortes atribuídas à doença, tornando-se a quinta mais mortal da história.
3 – Rubem Braga (Cachoeiro de Itapemirim, 12/01/13 – Rio de Janeiro, 19/12/90) foi um escritor lembrado como um dos melhores cronistas  brasileiros. Iniciou-se no jornalismo profissional ainda estudante, aos 15 anos, no Correio do Sul, de Cachoeiro de Itapemirim, fazendo reportagens e assinando crônicas diárias no jornal Diário da Tarde. […] Transferindo-se para o Recife, dirigiu a página de crônicas policiais no Diário de Pernambuco. Nesta cidade, fundou o periódico Folha do Povo. Em 1936, lançou seu primeiro livro de crônicas, O Conde e o Passarinho, e fundou em São Paulo a revista Problemas, além de outras. […] exerceu o jornalismo em várias cidades do país, fixando domicílio no Rio de Janeiro, onde escreveu crônicas e críticas literárias para o Jornal Hoje, da Rede Globo. Sua vida como jornalista registra a colaboração em inúmeros periódicos, além da participação em várias antologias, entre elas a Antologia dos Poetas Contemporâneos.
4 – “A vida ao rés-do-chão”, em definição de Antônio Cândido sobre o gênero – Para Gostar de ler: crônicas. Volume 5. São Paulo: Ática, 2003.
5 – Mário de Miranda Quintana (Alegrete, 30/07/06 – Porto Alegre, 05/05/94) foi um poeta, tradutor e jornalista brasileiro. […] Trabalhou para a Editora Globo e depois na farmácia paterna. Considerado o “poeta das coisas simples”, com um estilo marcado pela ironia, pela profundidade e pela perfeição técnica, ele trabalhou como jornalista quase toda a sua vida. Traduziu mais de 130 obras da literatura universal, entre elas Em Busca do Tempo Perdido de Marcel ProustMrs Dalloway de Virginia Woolf, e Palavras e Sangue, de Giovanni Papini. Em 1953, Quintana trabalhou no jornal Correio do Povo, como colunista da página de cultura, que saía aos sábados, e em 1977 saiu do jornal. Em 1940, ele lançou o seu primeiro livro de várias poesias, A Rua dos Cataventos, iniciando a sua carreira de poeta, escritor e autor infantil. Em 1966, foi publicada a sua Antologia Poética, com 60 poemas, organizada por Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, e lançada para comemorar seus 60 anos de idade, sendo por esta razão o poeta saudado na Academia Brasileira de Letras por Augusto Meyer e Manuel Bandeira, que recita o poema Quintanares, de sua autoria, em homenagem ao colega gaúcho. No mesmo ano ganhou o Prêmio Fernando Chinaglia da União Brasileira de Escritores de melhor livro do ano. Em 1976, ao completar 70 anos, recebeu a medalha Negrinho do Pastoreio do governo do estado do Rio Grande do Sul. Em 1980, recebeu o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra.
6 – A Baía de Guanabara, à margem da qual a cidade se organizou, foi descoberta pelo explorador português Gaspar de Lemos em 1 de janeiro de 1502. Embora se afirme que o nome “Rio de Janeiro” tenha sido escolhido em virtude de os portugueses acreditarem tratar-se a baía da foz de um rio, na verdade, à época, não havia qualquer distinção de nomenclatura entre rios, sacos e baías — motivo pelo qual foi o corpo d’água corretamente designado como rio
7 – Situação que lembra, também de Rubem Braga, o conto “O menino e o Tuim”, em que “Um menino encontra alguns filhotes de tuim num ninho de joão-de-barro e os pega para cuidar. Um sobrevive e vira o xodó do menino, que o cria solto. Mas o pai vive alertando que o tuim, um passarinho bem pequeno e parecido com um periquito, normalmente vive em bando e que um dia poderá sumir”. […]. Crônica publicada originalmente em 1958 com o título ‘História triste de tuim’. Com pequenas variações no texto e este novo título, O menino e o tuim, ganhou sua primeira edição para crianças em 1986”.
8 – Aqui temos uma provocação do cronista, já que, no Manual para o uso da linguagem neutra em língua portuguesa, de Gione Caê, publicado pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana, [sem data], há uma observação de não propriedade de uso para animais ou objetos.
9 – Não-binariedade ou identidade não binária é um termo guarda-chuva para identidades de gênero que não são estritamente masculinas ou femininas, portanto fora do binário de gênero e da cisnormatividadeAcademicamente, a não-binariedade costuma ser associada à inconformidade de gênero. Dentro da sigla LGBTQIAPN+, a não binariedade é incluída na letra N, outras vezes no T, de transgênero, ou no sinal de mais (+).
10 – Fachin anula condenações de Lula relacionadas à Lava Jato; ex-presidente volta a ser elegível G1, 08/03/21O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, anulou nesta segunda-feira (8) todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela Justiça Federal no Paraná relacionadas às investigações da Operação Lava Jato. Com a decisão, o ex-presidente Lula recupera os direitos políticos e volta a ser elegível. […]. Ao decidir sobre pedido de habeas corpus da defesa de Lula impetrado em novembro do ano passado, Fachin declarou a incompetência da Justiça Federal do Paraná para julgar quatro ações — as do triplex do Guarujá, do sítio de Atibaia e duas ações relacionadas ao Instituto Lula. Segundo o ministro, a 13ª Vara Federal de Curitiba — cujos titulares na ocasião das condenações eram Sergio Moro (triplex) e Gabriela Hardt (sítio) — não era o “juiz natural” dos casos. […] Na mesma decisão, Edson Fachin declarou a “perda do objeto” e extinguiu 14 processos que tramitavam no Supremo e questionavam se Moro agiu com parcialidade ao condenar Lula.
11 – Em voto na 2ª Turma do STF, Gilmar Mendes diz que ex-juiz Moro foi parcial ao condenar Lula G1, 09/03/21O ministro Gilmar Mendes votou nesta terça-feira (9), em julgamento na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), pela declaração de parcialidade do ex-juiz Sergio Moro na condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex do Guarujá, investigação no âmbito da Operação Lava Jato no Paraná. […] De acordo com o voto de Gilmar Mendes, devem ser anulados todos os atos praticados por Moro contra Lula no caso do triplex, inclusive na fase de investigação. Segundo o voto do ministro, uma nova investigação pode ser iniciada. Mendes condenou ainda Moro ao pagamento de custas do processo, em valor a ser calculado. Para Mendes, houve um “conluio” entre Moro e os procuradores que atuaram na força-tarefa da Operação Lava Jato, o que, segundo ele, maculou o processo. […] O ministro apontou “a absoluta contaminação da sentença proferida pelo magistrado resta cristalina quando examinado o histórico de cooperação espúria entre o juiz e o órgão da acusação”. Segundo ele, em fevereiro de 2016, quando Lula ainda estava sendo investigado, o ex-juiz Sergio Moro chegou a indagar ao procurador Deltan Dallagnol se já havia uma denúncia “sólida ou suficiente”. O procurador respondeu “apresentando um verdadeiro resumo das razões acusatórias do MP, de modo a antecipar a apreciação do magistrado”.
12 – Ano da próxima eleição presidencial, que passava a adquirir um novo caráter com a volta dos direitos políticos surrupiados de Lula em 2018.
13 – Ano da eleição presidencial passada, vencida por Bolsonaro, contra Haddad.
14 – Ano do golpeachment contra/de Dilma Roussef.
15 – Ano da primeira eleição presidencial vencida por Lula, o primeiro operário a sagrar-se presidente no Brasil.
16 – 10 de março de 2021 site Sanarmed – O Brasil ultrapassou a marca de 2 mil mortos por Covid-19. Nesta data, foram registradas 2.349 vidas perdidas por causa do novo coronavírus. é o maior número desde o começo da pandemia. O índice acontece após altas no número de mortes a cada dia, desde 27 de fevereiro. Também no dia 10 de março, foram registrados 80.955 novos casos. Os números são do levantamento do consórcio de veículos de imprensa sobre a situação da pandemia a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde.


Breno Serafini é natural de Santiago-RS, nascido em 14 de março de 1961. Com doutorado em Letras pela UFRGS, é autor dos livros Mosaico Laico (poesia – CBJE, 2010), Geração Pixel (poesia – Edições do Autor, 2012), Millôres Dias Virão (ensaio – Libretos, 2013), Picassos Falsos (crônicas – Buqui, 2014), Bichos de Todos os Reinos (poesia infantil – Edições do Autor, 2015 – ilustrado por Moa); Colloríssimo – a coroação e o destronamento de Collor segundo Verissimo (ensaio – AGE, 2016); e POAlaroides urbanas – uma ode visupoética a Porto Alegre (fotografia & texto, Editora Parangolé, 2022). 

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