Nossos Mortos

Crítica e humor

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Crítica e humor Márcio Souza. Foto: Autor desconhecido

O romance de estreia de Márcio Souza, Galvez, o Imperador do Acre, foi o acontecimento literário de 1976. Lemos aquele texto inventivo e debochado com o prazer de estar descobrindo um autor que não apenas registrava o universo amazônico, mas o fazia de modo singular, seja pelo desprezo aos padrões narrativos vigentes, seja pelo humor desbragado, seja pelo protagonista, um aventureiro desmedido e delirante que estabelecia seu império de papelão nos confins selváticos do país, em fins do século XIX.

Como ocorria internacionalmente, o gênero narrativo vivia (ou parecia viver) seus últimos dias de esplendor, naqueles anos 70, repleto de autores que aspiravam ao desvendamento do mundo e do coração humano, valendo-se tanto das formas tradicionais quanto das experimentais. Também a nossa ficção se desdobrava em um mar de publicações. A gigantesca expansão do ensino, a emergência de um novo público universitário, o surgimento de dezenas de novas editoras, de coleções destinadas a jovens, do sistema de venda domiciliar ou em bancas, e, sobremodo, a tentativa de explicar/contestar o sistema opressivo que nos regia, com suas sequelas sociais e morais, estimularam centenas, senão milhares de brasileiros, a entregar-se à escrita literária.

Do ponto de vista temático, o romance e o conto no Brasil dos 70 assentavam-se, especialmente, na impugnação explícita do poder autoritário e nas consequências desencadeadas pelo “milagre econômico” que – a par da criação de imensa classe média e de um novo proletariado – gerava a fuga do campo e a favelização nas cidades. No campo dos procedimentos narrativos predominavam o naturalismo documental de caráter denuncista (o corpo-a-corpo com a vida, como dizia João Antonio) e a tendência à alegoria (ou mesmo à parábola) de imediata compreensão, pois sua natureza simbólica apontava quase sempre para a sombria ditadura. 

Em ambos os casos tratava-se de uma literatura redundante, taciturna, despossuída de qualquer humor, quando não solene. A ambição de seus autores resumia-se a fustigar o regime e a conscientizar os leitores das mazelas da nação. Muitos do que a produziam eram jornalistas, treinados na linguagem imediatista e unívoca da profissão e desinteressados de uma elaboração mais sofisticada das formas e do estilo. Como é de praxe, o fulgor da arte de protesto tende a se exaurir quando a situação que a originou desaparece ou se atenua, e a maioria desses escritores foi esquecida.

Por suposto, havia ficcionistas de superior qualidade escrevendo naquela época: Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, João Ubaldo Ribeiro, Carlos Heitor Cony, Nélida Piñon, Antonio Torres, Dalton Trevisan, entre outros. Mas apenas Dalton Trevisan lidava, aqui e ali, com elementos cômicos ou tragicômicos.

Assim, quando o “folhetim histórico” de Márcio Souza irrompeu nas livrarias, com sua deliciosa fragmentação, seu estilo desabusado, pleno de ímpeto burlesco, ótica corrosiva e vibração anárquica, sentimo-nos arrebatados, como se assistíssemos a um esfuziante vaudeville que rompia com a atmosfera amarga, quase depressiva, que reinava nas obras literárias daqueles tempos. Além disso, o texto inseria-se em uma visão politicamente correta, conforme o gosto de então, pois mesmo através da perspectiva satírica, desvelava o interesse estrangeiro pelas riquezas da Amazônia.

Lembro que no ano seguinte a publicação de Galvez, em um simpósio na Assembleia Legislativa – organizado pelo sociólogo André Forster –, me vi impelido, por incandescente arroubo juvenil, a declarar para o auditório que o relato de Márcio de Souza abria um caminho modelar para a narrativa brasileira e que, por seu turno, esse escritor seria o nome-chave de nossa literatura nos anos seguintes. Então, o professor Guilhermino César (meu futuro chefe) levantou-se no auditório e concordou totalmente com aquela profecia, que não viria a se consumar. Demonstrávamos, ambos, a fragilidade dos oráculos modernos.

De sua obra posterior, creio que apenas Mad Maria apresenta virtudes literárias que lhe poderiam assegurar a permanência no transcurso dos anos. Tendo como tema a fascinante construção da estrada de ferro Madeira Mamoré, que custou milhares de vidas, o autor constrói vigoroso painel da realidade amazônica, utilizando, é verdade, os procedimentos técnico-expressivos de um realismo bem mais convencional, mas mantendo-nos prisioneiros de sua candente trama. Em relação a Galvez, o leitor ganha em organização estrutural, abrangência documental e histórica, mas perde em humor, invenção e surpresa.

Com esses dois romances, Márcio Souza, ingressou definitivamente no primeiro time da nossa ficção do século XX. 

Agora, talvez, já não se trate de profecia e, sim, de óbvia constatação. 


Sergius Gonzaga é professor de Literatura na UFRGS, autor de O hipnotizador de Taquara, entre outros livros.

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