Resenha

Dicionário da memória afetiva: Minha França

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Dicionário da memória afetiva: Minha França Foto: Divulgação

O último livro lançado por Juremir Machado da Silva, pela editora Sulina de Porto Alegre, revela a paixão do autor pela França, por sua cultura, sua arquitetura, sua história e também por sua língua. 

O título já indica ao leitor que o fio condutor da redação da obra são os afetos. O autor enfatiza a afetividade pelos grandes filósofos e pensadores, que foram seus guias intelectuais durante o período de redação de sua tese na Sorbonne, em Paris. Sua paixão pela vida cultural, pela tradição de grandes pensadores, pelo clima das Universidades francesas, com ênfase para a Sorbonne e pela cidade de Paris com seus monumentos, catedrais, obras de arte e bibliotecas, emularam o autor a discorrer sobre essas suas saborosas memórias afetivas. Enfim, seu interesse pela história da França, pela riqueza estética e intelectual do país, sua gratidão pelos guias intelectuais que aí encontrou e as ricas experiências que teve durante os quase 5 anos de duração de seu doutorado, em Paris, foram fatores determinantes para que desse início a esse livro. 

Eu, que também sou uma apaixonada pela língua e cultura francesas, tendo chegado a ser professora titular de língua e literaturas de língua francesa no Instituto de Letras da UFRGS, curti cada uma das reflexões do autor sobre Paris, a França e os franceses, ao longo de mais de 400 páginas…. Lamentei, não ter feito como Juremir que anotou datas, endereços e todos os nomes das pessoas que encontrou…. hoje conseguiria refazer minha história em terras de França.

Juremir anotou – em sua caderneta de jornalista e escritor – seus encontros com intelectuais e outras celebridades, muitas das quais foram por ele entrevistadas e outras tantas foram de convivência assídua em função, não apenas da redação de sua tese, mas também do trabalho de jornalista que continuou exercendo, realizando entrevistas com a crème de la crème da intelectualidade francesa, incluindo filósofos, mas também escritores renomados como Michel Houellebecq, de quem se tornou amigo, e da famosa filósofa Julia Kristeva. Entre os filósofos, escritores, pensadores e mestres da Sorbonne, privou de maneira mais próxima com Edgard Morin, Michel Maffesoli, Jacques Le Goff, Pierre Lévy que, em diferentes momentos, vieram a Porto Alegre onde foram guiados e entrevistados por ele. 

Se o delicioso Dicionário da memória afetiva tivesse se detido unicamente no contato com tais personagens já bastaria para nos dar uma excelente visão da França. A, contudo,  obra aborda a França de todos os pontos de vista: ela serve de guia para conhecer melhor parques e museus que são descritos com riqueza de detalhes e com precisão de dados históricos, incluindo referências culturais que revelam o profundo connaisseur da cultura francesa que ele é. Contudo, o Dicionário é muito mais do que isso, porque ele desvenda para seus leitores que, como eu não conseguem parar de ler, detalhes picantes de muitos personagens e, sobretudo, se detém demoradamente na descrição minuciosa das delícias gastronômicas dessa cidade que não cessa nunca de nos surpreender….. 

Em uma próxima visita, vou levar comigo essa obra, para percorrer os muitos restaurantes cujo menu foi minuciosamente, e eu diria cruelmente, descritos pelo autor que deixa seu leitor com água na boca diante das delícias degustadas…

A obra tem prefácio de Giles Lipovetsky, filósofo francês e teórico da hipermodernidade, e posfácio de Philippe Joron, professor da Université Paul Valéry, no sul da França onde Juremir recebeu uma das mais altas homenagens feitas a um estrangeiro que é a outorga do título de Doutor Honoris Causa da Université Paul Valéry, em Montpellier. Como se não bastasse, a quarta de cobertura é assinada por ninguém menos que Michel Houellebecq.  

Juremir cita por diversas vezes a pessoa que esteve com ele em todas essas aventuras França afora, que foi sua esposa, Cláudia, que o acompanhou nesta longa estada em terras estrangeiras que, como todos os que já ficaram no exterior, por longas temporadas, sabem que há muitos momentos penosos em que sentimos a falta dos parentes e amigos, enfim do pays natal…Como todos sabemos a palavra “saudade” não existe em francês, mas podemos falar em nostalgie, mal du pays, que se aproximam do sentimento que abate a todos que permanecem longo tempo no exterior, ou seja, a consciência de, por mais que falemos bem a língua, nos sintamos “estrangeiros”….

O aspecto para mim, mais saboroso dessa obra é o fato de ser – como nos informa o título – relatos de uma “Memória afetiva”. Acredito, contudo, que esse dicionário traz à tona – para além da proclamada memória afetiva – memórias individuais e coletivas, memórias gastronômicas, podendo intitular-se memória e literatura, memória e identidade, tempo e memória, pois o foco de onde brotam todas as lembranças registradas nessa obra provém do incansável trabalho da memória. Para os interessados nos estudos relacionados com a memória, esse livro abre um vasto campo de estudo e observação. Em diversas passagens, o autor fala dos pratos típicos que foi conhecendo e degustando ao longo do tempo entre os quais sobressai o famoso “confit de canard” (coxa de pato). No caso, ele está associando memória e gastronomia, tema sobre o qual já refletiu, entre outros, Roland Barthes que nos ensina que “o alimento coloca o homem em contato diário com as memórias do solo, de seu passado e de sua própria história. A comida comunica e ao comunicar narra histórias, evoca memórias” (Barthes, 1961). 

O autor nos apresenta nesse dicionário para além de suas memórias individuais, as memórias coletivas da nação que descreve, memórias culturais que foram preservadas através de textos, ritos e monumentos que são descritos ao longo das 439 páginas dessa esplêndida obra.  Assim, ao passar por praças, monumentos, museus, galerias e bibliotecas, Juremir aciona o que Aleida Assmann classifica como memória dos locais sagrados e traumáticos, que compõem o que a autora chama de memória cultural, definida por ela como aquela que se alimenta da tradição e da comunicação, “englobando rupturas, conflitos, inovações, restaurações e revoluções” (Assmann, A. In: Dicionário de expressões da memória social, 2017, p. 158)

Finalizo convidando todos aqueles que amam a França, os habitués desse país ou  os que ainda não o visitaram, a munir-se desse Dicionário da memória afetiva; minha França (Sulina, 2024), para conhecerem esse inexcedível visto pelos olhos de quem conhece e vivenciou sua cultura, sua literatura e sua filosofia e também, last but not least, sua gastronomia…. 


Referências:
ASSMANN, Aleida. Espaços de recordação; formas e transformações da memória cultural. Campinas: Unicamp, 2011. 
BERND, Zilá; KAYSER, Patrícia. orgs. Dicionário de expressões da memória social, dos bens culturais e da cibercultura. Canoas: Unilasalle, 2017, 2. Ed. 
MACHADO DA SILVA, Juremir. Dicionário da memória afetiva; minha França. Porto Alegre: Sulina, 2024. 


Zilá Bernd é pesquisadora CNPq, Membro da Academia Rio-Grandense de Letras. 

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