Juremir Machado da Silva

Legado de Delfim Netto

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Legado de Delfim Netto Foto: Salu Parente | Câmara dos Deputados

Morreu o economista Delfim Netto. A polêmica começou. Quem foi o homem? Que legado deixou? Como o Brasil não é para memoriosos, tudo se enrosca. Delfim foi a mente econômica da ditadura no seu momento mais tenebroso. Assinou o famigerado AI-5, de 13 de dezembro de 1968, que deu status de ditadura a um regime ditatorial que tentava salvar algumas aparências não se aceitando no espelho como de fato já era, e pilotou o chamado “milagre econômico”, um passe de mágica que culminou em inflação gigantesca, embora tenha caído para modestos 15% ao ano no auge do fenômeno, e em dívida externa descomunal, mas que encantou a classe média patriótica enquanto durou e permaneceu ilusório, com altas taxas de crescimento do PIB e cavalares intervenções estatais na economia. Os liberais lucravam e não pediam por Estado mínimo.

Acontece que, terminada a ditadura, Delfim foi retocando a sua biografia até se tornar um “velhinho” simpático, sempre muito inteligente, com tiradas espirituosas e amizades inesperadas, por exemplo, com Lula. De repente, o cérebro da economia do regime militar, que jamais renegou o AI-5, tinha preocupações sociais e simpatias pelos mais pobres. A mais famosa frase de Delfim Netto foi negada por ele, a de que primeiro se devia fazer crescer o bolo para depois dividi-lo, culinária ao gosto das elites, que comiam grossas fatias de bolo sem precisar compartilhá-lo com a massa por ainda não estar suficientemente crescido. Se realmente Delfim não disse essa frase, deveria ter dito, pois ela o identifica com perfeição.

Outra tirada de Delfim que tem circulado nas redes é aquela em que considera a empregada doméstica um animal extinto. Dessa vez, ele pediu desculpas por ter revelado o que pensava. A mitologia diz que Delfim era divertido, sagaz, acolhedor e carismático. Escreveu muito em jornal sem jamais condenar a ditadura que apoiou e ajudou a manter. Poderia ser um personagem estranho numa das obras mais contundentes sobre ditaduras latino-americanas, A festa do bode, de Vargas Llosa, sobre o regime de Trujillo, na República Dominicana, sem os arroubos barrocos das ditaduras hispânicas, mas com rastros de destruição.

Era uma época “mágica”: corrupção não existia pelo fato de que não podia aparecer nos jornais, salvo em casos que produzissem um sentimento exemplar de moralidade pelas condenações e por não envolver membros diletos do sistema. A vida era tranquila e segura, pois o aparato repressivo não perdoava divergências: o pau comia, cantava e silenciava os inimigos dessa utopia, qualquer um que reclamava alto demais por democracia. Delfim não via problema nesses métodos heterodoxos de formação de consenso. Entendia que o país vivia um período especial e que, portanto, eram lícitos procedimentos extraordinários. O tempo passou, Delfim virou a página sem fechar o livro. Não se releu quanto ao capítulo principal da sua biografia.

Que legado deixa Delfim Netto? O legado de um homem do seu tempo, um tempo em que era possível apoiar ditaduras e seguir em frente como se nada de mais tivesse acontecido. Anos de chumbo!

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