Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo CXIII: Kleiton e Kledir – Final

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Capítulo CXIII: Kleiton e Kledir – Final Kleiton e Kledir

A dupla entra 2007 com Kleiton estreando em duas novas frentes: como escritor, autor do livro Sonhos e Sonhadores – Caminhos do Inconsciente. E na Universidade Católica de Pelotas, como um dos idealizadores do curso de Produção Fonográfica.

No ano seguinte, eles começam a conceber um novo CD/DVD chamado Autorretrato (Som Livre). O disco – feito junto com um clipe para cada música, dirigido por Edson Erdmann – é novamente produzido por Paul Ralphes. E, agora sim, mira no conceito Acústico MTV. No caso deles, seria mais correto falar em conceito Almôndegas

A responsabilidade é grande. Afinal esse vai ser o primeiro disco de inéditas da dupla em duas décadas – o último lançamento sem regravações havia sido o Kleiton e Kledir de 1986.

Pela primeira vez o repertório tem exclusivamente canções escritas pela dupla. Afinal, juntos ou separadamente, eles tinham na gaveta nada menos do que setenta músicas inéditas feitas nestes 22 anos.

Como em Clássicos do Sul, de nove anos antes, a base da sonoridade são violões e uma imensidão de loops de percussões. O repertório tem muitas boas novidades, mas uma canção que se destacou imediatamente foi justamente a que dá nome ao CD, Autorretrato. Uma tão deliciosa quanto tocante conversa entre dois velhos amigos.

– Já nasci estressado, com 2 quilos e 100.
– E eu, careca e pelado, meio magro também.
– Não peguei catapora.
– Não fui me batizar.
– Vixe Nossa Senhora!
– Salve Oxalá!
– Fui criado na rua, tenho meus pés no chão.
– Sou do mundo da lua, troco os pés pelas mãos.
– Tenho medo do escuro.
– E eu de andar de avião.
– Sou de Porto Seguro.
– E eu de Jaguarão.

Coisa boa é um amigo, pra poder se encontrar e jogar conversa fora!
Tu me ensina a viver, que eu te ensino a sonhar e por aí vamos embora.

– Sou do balacobaco!
– Eu não tô nem aí!
– Jogador de buraco.
– Coleção de gibi.
– Futebol de areia.
– Futebol de botão.
– Caminhada na esteira.
– Televisão!
– Tô relendo Bandeira.
– E eu, Machado de Assis.
– Sou Flamengo e Mangueira.
– Vasco e Imperatriz.
– Sinto frio nos joelhos.
– Eu, na ponta dos pés.
– Sou alérgico a pelo.
– Tenho chulé!

Coisa boa é um amigo pra poder conversar e trocar figurinhas!
Tu me ensina a viver que eu te ensino a sonhar cada sonho que eu tinha.

– Eu só como o miolo.
– Eu, casquinha do pão.
– Spaghetti com molho.
– Bife, arroz e feijão.
– Sou viciado em chiclete.
– Picolé de limão!
– Bomba e crepe Suzette.
– Goiabada cascão.
– Sou Aquário com Touro.
– Ascendente Leão.
– Eu já fui escoteiro.
– Escapei de raspão…
– Sou cantor de chuveiro.
– Eu adoro dançar!
– Vou casar em janeiro, em B.H.

Coisa boa é um amigo pra poder revirar o que ficou na lembrança!
Tu me ensina a viver, que eu te ensino a sonhar. Cheios de esperança.

– Eu odeio gravata.
– Gente com celular.
– Cervejinha de lata.
– Coca Cola sem gás.
– Ando sempre atrasado…
– Eu só pego metrô.
– Corro atrás de uns trocados, sou professor…
– Não relaxo o pescoço.
– Eu, só no Maracanã.
– Eu só durmo de bruços.
– Eu, com Lexotan.
– Uso toca de banho.
– Cueca samba canção.
– Eu não ronco.
– Estranho, eu também não!

Coisa boa é um amigo pra poder confessar cada velha mania!
Tu me ensina a viver, que eu te ensino a sonhar cada sonho que havia.

– Ando meio caído.
– Pra lá de Bagdá.
– Uma certa barriga…
– É, já deu pra notar.
– Vou fazer um check up.
– Já parei de fumar.
– Antes que dê um ataque vou pra um spa!
– Sou do tempo do êpa.
– Andei de DKW.
– Volta ao mundo, Lambretta.
– Brinquei de bambolê.
– Hoje eu olho na volta.
– Olho e sei que valeu.
– Vou levando a vida, graças a Deus!

Coisa boa é um amigo pra poder relembrar, pois são tantas histórias!
Tu me ensina a viver, que eu te ensino a sonhar pela vida afora.

Coisa boa é um amigo, pra poder se encontrar e jogar conversa fora!
Tu me ensina a viver, que eu te ensino a sonhar e vamos tocando a bola…

Há também a bela balada História de Amor, a almondegueana Estrela Cadente (no sulista compasso de 6/8), a solar Ao Sabor do Vento. A singela balada de melodia marcante Só Liguei. A canção de amor maduro O Tempo Voa. A divertida lista de conquistas de Eva (com uma deliciosa levada no ritmo quebrado de 7/8, e que tem sua versão feminina como bônus no DVD, cantada pelo grupo As Chicas, rebatizada Adão). E finalmente uma homenagem a sua cidade: Pelotas.

O violino de Kleiton se destaca em vários momentos, desde a música de abertura, A Dança do Sol e da Lua. Os vocais de ambos estão em grande forma.

Ainda que não tenha sido um sucesso de vendas, há muito tempo um disco da dupla não era tão bem recebido pela crítica e pelos velhos fãs.

Entram 2010 como cidadãos honorários de Porto Alegre e enredo no carnaval de Pelotas: Academia do Samba exalta Kleiton & Kledir – vou pro Carnaval, tchau! Desfilaram junto com a irmã/produtora Branca e três almôndegas: Quico, Gilnei e Pery Souza. 

Kleiton abriu então mais uma frente: seu programa de rádio, O Sul em Cima, segue desde então, semanalmente apresentado na rádio Roquette Pinto do Rio de Janeiro e retransmitido para rádios do Japão, Uruguai e Peru.

No ano seguinte, foram os homenageados do prêmio Açorianos de Música, de Porto Alegre, pelo conjunto da obra. E começam a pensar num disco infantil – algo que Kleiton já tinha esboçado no CD encartado em seu livro para crianças O Vôo do Dragão.

O disco, batizado Par ou Ímpar, é lançado no Dia da Criança daquele ano pela gravadora Biscoito Fino. Tem até uma música composta por Kleiton aos 12 anos, A Bruxa, além de versões em português para dois clássicos da maior compositora argentina de música para crianças: Maria Elena Walsh. Um dos destaques é Pé de Pilão, parceria de Kledir e Vitor escrita para o musical Pé de Pilão, de Vitor, Claudio Levitan e Nico Nicolaiewsky, baseado no livro infantil de mesmo nome, de Mario Quintana.

Só que o que era pra ser apenas um disco se transforma numa gigantesca empreitada quando, em 2011, o grupo circense Tholl, de Pelotas, topa montar com a dupla um espetáculo grandioso, com quase cinquenta pessoas no palco, cenários e figurinos luxuosos, baseado nas canções de Par ou Ímpar. O musical fez sucesso por anos e foi registrado em DVD lançado também pela Biscoito Fino.

Os irmãos seguiam lançando livros. Aí, em 2014, a partir de um velho sonho não realizado com o escritor Caio Fernando Abreu, nasce o projeto Com Todas as Letras

Kledir, em depoimento pro Luís Augusto Fischer, conta como finalmente, depois de décadas de tentativas de uma canção em trio, a coisa se concretiza:

Anos 90. Caio estava lançando Ovelhas Negras e um dos textos do livro falava exatamente sobre o tema que queríamos retratar. Era o toque que faltava. Começamos a esboçar a melodia e Caio se dedicou a reescrever a ideia em forma de letra de música. Fomos trocando figurinhas e finalmente nasceu a canção que tínhamos passado mais de 20 anos tentando fazer. Lixo e Purpurina fala da nossa geração, nós os que nascemos com um trânsito de Netuno no signo de Libra. Uma geração que detonou com todos os tabus de comportamento e sonhou com um mundo de paz e amor. 

Caio foi embora e por muito tempo guardamos a música com carinho, sem saber muito bem o que fazer com ela. 

Aí um belo dia Kledir liga pro Luís Augusto Fischer, com uma proposta: ele exercer a inédita função de curador de um álbum musical da dupla onde todas as composições fossem parcerias dos irmãos com escritoras e escritores gaúchos contemporâneos. Um excelente texto do próprio, que está só no encarte do vinil, conta lindamente a história. Um trechinho:

“Lixo e purpurina” (…) deu ao Kledir a certeza de que escritores de prosa poderiam ser excelentes parceiros em canções. (…) Minhas sugestões, então, passaram a ser um acréscimo a essa pedra angular, a parceria com o Caio. (…) Fiz contatos iniciais apresentando a ideia aos escritores. Quase todos aceitaram de primeira, mesmo quando reticentes. Em outras palavras, alguns me responderam usando um argumento forte para terem resistência – como é que um escritor, no fim das contas um solitário, um praticante de uma arte fria, tramada e depois lida em esfera sempre individual e isolada, poderia se meter na composição de canções, para palco, para a estridência da performance, para o âmbito público que ela respira? O Kleiton e o Kledir, com a humildade dos sábios, entraram em campo, feito esse primeiro contato. 

A partir daí, a dupla foi visitar cada escritor, pra entender seu universo musical. O disco com as 10 parcerias acabou com a seguinte escalação: Caio, Claudia Tajes, Luis Fernando Verissimo, Leticia Wierzchowski, Daniel Galera, Martha Medeiros, Alcy Cheuiche, Fabrício Carpinejar, Lourenço Cazarré e Paulo Scott. Galera toca guitarra (e compôs a música), Scott canta um rap e Verissimo toca saxofone em suas respectivas canções. Na de Caio, Adriana Calcanhotto brilhan como convidada.

Com Todas as Letras sai no ano seguinte, pela Biscoito Fino, numa edição luxuosa, dupla, com CD e DVD com um documentário dirigido por Gustavo Fogaça, o Guffo, filho do velho amigo Fogaça. Produzido por Christian Oyens, teve ainda uma edição em vinil, com um livro de 64 páginas.

* * *

Casa Ramil

Tocados com todo o processo desse trabalho, a dupla resolve transformar sua vasta experiência de composição na oficina Letra e Música, que rodou por muitas cidades do Rio Grande do Sul e algumas de fora dele.

E aí, em 2016, o inevitável acontece: os irmãos Kleiton, Kledir e Vitor Ramil, por sugestão da irmã produtora Branca Ramil, se reúnem aos filhos/sobrinhos Ian, Thiago, Gutcha (todos com discos lançados e carreiras musicais) e João Ramil. 

Como fazem toda virada de ano, encontraram-se todos na casa da família, na Praia do Laranjal, em Pelotas, em torno da matriarca Dalva.

Só que, desta vez, além de toda a confraternização, iriam ensaiar um show reunindo todo mundo, batizado de Casa Ramil

Demorou pra estrear, afinal ensaiar uma banda onde todos tem a mesma hierarquia não é nada simples. Sem falar na dificuldade em conciliar agendas. 

A estreia seria só em 2018, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Desde então, depois de uma parada pela pandemia de Covid, a cada tanto a turma se encontra. Um disco, gravado ao vivo, foi lançado em 2023. Na ficha técnica, mais um monte de Ramis. 

No meio disso, o jornalista Emílio Pacheco lançou o minucioso Kleiton & Kledir, a biografia, o livro definitivo sobre a dupla (e sobre os Almôndegas). E aí, neste mesmo 2023, para surpresa de muitos, os Almôndegas anunciam um show! 

Os recordes de lotação do Auditório Araújo Vianna (e do Theatro Guarany, em Pelotas) foram atualizados. Kleiton, Kledir, Quico Castro Neves, João Baptista, Gilnei e Zé Flávio surpreenderam a todos que foram ver um show nostálgico, prontos para exercer sua condescendência em nome da memória afetiva. Foi um showzaço. Quico e Gilnei, que não subiam a um palco há muito tempo, estavam tão impecáveis quanto seus colegas que sobem em palcos o tempo todo. 

Retrospectivamente, a grande emoção sobre esse show, visto de 2024, foi registrar Zé Flávio, que estava então bastante esquecido, consagrado pela multidão – tanto como compositor quanto no posto de guitar hero

O espetáculo nem tinha começado e os produtores já divulgavam uma nova data para quem não tinha conseguido ingresso. Quando, no fim do ano, lotaram novamente o Araújo, Zé tinha sido levado por um câncer devastadoramente veloz.

Agora estamos em 2024. 

Exato meio século desde a fundação oficial dos Almôndegas. 

Kleiton tem 73 anos. 

Kledir, 71. 

E sabe-se lá o que ainda está por vir.

(Eu sei, é bacanérrimo, mas não posso contar).


Arthur de Faria é pianista, compositor e arranjador. Doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS, na área de canção popular. Produziu 28 discos, dirigiu 12 espetáculos. Escreveu 52 trilhas para cinema e teatro em Porto Alegre, São Paulo e Buenos Aires. Lidera a Tum Toin Foin Banda de Câmara e teve peças interpretadas por orquestras e solistas de várias cidades brasileiras. Tocou em meia dúzia de Países e 19 estados brasileiros. Lançou 20 álbuns e EPs e três livros sobre a música de Porto Alegre, dois deles você leu primeiro aqui na Parêntese, em capítulos.

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