Memória

180 anos de muita emoção

Change Size Text
180 anos de muita emoção Carlos Bastos e Flavio Tavares

“A maior qualidade do Bastos é saber cultivar a amizade, pois ter   amigos-amigos é a maior qualidade humana.”
Flávio Tavares

“A maior qualidade do Flávio? Ele é muito parceiro. Solidário em todos os momentos.”
Carlos Bastos

Com diferença de seis semanas, dois grandes jornalistas gaúchos, amigos desde a década de 1950, completam 90 anos, com a cognição em alta, reconhecidos e respeitados por sua ética profissional. Ao seu redor reúnem-se jovens e cabeças brancas, encantados com suas mil e uma histórias sobre os momentos turbulentos da vida política brasileira, nos últimos 70 anos. Eles testemunharam a revolta do povo ao saber do suicídio de Getúlio Vargas. Viveram o movimento da Legalidade, dentro do Palácio Piratini. Sobreviveram ao golpe cívico-militar de 1964.  Acompanharam a redemocratização e sofreram com o governo de direita do capitão, defensor da ditadura.    

Flávio Aristides Hailliot Tavares (Lajeado, 12 de junho de 1934) e Carlos Henrique Esquivel Bastos (Passo Fundo, 25 de julho de 1934) se conheceram no Colégio Júlio de Castilhos. A amizade entre eles, porém, só se fortaleceu mais tarde, quando os dois integravam a equipe da edição gaúcha da Última Hora, jornal lançado por Samuel Wainer, no Rio de Janeiro, em 12 de junho de 1951, quando Flávio comemorava 17 anos. Mais de sete décadas depois, Flávio diz que “é difícil definir” o que os manteve unidos, apesar da longa separação, provocada pela ditadura militar. “Creio que, de um lado, a ternura de Bastos e, de outro, a sua coerência nos uniram reciprocamente.”

Sou inteiramente tomada pela emoção ao vê-los sentados lado a lado, no sábado, 27, no Chalé da Praça XV. Ali, os ex-chefiados por Bastos, transformados em seus eternos amigos e admiradores, comemoravam seu aniversário. Uma festa para mais de cem pessoas, muitas das quais não se encontravam há vários anos. 

Não me canso de admirar os dois agora nonagenários. Sinto que as lembranças se imiscuem entre a gritaria dos reencontros, dos fortes abraços, das conversas em elevados decibéis, das risadas felizes, das selfies para a posteridade, do tilintar de copos e talheres. Elas me levam de volta a 1969, quando conheci Bastos, num bar barulhento e não muito asseado da rua da Praia, ao lado da então Companhia Jornalística Caldas Jr, onde trabalhávamos. Nós – os inesquecíveis João Souza, Floriano Soares (Florianinho), Hermelindo Paes de Macedo e eu – preparávamos o lançamento do terceiro jornal da empresa, a Folha da Manhã. Bastos dirigia o departamento de Jornalismo da Rádio Guaíba. 

Já havia alguns dias que o principal assunto da roda de amigos era a derrota imposta pelos sequestradores do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick à ditadura militar, obrigada a soltar 15 presos políticos em troca da liberdade do refém. Os amigos falavam e eu ouvia, impressionada, aos 22 anos, com o conhecimento deles. Pela primeira vez, escutei o nome de Flávio Tavares, um dos banidos do país, levados para o México. Bastos, agitado, comentava sobre a surpresa que teve ao saber da prisão de Flávio, de quem era procurador, acusado de guerrilheiro. Mais: ele era uma peça importante do grupo ao qual pertencia com o pseudônimo de doutor Falcão. 

Enquanto falava, Bastos jogava continuamente para o alto um imenso molho de chaves, e logo o aparava, sem o menor esforço. Este gesto era a sua marca registrada. Recorria às chaves que, em suas mãos, se transformavam numa bola só vista por ele, tanto nos bons quanto nos maus momentos, quando estava preocupado ou feliz, nas horas em que precisava montar alguma estratégia para manter sua equipe, sem os cortes determinados pelos chefões, e até mesmo quando secava os adversários do Grêmio, seu time desde a infância.    

Minha memória segue num vaivém sem limite e sem qualquer ordem. As imagens, acompanhadas das emoções remotas, trazem para hoje lugares e épocas adormecidos. Uma das imagens, tatuadas em meu cérebro, é a da volta de Flávio do exílio, depois de ter sido torturado nas prisões do Brasil e do Uruguai e vivido, como exilado, no México, na Argentina e em Portugal. O saguão do velho aeroporto Salgado Filho não tinha como abrigar a todos os amigos, colegas, profissionais da comunicação e curiosos que foram recepcionar o ex-asilado. Repórteres de jornal, rádio e TV se acotovelavam em busca de um lugar mais próximo da porta de desembarque. O ambiente era totalmente festivo. Até bumbos apareceram por lá.  Mas nada supera o impacto emocional, o arrepio na coluna, ao ver Flávio carregado pelos amigos, enquanto os demais cantavam o Hino Nacional e agitavam bandeiras do Brasil. Símbolos que, em 1979, uniam o país contra o regime ditatorial. 

Saímos do Salgado Filho, João Souza e eu, com a alma lavada. Afinal, a campanha pela anistia tinha sido vitoriosa, e os que sofreram o exílio estavam de volta para ajudar a criar um novo país. Eu me perguntava quando teria a chance de conhecer Flávio pessoalmente. Demorou um pouco mais do que eu imaginei. Fomos apresentados na redação de Zero Hora por Lauro Schirmer e Carlos Fehlberg. Ele foi contratado como articulista do jornal, onde aparecia de tempos em tempos para um bate-papo com os colegas e a chefia. Daí vem a nossa amizade.

Retorno mentalmente ao Chalé, quando o presidente de honra da ARI – Associação Riograndense de Imprensa, Batista Filho, entrega ao Bastos o Prêmio Antônio Gonzalez de Contribuição à Imprensa, de 2023.  Entrega-lhe, ainda, uma camiseta da campanha de combate às notícias falsas, capitaneada pela ARI, que alerta leitores, ouvintes e telespectadores de seu direito, dever e poder de duvidar do que leem, ouvem e veem. “Procure se informar com o jornalismo profissional, que trabalha pela verdade”, aconselha a ARI. 

A homenagem (merecida, mais do que merecida) a Bastos me faz lembrar que Flávio também será homenageado. No dia sete de agosto, no Salão Adel Carvalho, ele receberá o Troféu Câmara Municipal de Porto Alegre, proposto pelo vereador Roberto Robaina, do PSOL. 

Fico ali em frente aos dois. Sinto transbordar a emoção dos dois amigos. Penso que, apesar de serem personalidades diferentes e terem feito carreiras distintas, eles convergem em muitas coisas: estão sempre bem informados e atualizados, gostam de conversar sobre política, até hoje mantêm fontes nesta área, que os informam dos bastidores regional e nacional, têm bom humor, são gentis, atentos aos seus interlocutores, são homens de diálogo e se divertem contando histórias acontecidas com eles. Aqui vão uma protagonizada por Bastos e outra por Flávio.

Bastos era diretor do departamento de notícias da antiga TV Difusora, que se preparava para lançar, com o máximo barulho possível, um telejornal à noite. Bastos montou uma equipe com nomes surpreendentes. Para a bancada do Câmara 10, um grande sucesso no RS, ele convidou a ex-Miss Universo Yeda Maria Vargas, que apresentaria o telejornal ao lado do âncora Airton Fagundes. Para comentaristas, convidou do costureiro Rui Spohr à futura ex-senadora Ana Amélia Lemos, que, como Yeda, fazia sua estreia na TV. Tudo ia bem com a equipe até que Ana Amélia descobriu que seu salário era inferior ao da Yeda, e foi reclamar com o Bastos. Ele sempre esfrega as mãos e ri muito ao contar a resposta que deu à reclamante, justificando a diferença salarial:

– Ana Amélia, a Yeda foi Miss Universo. Tu, Miss Lagoa Vermelha.    

Flávio se asilou em Portugal, ao ser libertado pela ditadura uruguaia, após uma campanha internacional, promovida pelos jornalistas. Em Lisboa, trabalhava como correspondente do paulista Estado de S. Paulo. Na primeira entrevista coletiva concedida pelo presidente português Antônio dos Santos Ramalho Eanes, primeiro presidente eleito, depois de 40 anos de ditadura, Flávio senta-se na primeira fila, ladeado por dois chineses. A cada palavra do presidente, Flavio fala com um chinês e depois com o outro. Este papel de tradutor chama a atenção dos colegas e do próprio presidente, que passou a responder às perguntas, olhando para Flávio. No que termina a entrevista, os colegas portugueses correm até ele, reclamando: “Não nos disseste que falas chinês!”. Flávio se diverte ao lembrar do acontecido. E explica:

–  Os chineses tinham aprendido português do Brasil. E o presidente tinha uma pronúncia muito bonita, mas muito fechada. Eles não entendiam o que o Eanes falava. Eu traduzia o que o presidente dizia para o português do Brasil. 

Conclui, rindo muito: “E os portugueses perguntavam: O Flávio fala chino, pá?”

Na hora do Parabéns, me entusiasmo. Canto alto e desafinadamente tanto para Bastos quanto para Flávio. Eles são medalha de Ouro nas Olimpíadas da vida.  


Nubia Silveira é  jornalista. 

RELACIONADAS
  • Memória
  • Memória
  • Memória
  • Crônica, Memória
    Crônica, Memória
;
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.