O que faremos para não esquecer da enchente de 2024?
Eu sigo me impressionando com as marcas da água que Porto Alegre ainda exibe quase dois meses depois da cheia histórica de maio. No Mercado Público, a água chegou na minha altura, 1,70m. Nos postes do calçadão de Ipanema, a mancha marrom alcança o topo da cabeça do meu filho, de sete anos. Dentro da casa do meu sogro, no Guarujá, bate mais ou menos na cintura dos adultos. No interior de residências em Eldorado e nas Ilhas, foi até o teto.
Essas cicatrizes vão sumir, mas é importante que Porto Alegre não apague essa memória do seu dia a dia. Nós crescemos ouvindo sobre a enchente de 1941, mas essa não é uma história que está presente na vida da cidade. À exceção da placa localizada no interior do Mercado Público e da marcação existente no Cais Mauá, que outros sinais temos de que um dia o Guaíba invadiu ruas, desalojou milhares de pessoas, destruiu casas?
Aliás, a água avançou sobre a cidade também em 1967. E em 2015. E em 2023. Nas Ilhas, acontece com ainda mais frequência. Onde está contada essa história? O que vamos fazer para que o trauma que estamos vivendo em 2024 não caia no esquecimento?
Algumas ideias
No porto de Manaus, uma placa gigante mostra o nível do Rio Negro ao longo dos anos. A marca mais alta é recente: 2021. Em seguida, 2012 e 2022. Meu amigo e jornalista Sebastião Ribeiro está na capital do Amazonas e publicou a foto do quadro no seu perfil do Instagram. Fui impactada pela solução simples que cumpre bem o papel de manter viva a memória das oscilações da água. Em conversa com algumas pessoas na região, ele soube que o rio já invadiu a calçada e avançou até a primeira rua nesta que é uma área central, bem movimentada, mas nunca houve nada perto do que aconteceu por aqui. E mesmo assim eles têm esse quadro. Como me disse o Tião, a placa “grita, mostra que isso pode acontecer, esfrega na cara deles o tempo inteiro”.
Lembro também da entrevista concedida ao repórter Ricardo Romanoff pelo diretor-curador do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), Francisco Dalcol, quando ele falou em criar um memorial no térreo da instituição, inundado pelo avanço do Guaíba. “Hoje, não consigo ver nada funcionando no térreo do MARGS, a não ser um memorial para que a gente não esqueça do que aconteceu. Tudo indica que esses eventos vão se repetir”, disse Dalcol.
Cito ainda a iniciativa Água Até Aqui, uma campanha visual criada por profissionais de comunicação gaúchos. O grupo espalhou adesivos pelas ruas de São Paulo para chamar a atenção para a dimensão da tragédia gaúcha, sinalizando a altura da água. No site, é possível baixar o arquivo com a frase “Água Até Aqui” para mandar imprimir. O registro abaixo é da fachada de uma padaria na João Telles, no Bom Fim.
Por aqui na Matinal News e na Parêntese, seguimos publicando histórias e fotos da enchente que também servem como documento histórico. Mas é preciso incorporar essa memória no cotidiano da cidade. Para nos lembrar – não só em ano eleitoral, mas todos os dias – até onde podem ir os impactos da crise climática somada à negligência do poder público.
Marcela Donini é editora-chefe da Matinal.
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