Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo CVI: Kleiton e Kledir – 2

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Capítulo CVI: Kleiton e Kledir – 2

Entre as regalias do contrato com a Ariola e a produção de Mazzola, estava a liberdade total para escolher o repertório dos seus discos.

Deu certo.

O primeiro Kleiton & Kledir (1980) gerou dois grandes hits que seguem até hoje como referência da dupla, ambas virando tema de novela da Globo: Vira Virou (Kleiton / Kledir) – que já vinha fazendo sucesso com o MPB- 4 e estaria em Baila Comigo. E a balada romântica Fonte da Saudade (Kledir), trilha de As Três Marias

Sim, essa é aquela do…

(…)

Fecha a luz, apaga a porta, vem me carinhar
Diz aí pra minha tia que eu fui viajar
Diz que fui pra Nova York ou pra Bagdá
E que isso não é hora de telefonar.

Eu já sei que qualquer dia 
Tudo vai dançar
Mas a fonte da saudade
Nem o tempo vai secar.

Kledir morava na rua Fonte da Saudade, no Rio.

O disco foi pensado originalmente para ser gravado em Porto Alegre, com os mesmos músicos que tocaram Maria Fumaça no Festival da Tupi. Mas, mal começados os trabalhos, não se entenderam com o produtor que tinham escolhido, zeraram tudo, e resolveram recomeçar no Rio, com Mazzola.

Mas a ideia de usar músicos gaúchos, em parte, seguiu: espalhados por várias faixas temos Zé Flávio na guitarra e no violão de 12, João Baptista no baixo, Fernando Pezão na bateria e Pery Souza nos vocais e percussão. Total: seis Almôndegas. Além disso, três das 10 canções tem letra de um almôndega honorário: Fogaça (então começando sua carreira na política).

As bandas das faixas do LP se completavam com os melhores músicos brasileiros daquele momento: Mauro Senise no sax, Ubirajara no bandoneon, o gaúcho Ary Piassarolo na guitarra, Luis Avelar e Wagner Tiso nos pianos elétricos, Miguel Cidras no acústico, Luís Alves no baixo acústico, Jamil Joanes e Paulo César Barros no baixo elétrico, Robertinho Silva e Wilson das Neves na bateria, Djalma Corrêa na percussão, mais um coro que incluía a conterrânea Loma e o caçula Vitor Ramil. No acordeom, em Maria Fumaça, o icônico Chiquinho do Acordeon.

Arranjos de Luis Avelar, Wagner Tiso, Waltel Blanco, Miguel Cidras. Arranjos vocais do Kleiton e a produção/direção artística caprichadíssima de Marco Mazzola. 

Como participações especiais: Ivan Lins e o pai-de-todos Kleber Ramil – que era uruguaio, registre-se. Cantando, como só fazia em casa, um pedaço do tango Mano a Mano. Perfeitamente encaixado no final do tango nuevo O Crooner do Cabaret (Kledir / Pery):

Quando a orquestra atacou Mano a Mano, em lá bemol menor
Hipnotizado larguei a bandeja e passei a mão no microfone
Fiz sinal pro bandoneon e soltei todo o meu gogó
Sim, sempre fui reservado e quieto, mas eu fico louco com cachaça

De garçom virei crooner do cabaré, pelo menos durante esse show
Veio o leão-de-chácara do bordel, explicou que eu tava pinel
Já cantei, já virei crooner do cabaré: três minutos de grande emoção

Sob aplausos e gritos deixei o bordel
Quero ver depois dessa quem é que ainda lembra Gardel…

E aí entra Kleber com Mano a Mano.

Kleiton, no livro Kleiton & Kledir – a biografia, de Emílio Pacheco:

Kleber volta e meia cantava tangos nos encontros familiares. Era exigente em relação a isso e levava muito a sério a maneira como se deveria interpretar corretamente um tango. (…) Ficava invariavelmente com os olhos marejados, envolvido com o tema e, como falei, era quase uma solenidade. Não era apenas cantar por cantar. Ele mergulhava fundo na coisa.

Além desse tango, há muito mais que finca os pés do LP nas raízes gaúchas da dupla: as milongas Vinho Amargo e Viração (Kledir / Fogaça), o chamamé estilizado Cuña Pajé (Kleiton / Fogaça), o já citado vanerão de Maria Fumaça e a inclassificável Tassy (Giba-Giba / Maria Betânia Ferreira), escrita em tupi guarani, uma das obras-primas de Giba:

Tessaetá
Abá Tinga
Guyrá tatá
Tybira tyqueira pajé
Mbaebacuara
Potara eymá
Mamoiguara catu 
Eymá
Menama
Ybacapora
Tessaetá
Tybira tyqueira tassy
Teõ
Abá jucapira
Abá tinga
Tecó catu eyma
Teõ

Tido isso, sem falar do meio-fado meio-valsa Vira Virou, escrito pelos dois e que se tornou um clássico gravado até por Mercedes Sosa e cantado por corais do Brasil inteiro, Chile, Canadá…:

Vou voltar na primavera, e era tudo que eu queria
Levo terra nova daqui
Quero ver o passaredo pelos portos de Lisboa
Voa, voa, que eu chego já

Ai, se alguém segura o leme dessa nave incandescente 
Que incendeia a minha vida
Que era viajante lenta
Tão faminta da alegria, hoje é porto de partida

Ah, vira virou meu coração navegador
Ah, gira girou nessa galera

O repertório se completa com outra balada pop, Roda da Fortuna (Kledir), escrita de encomenda para a trilha da novela Cavalo Amarelo, da Bandeirantes. E só faltou citar uma pérola escondida: a valsa Insônia (Kleiton / Kledir). 

No meio da noite quando tenho insônia fico lendo um velho jornal
Que é pra ver se durmo antes do amanhecer
E conto ovelhas, danço com fantasmas uma dança sem emoção
E no fim das contas, pelas circunstâncias, volto a me lembrar de ti
A felicidade, apesar de tudo, é o que a gente inventou.

Um pouco mais velho, um tanto mais triste, com remendos no coração
Já não sei meu nome, já nem sei que horas são 
Meio atordoado, meio atrapalhado, pela vida sem direção
Eu reconto ovelhas e beijo fantasmas sufocado de paixão
Minha alegria, parece mentira, é lembrar o que passou.

50 mil cópias vendidas.

* * *

A estreia oficial da dupla se dá em julho de 1980, numa temporada no Projeto Pixinguinha, no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro. Como era praxe no projeto, eles, os novatos, dividiam o show com uma atração consagrada. No caso, outra dupla: Eliana e Adelaide Chiozzo, rainhas do rádio dos anos 1950.

O disco chegaria às lojas na simbólica data de 20 de setembro – em que os gaúchos comemoram a Revolução Farroupilha. Mas, antes mesmo, no começo do mês, fazem seu primeiro show no Rio Grande do Sul, no intervalo do festival Guarita da Canção, em Torres.

Lançado o LP, em outubro partem pra turnê de um ano e meio pelo Brasil com o MPB-4 (aquela tour de que a gente já falou). A trupe chega a Porto Alegre em dezembro. Os shows, no Teatro Leopoldina, foram apoteóticos.

O programa Fantástico, da Rede Globo, era a maior vitrine do País. É nele que, na sua primeira edição de 1981, a dupla lança o clipe de Maria Fumaça, com direito até a dança da chula num trem mineiro.

Depois dessa, merecidamente, ganham a Medalha do Ferroviário da Rede Ferroviária Federal S/A, a RFFSA da canção.

Olha aí o clipe:

O disco tá em todas as plataformas.


Arthur de Faria é pianista, compositor e arranjador. Doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS, na área de canção popular. Produziu 28 discos, dirigiu 12 espetáculos. Escreveu 52 trilhas para cinema e teatro em Porto Alegre, São Paulo e Buenos Aires. Lidera a Tum Toin Foin Banda de Câmara e teve peças interpretadas por orquestras e solistas de várias cidades brasileiras. Tocou em meia dúzia de Países e 19 estados brasileiros. Lançou 20 álbuns e EPs e três livros sobre a música de Porto Alegre, dois deles você leu primeiro aqui na Parêntese, em capítulos.

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