Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo CVII: Kleiton e Kledir – 3

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Capítulo CVII: Kleiton e Kledir – 3

E aí o pessoal se supera. 

O segundo Kleiton & Kledir (Ariola, 1981), tem várias figurinhas repetidas do LP de estreia. Começa pela turma dos Almôndegas: João Baptista no baixo, Zé Flávio na guitarra, Pery Souza nos vocais e bombo legüero. Desta vez os rapazes assinam a maior parte dos arranjos do disco: Lagoa dos Patos e Noite de São João são de Kledir e Sivuca, Trova é de Kledir, Estrela, Estrela e Couvert Artístico são de Kleiton. Os demais são de Wagner Tiso e Luiz Avellar.

A produção (aqui chamada “direção artística”) é de Mazzola – o diretor da gravadora e Midas da MPB daquele momento. Mas a direção musical é da dupla.

Além de Zé Flávio e João, muitos dos melhores músicos de estúdio disponíveis no Rio de Janeiro tocam ali: Mauro Senise no sax, Sivuca no acordeom, Paulo Rafael e Hélio Delmiro nas guitarras e violões, Luiz Avelar e Wagner Tiso nos pianos e teclados, Luiz Alves no baixo acústico, Alex Malheiros no baixo, Mamão e Robertinho Silva na bateria, Djalma Corrêa nas percussões. Os dois titulares também aparecem muito como instrumentistas, em violões (ambos) e violino (Kleiton).

As participações especiais são do MPB-4 (em Lagoa dos Patos) e do Céu da Boca (em Navega, Coração). Dois grupos vocais, o que ressalta o fascínio e a expertise da dupla – principalmente de Kleiton, desde a adolescência – em montar arranjos de vozes.

Vitor Ramil também tem uma presença constante no LP, ele que então lançava seu primeiro disco, aos 18 anos.

O conceito deste segundo Kleiton & Kledir é, ainda mais fortemente que no anterior, o ser-regional-para-ser-universal. Tem até uma trova que o Analista de Bagé, a então popularíssima criação de Luís Fernando Veríssimo, classificaria de “mais ortodoxa que pacote de maizena”. 

Ela se chama Trova (Kleiton / Kledir), e é dedicada ao pai de todos os trovadores gaúchos: Gildo de Freitas. Ele próprio ensinou os mistérios do gênero a Kledir, num encontro que foi até notícia de jornal.

Hoje a letra seria bastante cancelável. Na época, a censura atacou. Certamente por motivos distintos. Teve um festival de argumentos esdrúxulos, inclusive de parte de um político que achou que “bunda mole” era sinônimo de homem gay. 

Pra quem não conhece o gênero: numa trova um interlocutor responde ao outro, em eterna provocação, sempre glosando de alguma forma o último verso do anterior.

– Ô tchê este desafio 
Me deixa muito orgulhoso
Tu tem fama de valente
De taura e de gostoso
Mas eu acabo contigo 
Ou não me chamo João Cardoso

– Teu nome é João Cardoso 
Mas te chamam de Odete
De dia tu é muito macho 
De noite vira vedete
O que corta por dois lados 
Na minha terra é gilete

– Na tua terra é gilete 
Pois vem que eu te passo a faca
Vai cuidar da tua mulher 
Sirigaita essa polaca
Namora com meio mundo
Te botou um chapéu de vaca

– Me botou um chapéu de vaca 
Que falta de educação
Tu é muito ignorante 
Precisa de uma lição
Se eu tenho cara de vaca 
Vem cá terneiro-mamão

– Vem cá terneiro-mamão 
Dobra essa língua ou engole
Depois desse desaforo 
Não há mais quem me controle
E eu não sou de perder trova 
Pra gaúcho bunda mole

– Me chamou de bunda mole
Bunda mole é rapadura
É melhor ir terminando
Que a coisa já tá escura
Fica o dito por não dito
E joga água na fervura

– Tá combinado compadre
Subiu a temperatura

– As moças já tão rosadas
Também com tanta grossura

– Daqui a pouco se ofendemo
De filho da ditadura
O home pode invocar
E fecha a tal da abertura

Mas tem mais.

Quer uma milonga beeeem milonga?

Tem: Semeadura (Vitor Ramil / Fogaça), com direito a declamação do próprio Fogaça, então em seu primeiro cargo como político: deputado estadual pelo PMDB. Vitor faz o vocal da introdução do que até hoje é uma aula de instrumentação de uma milonga fora da sonoridade tradicional: a incendiária guitarra de Zé Flávio brilha especialmente, costurada pelo bandoneon de Ubirajara e uma base poderosa: Kledir e Zé Flávio nos violões, Wagner Tiso no piano elétrico, João Baptista no baixo, Pery no bombo legüero. Pincelados por uma sutilíssima orquestra de cordas.

Vitor e Mercedes Sosa regravariam a canção em 1984. Mercedes, em espanhol, com o título Siembra, em seu disco Será Posible el Sur?, que também inclui Vira Viró, com participação da dupla

Ele, em seu segundo disco: A Paixão de V Segundo Ele Próprio

No Rio Grande do Sul, a canção jamais deixou de ser cantada, principalmente no meio regional (que não abraçou nenhuma outra música nem da dupla nem de Vitor).

O caçula dos Ramil havia acabado de estrear em disco, e nesse début estava também uma música composta aos 16 anos que o acompanharia pela vida: Estrela, Estrela. Muitas vezes gravada (inclusive neste mesmo 1981, por Gal Costa), em nenhuma versão ela ganhou um arranjo tão sofisticado em cima de sua singela simplicidade. Oboé, sax soprano, naipes de flautas, trompas e trombones, mais um coro de crianças e a base se entrelaçam numa impressionante tela camerística escrita por Kleiton, repleta de polirritmias e politonalismos, inspirada na Marcha do Soldado de A História do Soldado de Stravinsky, que o fascinava desde o final da infância, quando a ouviu pela primeira vez.

Ainda na órbita de Vitor, há Noite de São João (Pery Souza / Kledir). Que, apesar de não ter sido escrita por ele, foi inspirada na canção Noite de São João: onde o garoto bota música no poema de Fernando Pessoa de mesmo nome – canção que só seria gravada em 1997, em Ramilonga.

O time das canções de forte cara regional se completa com Lagoa dos Patos (Kledir / Fogaça): mais uma milonga, com o MPB-4 abrilhantando o resultado geral de um arranjo que puxa um tantinho para o nordeste, graças ao acordeom e as ideias de Sivuca.

Pra completar, três vinhetas costuram tudo, num disco firme de conceito. Afinal, até as faixas pop, como Deu Pra Ti, glosavam o tema: o que é ser gaúcho no final do século XX?

Mas, como no disco anterior, as vendas foram puxadas justamente pelas canções que fugiam do regional: Deu Pra Ti (Kleiton / Kledir), Paixão (Kledir) e Navega Coração (Kleiton / Kledir). 

Falemos dessas três.

Deu Pra Ti abre o disco e virou uma espécie de hino não-oficial de Porto Alegre (junto com Amigo Punk?). É inspirada na turma porto-alegrense da dupla, e nos jovens grupos de cinema e teatro que então surgiam. A tal “tchurma do Bom Fim”, que se enxergava na peça Scholl’s Out e no filme Deu pra Ti, Anos 1970 (de Giba Assis-Brasil e Nelson Nadotti).

Glossário: “cobertor de orelha pro frio” é alguém que te esquente no inverno. 

E, ainda que ninguém de Porto Alegre chame a cidade de “Porto”, até hoje muita gente do interior – como os pelotenses, por exemplo – seguem usando a alcunha: “vou pra Porto no fim-de”.

Mas o mais impressionante na canção é o seguinte: hoje nenhum gaúcho fala nem tchurma, nem deu pra ti (hoje é deu, né?), nem tri-legal (mas sim tribom, tô tri-fudido ou outras variações semelhantes ao “re” portenho – rebueno, reputamadre etc). Mas na época, sim, se falava, e muito. 

Pois essas expressões se popularizaram a partir da canção, assim como o galera, que era bem pouco usado até ali.

Deu pra ti baixo-astral: vou pra Porto Alegre, tchau!

Quando eu ando assim, meio down, vou pra Porto e bah, tri-legal.
Coisas de magia, sei lá, Paralelo 30…

Alô tchurma do Bom Fim! As guria tão tri afim.
Garopaba (sim, todo gaúcho meio hippie dessa geração ia pra Garopaba, SC, no verão) ou Bar João, beladona e chimarrão.

Que saudade da Redenção, do Fogaça e do Falcão. Cobertor de orelha pro frio… e a galera no Beira Rio.

(E ainda tem o solo de guitarra do Zé, precedido pelo grito de “Vai, Zé”, que o perseguiu por toda a vida.)

Paixão (Kledir) é a balada pop perfeita. Escrita não exatamente por Kledir, mas por aquela espécie de alter-ego dele muito bem mapeado por Emílio Pacheco em Kleiton & Kledir, a biografia: o romântico desbragado, exagerado, capaz de loucuras por sua… paixão. 

Uma canção de um teor erótico nada comum naqueles anos (ainda que finais) de ditadura.

Amo tua voz e tua cor
E teu jeito de fazer amor
Revirando os olhos e o tapete
Suspirando em falsete
Coisas que eu nem sei contar.

Ser feliz é tudo que se quer
– ah, esse maldito feche-éclair! –
De repente a gente rasga a roupa
E uma febre muito louca
Faz o corpo arrepiar.

Depois do terceiro ou quarto copo
Tudo que vier eu topo
Tudo que vier, vem bem…
(…)

E aí aquela conclusão matadora:

Não quero ficar na tua vida
Como uma paixão mal-resolvida
Dessas que a gente tem ciúme e se encharca de perfume
Faz que tenta se matar

O terceiro hit, Navega Coração, foi inspirada em duas canções já existentes: Vira Virou e É Assim, parceria de Kleiton e Eugénia Mello e Castro. 

Essa já era conhecida graças ao MPB Shell 81 da Globo. Mesmo festival onde concorreram Vitor e os conterrâneos Bebeto Alves, Mário Barbará, Galileu Arruda e Geraldo Flach. E que foi vencido por outro gaúcho: Jerônimo Jardim (que tomou aquela vaia histórica para sua Purpurina porque o pessoal queria que Guilherme Arantes tivesse vencido, com Planeta Água). 

Discão, né?

Pois então.

90 mil cópias vendidas. 50 mil só no mês de lançamento.


Arthur de Faria é pianista, compositor e arranjador. Doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS, na área de canção popular. Produziu 28 discos, dirigiu 12 espetáculos. Escreveu 52 trilhas para cinema e teatro em Porto Alegre, São Paulo e Buenos Aires. Lidera a Tum Toin Foin Banda de Câmara e teve peças interpretadas por orquestras e solistas de várias cidades brasileiras. Tocou em meia dúzia de Países e 19 estados brasileiros. Lançou 20 álbuns e EPs e três livros sobre a música de Porto Alegre, dois deles você leu primeiro aqui na Parêntese, em capítulos.

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