Nossos Mortos

Deslizando pelo salão de baile

Change Size Text
Deslizando pelo salão de baile Foto: Divulgação

Patineti não andava em linha reta. Ayrton dos Anjos foi o maior produtor fonográfico do Rio Grande do Sul, responsável por pelo menos 500 gravações musicais em mais de seis décadas. Mas esse feito direto e distintivo, bastante para abrir e fechar qualquer currículo, é apenas um dos muitos pontos que foram ligados por uma trajetória traçada em zigue-zague. Entre a partida em 27 de dezembro de 1941, sete meses depois daquela famosa enchente na capital gaúcha, e a chegada neste 16 de junho, com a cidade ainda sofrendo as consequências da recente cheia, a vida do porto-alegrense Ayrton dos Anjos navegou por todo tipo de água, das cristalinas às turvas, das mansas às tormentosas – uma rota cheia de ventura digna de alguém cujo pai ostentava o quimérico nome Arfogoceano.

O apelido que grudou em Ayrton quem deu foi a cantora Elis Regina, cujo início de carreira no começo dos anos 1960 contou com o estímulo, a orientação e a ajuda profissional do então jovem divulgador de gravadora. “Me sinto como se estivesse andando de patinete”, teria comentado a Pimentinha enquanto tentava acompanhar os passos desajeitados e rápidos do amigo em um baile no Teresópolis Tênis Clube, em 1962. Todo bobo com o que interpretou como um elogio da promissora artista por quem era fascinado (“Elis foi uma sereia que me enfeitiçou desde o primeiro dia em que eu a vi”), Ayrton assumiu-se então Patineti – assim com “i” no final, porque o filho de Arfogoceano só podia ser diferente mesmo.

Patina – ou Patinas, o apelido também tinha seus diminutivos carinhosos – testemunhou virtualmente tudo o que aconteceu de relevante na música feita no Estado a partir da década de 1960, seja como vendedor de discos, divulgador e representante comercial de gravadoras, radialista, produtor, organizador de shows, jurado de festivais, arrecadador de direitos autorais, conselheiro ou palpiteiro. Acompanhou de perto o movimento de ascensão da música regional, participando da criação de festivais nativistas como a Tertúlia, a Coxilha e o Musicanto e gravando nomes como Jayme Caetano Braun, Antonio Augusto Fagundes, Os Serranos, Mário Barbará, Luiz Carlos Borges, Rui Biriva e Telmo de Lima de Freitas, entre dezenas de outros artistas; na cena urbana, colou na novidade representada pelo som dos Almôndegas e do Saracura, de Bebeto Alves e Nelson Coelho de Castro, de Geraldo Flach e Carlinhos Hartlieb, de Jerônimo Jardim e Hermes Aquino.

Espécie de Forrest Gump da música gaúcha, o entusiasmado Patineti não se continha diante do novo: “Eu gravo!”, costumava bravatear altissonante depois de escutar pela primeira vez o trabalho de um algum artista iniciante do qual tivesse gostado – arrependendo-se muitas vezes assim que fechava a boca por não fazer a menor ideia de como honrar a promessa, conforme confessou a mim e ao colega jornalista Márcio Pinheiro no perfil biográfico que escrevemos sobre ele. Apaixonado, persistente e um tanto inconsequente, Patineti sempre dava um jeito de não frustrar a expectativa criada e enfim gravava o sujeito – e foi por causa dessa insistência que muita gente por aqui estreou em disco entre os anos 1970 e 1990, uma época em que a indústria fonográfica e sua influência em jornais, rádios e televisões eram determinantes na difusão da música brasileira no país e na formação do gosto do público.

“Eu fico loucooooo!”, outro dos bordões característicos de Ayrton dos Anjos, também ecoa esse entusiasmo e o tino para identificar a qualidade artística. Quem arrancou a expressão que passaria a ser uma das assinaturas do personagem foi Renato Borghetti, o jovem gaiteiro porto-alegrense cuja apresentação virtuosa na edição de 1988 do Free Jazz Festival, no Hotel Nacional, no Rio de Janeiro, levou ao delírio o impulsivo conterrâneo – que teve de ser contido na plateia pelos irmãos Kleiton e Kledir Ramil, sentados ao lado. A ligação com um dos maiores instrumentistas do Brasil, aliás, já tinha rendido a Patineti alguns anos antes uma de suas mais notáveis conquistas artísticas. Insatisfeito com o resultado das gravações do que viria a ser o seu disco de estreia, Borghettinho resolveu mostrar o trabalho para Patineti e pedir sua opinião. O produtor artístico avaliou que faltava ainda consistência e instrumentação no produto final, aconselhando o músico a chamar Oscar Soares, violonista que escalava sempre para acompanhar os artistas que gravava, especialmente os nativistas, e o baixista Chico Castilhos – ambos companheiros no conjunto Os Mirins. Oscarzinho mexeu nos temas, acrescentou violões, alterou a sonoridade e regravou com o gaiteiro o álbum inteiro. “Gaita Ponto” chegou então às lojas em maio de 1984, em uma parceria da RBS Discos com a gravadora Som Livre alinhada por Patineti – que errou feio na previsão de vendas: otimista, ele conseguira negociar uma tiragem inicial de 5 mil cópias, bem mais do que os modestos mil exemplares pretendidos por Borghettinho; em quatro meses, porém, o trabalhou que lançou o gaiteiro vendeu 100 mil unidades, tornando-se o primeiro Disco de Ouro da história da música instrumental do Brasil.

Outra das primícias de Ayrton dos Anjos foi apresentar aos cariocas um amplo panorama da música nativista. Metaforicamente amarrando o Patineti no Obelisco, o produtor levou do Rio Grande do Sul até o Rio de Janeiro uma tropa de artistas regionalistas como Telmo de Lima Freitas, Os Serranos, Victor Hugo, Leopoldo Rassier e Marco Aurélio Campos para uma série de shows em maio de 1982 no Teatro João Caetano, destacando a relevância artística da Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana. Apesar do estranhamento inicial – que incluiu atritos entre o xucrismo gaudério e a manemolência carioca e rendeu imagens inusitadas como a de Telmo pilchado na beira da praia tomando água de coco –, a temporada foi um sucesso, levando o produtor Albino Pinheiro, criador no Rio do Projeto Seis e Meia, a pedir por mais gauchada.

“A casa é tua, gostei de vocês. O que mais tem por lá?”, indagou Pinheiro, no que Patinete tascou: “Querido, tem a MPG. É a Música Popular Gaúcha, a nossa MPB”. E assim um escrete sulista se bandeou para o Rio a fim de se apresentar em cinco noites de shows, de 13 a 17 de setembro de 1982, reunindo nomes como Carlinhos Hartlieb, Bebeto Alves, Raul Ellwanger, Geraldo Flach, Jerônimo Jardim, Nelson Coelho de Castro, Mauro Kwitko e… Berenice Azambuja – “a maior cantor do Brasil”, segundo Albino Pinheiro, que exigiu a presença da artista no grupo.

O desfile de personalidades e efemérides artísticas, realizações e produções musicais, vitórias e quixotadas é interminável. Ayrton dos Anjos era uma casa cheia como “O Grande Encontro”, baita evento anual criado por ele, em que reunia no palco mais de cinco dezenas de músicos interpretando clássicos do cancioneiro gauchesco. No peito, levava um botton branco “à procura de um patrocinador”, segundo dizia; no pulso, ostentava um relógio só pulseira, sem mostrador nem máquina, como se o tempo não o alcançasse; nas paredes, pendurava quadros feitos apenas de molduras, sem qualquer imagem, sinalizando talvez que a beleza não pode ficar presa em um cercado.

Anjo torto, o acelerado Patineti falava de atropelo, atravessava assuntos uns nos outros, entrava a mil na contramão sem dar sinal, pegava um atalho mais longo do que o caminho, buzinava porque não tinha paciência com quem fica se arrastando na pista. Patineti cruzou a vida como quem desliza pelo salão de baile.


Jornalista e crítico de cinema. Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. É editor do site Roger Lerina (matinaljornalismo.com.br/rogerlerina), uma plataforma dedicada a notícias, artigos e vídeos sobre cinema, artes cênicas, música, artes visuais e eventos culturais. Autor com Márcio Pinheiro do livro Ayrton Patineti dos Anjos: lembranças, sons e delírios de um produtor musical (Plus Editora).

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.