Ensaio

Por que duas exposições feministas de Ana Norogrando são importantes no contexto europeu

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Por que duas exposições feministas de Ana Norogrando são importantes no contexto europeu Vista da exposição de Ana Norogrando “O Submarino Feminista Aquafluxo”, Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa. Foto: Arquivo da artista

Duas grandes exposições de Ana Norogrando (Brasil, 1951), em Portugal, assinalam a importância de sua obra para uma história das formas. A primeira, O Submarino Feminista Aquafluxo, é uma grande instalação da artista apresentada no Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC), em Lisboa. Concebida como uma construção metafórica que evoca o interior de um submarino intitulado aquafluxo, a obra foi montada em sintonia com a Galeria [PeP], um espaço do museu que coincide com a estrutura longitudinal de um submarino. A instalação foi estruturada como um repositório de ideias e conceitos, uma plataforma de experimentação sensorial fundada em uma “visão aquática” do mundo das formas, com vistas a dar uma colaboração para construir uma “historiografia dos sentidos”.

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A sua outra exposição, na Galeria Museológica do Fórum Cultural de Ermesinde, localizado na freguesia de Valongo, na região do Porto, é de longa duração (7 de junho a 22 de setembro). Intitulada A Crueza da Forma de Ana Flâneuse, é composta de 142 obras, entre objetos, esculturas, pinturas, vídeos e fotografias que resultaram de uma estratégia feminista de flanância que Norogrando vem colocando em prática através de seus deslocamentos locais e internacionais, tais como aqueles realizados entre Porto Alegre, Brasil e Portugal, assim como outras partes do mundo. O espaço da Galeria Museológica, cuja concepção arquitetônica invoca uma configuração circulatória, reforça esta disposição metafórica através da passagem do visitante ao longo de um extenso corredor de cerca de 100 metros de comprimento.

Para uma artista com a trajetória de Ana Norogrando, que desde o início trabalhou com formas que resistem a uma acomodação diante da “norma canônica” e cuja obra se desenvolveu no campo artístico local do Rio Grande do Sul com sua tradição escultórica consolidada e subsequentemente no contexto brasileiro, essas duas exposições representam um momento de grande impacto em sua produção. Primeiro porque a artista divergiu desde a realização de suas primeiras obras da tradição figurativa, embora elas recorram à natureza do antropomorfismo, mas distanciam-se, e até se opõem, àquela produção escultórica local indiscutivelmente dominada por artistas do sexo masculino por cerca de pelo menos quatro gerações. 

Se sua obra é colocada diante do panorama maior, ela não se ajusta às reconhecidas tradições históricas da produção brasileira com suas filiações a uma diversidade de correntes artísticas. Suas abordagens do “objeto encontrado” (readymade) situam-se em uma estratégia entre o informe e a montagem; quando se trata da “materialidade”, estes objetos possuem uma opacidade impregnada de sentido, ao invés da pureza conceitual (não formal) que se originou da tradição povera e que ganhou terreno no Brasil depois dos anos de 1960; e suas alusões ao POP brasileiro não possuem mais a ideologia de resposta a uma sociedade de consumo ou à cultura da celebridade e da mídia de massa. Estes são alguns exemplos de como sua obra situa-se contrária e fora deste universo de lugares reconhecíveis. Mesmo o uso da tecnologia em algumas de suas obras é pragmática e instrumental, já que não celebra os feitos tecnológicos e sua estetização, mas os utiliza de uma maneira primitiva e quase funcional em relação ao contexto maior das obras que produz e/ou está inserida.  

Vista da exposição de Ana Norogrando ”A Crueza da Forma de Ana Flâneuse”, Galeria Museológica, Forum Cultural de Ermesinde, Porto, Portugal.
Fotos: Arquivo da artista

Nestas duas exposições, que se realizam simultaneamente em duas instituições portuguesas, Ana Norogrando levou a muito mais longe os limites da forma artística nos termos que a vem construindo. Em geral elas articulam uma transição (um vaivém) entre a imagem e a construção dela pelo olhar, e de volta ao objeto escultórico, no processo de tentativa de formalização. Na exposição A Crueza da Forma de Ana Flâneuse, um conjunto de abordagens transita entre a superfície da imagem, a construção formal do objeto e a desintegração do corpo dessas formas. Nem poderia ser diferente, já que Ana Flâneuse, a personagem ficcional/alter ego da artista que dá assinatura à exposição, transita por este mundo transnacional onde o espaço público e a visão das formas na esfera pública constituem-se em um emaranhado de imagens que perderam as fronteiras de seus contornos. Tanto aquelas obras da artista que se localizam e são produzidas na esfera pública como as que são realizadas no estúdio apresentam esta proclividade para a imagem. 

Mesmo quando a artista avança em direção a uma formalização, a especificidade artística e cultural destes objetos é radicalmente diferente do que se conhece, tanto pelo assunto como pela articulação da sua constituição estrutural e os procedimentos artísticos que ela adota. Cabe lembrar que Ana Norogrando utiliza estrategicamente uma perspectiva feminista de flanância, e é justamente disso que resulta uma “desobediência” da forma artística diante da normatividade. Essa revolta contra as regras do “sucesso” das formas bem acabadas incorpora os ecos da história discursiva sobre as experiências de gênero no espaço público, mas, é importante observar, ela incide na verdade sobre a história da criatividade, que contém uma farsa, comumente dissimulada pela noção de estilo. A conhecida “assinatura’ que as grandes narrativas da história da arte encarregam-se de enfatizar é desfeita por uma estratégia de ênfase na “falha”. Ana Norogrando enfrenta o fracasso nestas duas exposições, ao abandonar o formalismo e a produtividade semântica, justamente para poder conduzir as obras muito mais adiante, alavancando um novo estágio de intervenção no mundo das formas criativas. De certa forma, podemos dizer que a artista abandona a arte para abraçar a criatividade. 

Essa abordagem pela via do fracasso das formas tem um preço considerável, aquele de fazer uma trajetória (ou carreira artística) de maneira mais lenta, já que a inserção de uma produção na esfera pública depende de um vínculo com as tradições. Na sua trajetória de vida de “Ana Flâneuse”, a artista descolou-se de seus vínculos geográficos, que são sempre impeditivos, para ingressar de maneira mais profunda no sentido, no significado, nas imbricações semânticas da existência do objeto que se transforma agora em uma arena de circulação de significado produtivo (em constante evolução semântica), não só mais complexa, mas também conceitualmente sofisticada. Com a exposição realizada com 142 obras dispostas no espaço circumambulatório da galeria do Fórum Cultural de Ermesinde, Ana Norogrando deixa evidente que uma “estratégia feminista de abordagem da forma” seja de fato transnacional, porque estes problemas feminista/artísticos existem além-fronteiras e são impressionantemente similares em relação à natureza política da forma. 

Cabe salientar que estas duas exposições adquiriam uma dimensão trágica, considerando que a primeira, O Submarino Feminista Aquafluxo, teve sua montagem iniciada dia 2 de maio, coincidindo com a catastrófica enchente que atingiu o Estado do Rio Grande do Sul e a cidade de Porto Alegre, onde a artista reside às margens do Guaíba. A abertura aconteceu no dia 10, quando a catástrofe das enchentes havia atingido um momento crítico e dramático. Com a residência, o estúdio e o depósito com cerca de 200 de suas obras submersas na água, lama e detritos, a artista “apresentou” aquela que pode ser considerada uma profecia. Não se trata de vidência, mas de antecipação de problemas que, por serem tão atualizados ao seu tempo, quando se encontraram com a fatalidade, eles pareceram assustadoramente anunciados. 

Vista da exposição de Ana Norogrando “O Submarino Feminista Aquafluxo”, Museu Nacional de
Arte Contemporânea, Lisboa. Foto: Arquivo da artista

Para uma artista que há cerca de 20 anos passou a tematizar a força poderosa das águas, sua energia muitas vezes pacificadora, mas igualmente destrutiva, esse momento inaugural coincidiria com a impressão de uma fatalidade. A água tem aparecido na obra de Ana Norogrando como uma superfície fluida, capaz de habitar espaços inóspitos ou paradisíacos e causar obstrução em espaços de difícil acesso, dando vida à existência de maneiras diversas. Essa estratégia metafórica por vias aquáticas converge perfeitamente para essas duas exposições e, simultaneamente, indica uma mudança radical dos rumos de sua obra, que rompe a coerência da continuidade formal para ingressar no território de um desconhecido a ser explorado.  Mas ao correr este risco, ela apresenta enormes possibilidades de subverter ainda mais a lógica da experiência da forma canônica que, em sua constituição histórica no Brasil, proveniente do cânone global, busca intervir em sua contribuição discreta e modesta diante dos poderosos mecanismos de poder que dão movimento à circulação de objetos artísticos ao redor do mundo.

Essa estratégia de intervenção permeada pelo feminismo, quando ingressa nas formas de sua produção, faz dessas duas exposições casos de grande relevância para uma história de uma artista que vem dedicando sua vida a uma obra avessa aos princípios normativos que regem o sistema. Mesmo quando ela, pessoalmente, e sua obra foram atingidas drasticamente pela força incontida das águas, que tanto havia enfatizado em suas obras, designaram o princípio motor do movimento de energia nas duas exposições. 

Mas a lição mais importante aqui é que a água, esse elemento que vem continuamente dando materialidade às obras da artista, produziu a mesma energia criativa que impulsionou sua obra mais adiante ainda, através de um “submarino” metafórico, que lhe possibilitou uma armadura, replicada pelo espaço interno da galeria longitudinal do espaço do Museu Nacional de Arte Contemporânea, e que subsequentemente ganhou uma velocidade criativa geracional na Galeria Museológica do Fórum Cultural de Ermesinde. 

Uma das grandes lições dessas duas exposições é que a força da criatividade artística é sempre maior e mais durável que até mesmo a força das águas. Uma outra é que exposições radicais como essas acontecem nas margens, mesmo que da Europa, e não nos “centros” de celebração artística institucionalizada do sistema. 

Ana Norogrando. Foto: Bruno Zulian


Gaudêncio Fidelis é Doutor em História da arte e professor adjunto associado do programa de História da Arte do Hunter College de Nova Iorque e curador das duas exposições de Ana Norogrando referidas neste texto 

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