Ensaio

O vazio urbano entre o direito à cidade e à moradia digna

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O vazio urbano entre o direito à cidade e à moradia digna Ilustração de Taiane Chala Beduchi. Acervo: AH! Arquitetura Humana

Porto (nada) Alegre

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Caminho pelas ruas de Porto Alegre, onde o odor do estado mínimo se funde ao lodo do negacionismo. As edificações centenárias, além de suas diversas camadas de história que contam, passam a carregar as humilhantes cicatrizes de uma tragédia anunciada. A Porto Alegre, “capital da inovação” (para poucos), transformou-se na “capital da inundação” (para muitos).

O Guaíba transbordou junto à abertura das porteiras que deliberaram a passagem para tantas “boiadas” urbanas e ambientais. A negligência com a manutenção do sistema de contenção contra enchentes pode ser equiparada tal qual à falta de aplicação dos instrumentos legais que regem a política urbana brasileira. Pois bem, o que esperar de um governo estadual dedicado a “outras” agendas e um governo municipal mais preocupado em viabilizar “rooftops” mercantis no centro, na contramão da garantia da moradia bem localizada para o povo e do cumprimento do Estatuto da Cidade?

Os vazios urbanos agora gritam: “(MUITA) gente sem casa e um tanto de casa sem gente”. Evidenciar a pauta da reforma urbana e a ocupação dos vazios urbanos se faz urgente.

Um Outro Mundo é Possível

E pensar que nossa cidade já foi referência em democratização da gestão urbano-ambiental. Implantou o Orçamento Participativo, instituiu a primeira Secretaria Municipal de Meio Ambiente, publicou o primeiro Atlas Ambiental das Américas e foi pioneira em regularização fundiária. Não é à toa que tantos encontros do Fórum Social Mundial ocorreram aqui. 

O ano era 2002 e Porto Alegre recebia o II Fórum Social Mundial. As ruas estavam repletas de ativistas de todo o mundo, e o tema do direito à moradia estava sendo, literalmente, colocado no centro da cidade. Foi neste contexto que o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), em ato simbólico, ocupou um antigo edifício localizado na Avenida Borges de Medeiros. Sob a bandeira da reforma urbana, o objetivo era bastante claro: ilustrar a luta pela moradia no sul do Brasil e denunciar a existência de edifícios ociosos.

Seria o cumprimento do Estatuto da Cidade uma utopia real? Pois bem, a partir daquele ato, abriu-se uma porta que aproximava a cidade da cidadania. Aquele vazio urbano passava a ocupar a possibilidade de um futuro mais digno para a nossa cidade e, mais adiante, pode-se dizer que: a recuperação de imóveis vazios como uma alternativa de moradia popular.

Mais do que um marco para a regulamentação e execução das políticas urbanas, o Estatuto da Cidade representa até hoje um sonho coletivo que incorpora princípios como o direito à cidade, a função social da propriedade urbana, o direito à moradia e a gestão democrática das cidades. Demandas trazidas pelos movimentos populares antes mesmo de seu primeiro texto.

O Povo no Centro da Luta Institucional

Aos que já conviveram de perto com movimentos populares, a expressão “um pé na porta e outro na instituição” é provavelmente familiar. Essa estratégia simboliza a luta simultânea tanto no espaço físico quanto nas esferas de decisão política. Muitos dos avanços normativos se devem a essas lutas sociais. A inclusão da questão urbana na Constituição Federal de 1988 e a promulgação do Estatuto da Cidade resultam das reivindicações desde meados da década de 70.

O Estatuto da Cidade tem como finalidade garantir uma cidade que pertença a todos que a habitam! Por isso, busca promover também espaços de participação social; ocupá-los é extremamente importante! 

“Ocupar, resistir pra morar!”

Voltamos à escala da cidade. O ano era 2005, e Porto Alegre receberia novamente o Fórum Social Mundial. Já estava virando tradição. Às vésperas do evento, uma pequena multidão se reuniu aos arredores da Praça da Matriz, aguardando o sinal rumo à Avenida Borges de Medeiros. A ocupação desta vez mirava um edifício do INSS, reforçando a luta nacional pela ocupação de imóveis públicos no centro. Construído em 1947, sobre o viaduto Otávio Rocha – cartão postal da cidade – a edificação de nove andares, discretamente “espremida” pelos vizinhos e de traços arquitetônicos protomodernos, fora originalmente do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPs), passando por várias mãos até chegar ao INSS em 1992. Seu último uso foi hospitalar, no entanto em seguida, permaneceu abandonado no coração da cidade por vários anos. 

Em 25 de janeiro de 2005, o imóvel deixa de ser um vazio urbano e a paisagem ressignificada daquele lugar passa a representar um marco de Utopia e Luta, nome também atribuído à ocupação. 

O grupo organizado por meio de cooperativa garantiu a reforma do prédio através do programa crédito solidário e viabilizou a provisão de 42 unidades habitacionais, além das áreas coletivas para geração de renda, cultura e alimentação. 

(…) assim como o crescente número de famílias que vem escolhendo a região central para residir, o que tem sido matéria jornalística. Uma ação exemplar, de iniciativa do Ministério das Cidades, foi reforma e adequação de um prédio do INSS abandonado por décadas, situado na escadaria do Viaduto Otávio Rocha, que foi cedido para seu uso como habitação popular coletiva. (Bicca, 2015, p.189) 

Apesar do debate amadurecido da Reforma Urbana sobre a implantação de políticas de habitação popular contra os despejos e pela condenação dos vazios urbanos, cabe ressaltar que, em nível municipal, o encaminhamento dessas questões geralmente acontece descolado dessa discussão. Embora o Plano Diretor de Porto Alegre, através do Art. 231, reconheça Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS), teoricamente incentivando a recuperação de prédios ociosos no Centro Histórico, a aplicação desses instrumentos ainda é muito incipiente, impedindo a plena realização do direito à moradia e à cidade. 

Com luta, com garra! A casa sai na marra! 

Ocupar imóveis vazios não é nenhuma novidade, prática já realizada pelos movimentos populares há décadas, cuja experiência no centro de Porto Alegre é bastante extensa.

Com a retomada do programa MCMV-Entidades pelo governo federal, só no centro da cidade, três ocupações foram contempladas pelo programa e estão iniciando a fase de elaboração dos projetos para reforma do prédio, sendo ocupação 02 de Junho e Assentamento Primavera sob a gerência do MNLM e a ocupação Sepé Tiaraju sob a gerência do MLB. Vizinho à ocupação Sepé, encontra-se o Assentamento 20 de Novembro que finalmente está entrando na fase de contratação da obra. 

Essas ocupações incitam o Estado a garantir moradia digna e a função social da propriedade, desafiando a urbanização excludente e promovendo um desenvolvimento urbano inclusivo e sustentável. As políticas habitacionais só se compreendem plenamente ao reconhecer as infraestruturas de articulação, formação de redes de resistência e o repertório de luta popular construídos ao longo da história das cidades.

Enquanto Morar for Privilégio, Ocupar é Direito!

A crise climática agrava a desigualdade social, expondo os mais vulneráveis aos desastres ambientais. Nas veias das cidades, a periferia desprovida de infraestrutura enfrenta com mais intensidade as calamidades, enquanto áreas centrais, ricas em serviços, oferecem melhores condições de segurança. Nesse contexto, a ocupação de imóveis vazios nas regiões centrais surge também como um ato de justiça climática e social.

Em Porto Alegre, uma simples caminhada pelo centro já revela a recente movimentação das últimas semanas, que intensificou a transformação de alguns vazios urbanos em centros de apoio comunitário e teto aos desabrigados da enchente. Organizações populares regeneram esses espaços com solidariedade e resistência, reivindicando o direito à cidade. 

Mais do que abrigos, esses espaços se tornam núcleos de resistência e esperança no coração da cidade, consolidando territórios de luta e transformação. São decisivos para conformar a resistência e a imaginação de uma cidade alternativa. É o povo pelo povo, tecendo uma cidade mais justa e humana, onde a resiliência e a solidariedade florescem destes vazios.

Mudar a realidade que conhecemos e acolher as dificuldades de pessoas que foram historicamente marginalizadas e excluídas. Morar dignamente, ter água potável todos os dias, acesso à saúde, educação e lazer, não deveria ser privilégio. O território sobre o qual pisamos em centros urbanos é também sobre o qual vivemos e construímos nossas vidas. A luta continua. 


Nota:
1 – O Plano Diretor de Porto Alegre, através do Art. 23, reconheça Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS), incentivando a recuperação de prédios ociosos no Centro Histórico e implementando procedimentos para a adequação dessas edificações às exigências de habitabilidade, atendendo à demanda de Habitação de Interesse Social (HIS), conforme a Lei Complementar nº 434 de 1999, atualizada pela Lei Complementar nº 646 de 2010. 


O AH! Arquitetura Humana é um escritório de arquitetura urbanismo que trabalha na perspectiva de dar um novo ciclo ao que já existe, (RE) conhecendo a sua história, (RE) interpretando e adaptando seu uso e (RE) significando sua razão de existir. Acreditando na ARQUITETURA como instrumento para transformar os espaços e promover mais justiça nas cidades, sua atuação se desenvolve a partir de três eixos que, conectando escalas, envolve o planejamento urbano e de politicas urbanas, a assessoria técnica para coletivos urbanos e a melhoria habitacional. Situado na cidade de Porto Alegre, é responsável técnico pelo projeto de reabilitação do prédio da Cooperativa 02 de Junho, Assentamento 20 de Novembro e Assentamento Primavera. Também presta assessoria técnica para Assentamento Utopia e Luta e Ocupação Sepé Tiarajú. É formado pelas arquitetas Karla Moroso e Taiane Chala Beduschi.

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