Ensaio

Enchentes, saúde e o imperativo para ação climática

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Enchentes, saúde e o imperativo para ação climática Foto: Lauro Alves/Secom

 O setor da saúde tem no currículo o combate bem-sucedido contra o tabagismo, sal e açúcar que causaram tantas mortes evitáveis. Agora é a vez de focar na ação climática

A mudança climática é para valer. Como diria o professor da USP Paulo Saldiva, autoridade em poluição do ar e saúde, as enchentes foram um “PowerPoint da Natureza”. Sentimos na carne o que parecia uma ideia distante de cientistas. Aqui, “sentir na carne” tem sentido literal, pois fomos atingidos concretamente pelas chuvas, seja perdendo um parente ou a saúde física e mental. 

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Ficou claro que as mudanças climáticas são uma questão de saúde. Segundo o The Lancet, periódico de alto prestígio científico, “a mudança climática é a maior ameaça à saúde global no século 21” (Ao escrever essa frase, lembro da capa do New York Times com um paciente da UPA de Sapiranga, onde levo estudantes da Universidade Feevale, saindo de barco na enchente de 2023). Ao mesmo tempo, o mesmo periódico científico, entretanto, afirma que a mudança climática é a maior oportunidade em saúde global no século 21. É disso que quero tratar aqui.

Dado a magnitude das enchentes, não é de surpreender o crescente interesse da população, do governo, da mídia, do setor de saúde e dos médicos sobre mudança climática, ainda que de forma pouco sistemática. A escola nos preparou para entender esses fenômenos climáticos extremos. No ensino básico vemos um bê-a-bá da mudança climática que começa assim: 1)a poluição do ar com CO2 gera 2) o efeito estufa, que gera 3) o aquecimento global, que 4) aumenta a força de eventos extremos climáticos como chuvas, secas, ondas de calor, ventos, etc. 

Sabemos o que deve ser feito para reduzir (mitigar) o efeito estufa e a mudança climática: parar de poluir o ar. Mas e o que isso tem a ver com saúde? O que se aprende sobre saúde e mudança climática na escola? Ou por meio da imprensa? Sinto que ainda falta desse bê-a-bá.

Quando abordamos efeitos da mudança climática na saúde, começamos didaticamente por dois grandes campos: 1) agravos à saúde por efeitos diretos (de curto prazo) e 2) agravos à saúde por efeitos indiretos (longo prazo). Nas recentes enchentes no estado, vemos com clareza os agravos à saúde por efeitos diretos e imediatos, mas os agravos por efeitos indiretos são mais insidiosos, sutis e socialmente desiguais. 

Os agravos diretos são aqueles da primeira fase que “dão manchete”. São terríveis e cinematográficos. São as quase 200 mortes, as crianças órfãs; as pessoas com sede e fome; molhadas e com frio; os feridos; as vítimas da leptospirose; os afetados por outras doenças infecciosas por aglomeração precária (diarreicas, dengue, sarna, respiratórias); quem está sofre de ansiedade ou por descompensação de diabetes ou hipertensão por perda de remédios; mortes e dor evitáveis pela destruição de hospitais e unidades de saúde, etc. 

Quando estes casos passam, as manchetes começam a desaparecer. Aí que começam a prevalecer os efeitos indiretos e silenciosos. Por exemplo, quem sabe o que está acontecendo nas comunidades ribeirinhas do Solimões após a estiagem de 2023 na Amazônia? O que estará acontecendo por lá? 

Segundo a literatura científica, poderíamos esperar agravos à saúde por efeitos indiretos daquele evento climático extremo que, em maior ou menor escala, também acontecerão em nosso estado. Provavelmente, deve haver muitos casos de transtorno de estresse pós-traumático, exacerbação de problemas de saúde mental, e ecoansiedade (medo de novas secas devastadoras, ou, no caso gaúcho, de tempestades). Importante destacar que depressão é uma das doenças mais incapacitantes e uma das principais causas de afastamento profissional. 

Mesmo que toda a infraestrutura local pudesse ser reconstruída imediatamente, espera-se uma onda silenciosa de mortes relacionadas a diabetes, hipertensão e outros agravos que ocorrem por fatores complexos indiretos e ainda pouco estudados. Além disso, a queda produtiva, ao menos no Rio Grande do Sul, gera um desabastecimento de alimentos e inflação nacional. A desestruturação da economia e do tecido social são um potente determinante social do adoecimento. Aí residem a maior parte dos óbitos por eventos climáticos. 

Além disso, não podemos esquecer dos refugiados climáticos, que no futuro podem chegar a centenas de milhões de migrantes com potencial desestabilização de fronteiras e da paz internacional.

Mas se por um lado o quadro da mudança climática é assustador, por outro lado ocorre uma intensa mobilização social por ajuda humanitária, como estamos presenciando. Precisamos entender esse grande movimento social como um prenúncio de maior atenção à ciência e de mais justiça social e ambiental. Mas qual caminho tomar? 

A saúde oferece caminhos e respostas técnicas, mas é preciso escutá-las para tomar decisões políticas inteligentes. Por exemplo: é preciso entender que, para além do CO2, a poluição do ar também gera um pozinho minúsculo que entra e ataca o pulmão, a placenta, o coração e o cérebro, e que mata 4 milhões de pessoas ao ano no mundo. Certamente, algum conhecido morreu por causa dessa poluição. Sssas mortes são evitáveis. As estratégias de redução da poluição do ar geram um ciclo virtuoso de co-benefícios para os humanos e o planeta. Isso não é um incentivo poderoso?

Preferir transporte ativo (bicicleta ou andar) em vez de carros reduz combustíveis fósseis e sedentarismo, diminuindo mortes e a necessidade de serviços de saúde (e dinheiro!). Evitar excesso de carne vermelha reduz riscos de câncer de cólon e doença cardiovascular ao mesmo tempo que diminui a expansão de gado e queimadas no Cerrado e na Amazônia. 

Precisamos entender que tornar nossas cidades mais justas, resilientes, sustentáveis, belas e limpas é bom para a saúde e também para a atividade econômica. Precisamos entender que acelerar a transição da energia suja para limpa gera mais empregos (vejam as placas solares), barateia a energia, enriquece nossa sociedade e melhora nossos determinantes sociais de saúde.

O setor de saúde têm histórico formidável de liderar a sociedade para profundas mudanças sistêmicas mais saudáveis, como foi o combate contra o tabagismo, o sal, o açúcar, a gordura na comida e, mais recentemente, contra a covid. É hora da saúde liderar o imperativo da ação climática.


Enrique Barros é médico e professor da Universidade Feevale.

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