Crônica

Silêncios e Águas

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Silêncios e Águas Foto: Max Peixoto/Internacional

Nas cheias de maio de 2024 fui jogado em algum túnel do tempo. O flagelado rio Guaíba arrastou-se e escondeu-se na confusão. Hidratado, apresentou-se aos olhares dos habitantes locais e arredores. Em silêncio, as águas vieram e assim partiram em busca do horizonte. 

Em silêncio, as águas turvas advindas do estuário do rio Jacuí amoleceram e desmancharam os meus pés de barro. A seiva barrenta levou os retratos. Nas águas servidas, as imagens desceram e converteram-se em lodo. O mundo ladrilhado, submergiu junto ao mar das lágrimas, escorridas dos vales distantes. Esses lugares atingidos e abastecidos, imperativamente, vestiram-se de corredeiras e planícies, calmarias e destruição, silêncios e tantas ausências… Também na topografia conquistada, elas, as águas cobriram as margens e bairros costeiros. 

Em silêncio, o rio Guaíba alargou a moldura original das margens e afogou, na passagem, as cidades. A paisagem verde e multicolorida naufragou e o espaço se transformou em um único espelho, entre os espantalhos flutuantes. A planície alagada da cidade de Porto Alegre, por entre as vias d’águas, converteu-se em deserto de jazigos, quadras de algum desconhecido cemitério. 

Em silêncio, o céu e a terra aproximaram-se e fundiram-se, a poucos passos, na linha do horizonte. Não só! Nesses dias, a engenharia natural instalou nova estética para os homens aprisionados. Inseriu-se o elemento líquido modelador e fugaz, plástico e ligeiro, raso e plano, homogêneo em relevos e cores. Ao acaso, no ambiente, Narciso defrontou-se com o adorno das águas e viu-se sem voz e eco.

Em silêncio, dois mundos surdos duelaram por um mês. O sólido dissolveu-se no líquido. Uniram-se, em naufrágio e dilúvio, na mesma fala e reflexo do remanso, que por ali reinventaram a oportunista paisagem desolada e submersa na nova realidade líquida. O mundo de antes, perdeu-se nos farrapos das apenadas memórias, tragadas pelas forças das aparências, sempre rotas e moles. A lei do destino, de vasos comunicantes, vigorou no mundo, em meio às águas vivas, que intimaram e apresentaram as fragilidades dos corpos existentes.

Em silêncio, os olhos dos pés se perderam nas curvas das superfícies movediças e fluidas. As vias de idas e vindas anteriores sumiram sob as planícies e pintaram-se na mesma cor nublada do céu e na terra. Formou-se na superfície um espelho. Às vezes, quebrado nas bordas do continente. Ali a imagem da necrópole emergiu salpicada em ondas arquetípicas. Nela, a aparência e o reflexo das paredes e muros, casas e edifícios, esses mausoléus, negaram a invasão da enchente. Ao sabor dos ventos e cheiros fétidos, dançaram as novas marcas dos pés instáveis, pelas forças advindas do céu. 

Em silêncio, as chuvas caídas lá, e de lá expulsas, somaram-se às forças da gravidade, e mais, empurradas pelas encostas abaixo na paisagem, logo, recolhidas nas calhas de passagens. Os efeitos das águas caídas, contudo, migraram submissas no vão do tempo. Foi mais de meio metro, (539,9mm), de águas soltas, só no território de Porto Alegre, RS, sem contar nas vizinhanças, compreendidos pelos espaços originais das bacias coletoras. Foram cinco rios prenhes e cheios aportados no estuário de trânsito do rio Jacuí ao rio Guaíba.  

Em silêncio, o resultado das águas precipitadas de longe transitou e avançou pela superfície da minha avenida Padre Cacique. No inicio, naufragaram as bocas de lobo. Em seguida, nivelaram as pistas com as calçadas. Logo alcançaram os jardins e as dependências das edificações. Subiram nas escadas e estacionaram nas garagens, em mais de um metro de altura. Na confusão, o sistema de esgoto inverteu o fluxo das águas servidas e cresceu no abrigo das paredes separadoras. 

Em silêncio, eu contribuí com o pranto às águas lamacentas e oportunistas do rio Guaíba. Chorei ao ver o espelho da sede, feito água negada à vida. Ali se estendeu um mundo de encantos, recepcionei-o como desalento. O sentimento do sublime fez-se medo e dor. O olhar cobiçoso ultrapassou o estádio da Beira-Rio e foi parar no parque Marinha do Brasil, onde o leito do rio ferido morre pelo pisar dos donos de pés de barro. 

Ao rever uma foto da enchente de maio de 2024, a aflição se misturou com a angústia, enroscada na indefesa emoção. O fato dói tanto quanto me soube sozinho no mundo, isolado nas escadarias do internato.

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