Crônica

O Gol da Bola

Change Size Text
O Gol da Bola Foto: Markus Spiske/Pexels

Uma vez, num campeonato brasileiro sei qual, o zagueiro, do Inter, Wilson, de centroavante, não tocou na bola. Estava no lance, no primeiro pau, mas um segundo depois. Foi uma bola rasa, a do cruzamento do Fernandão. Ela passou intacta por dezoito pernas e cabeças e foi parar na tarrafa. Os narradores gritaram gol! Na ânsia de nomearem o responsável, escolheram o Wilson. Não foi. Nem do Fernandão, mesmo que a única e última gota de sêmen na esfera fosse da chuteira dele. Meu caro narrador, foi a bola a protagonista. Ela, sim, a bola, envergonhada, diante da inépcia dos jogadores que resolveu a parada. Foi então Gol da Bola!

Quando um jogador lança ao léu uma pelota para a grande área perde a autoria do que acontecerá. É uma tarefa que se subordina ao destino, pois que não há por parte do jogador o vislumbre de um específico alvo: a meta ou alguém do seu time. Ele apenas cogita o acaso. A bola, mais uma vez vexada, vira fortuita, apenas uma antecedência de algo ou coisa nenhuma.

O “chuveirinho” é parente não muito distante dessa família de lances. O “chuveirinho” é bola onde o autor se denuncia leviano e pusilânime quando, aos 3 minutos do primeiro tempo, joga dados com o martírio do improvável. Na realidade, ele está mesmo é se despindo do encargo e pensando: agora é com vocês aí na área, a minha parte eu fiz…

Não vamos confundir com aquela bola mais aguda, libidinosa, em curva, metida entre a zaga e o goleiro, advinda de uma cobrança de falta. Esta é uma bola que o lançador a quer ardilosa, viva, tensa, para promover o embaraço, a claudicação dos beques, a dúvida derradeira do goleiro se sai ou não sai da cidadela. 

A bola do Fernandão tinha a vocação de ser mais um prosaico cruzamento para o resto da sua vida, com a latência apenas do vir a ser, mas o caráter do lance não era de um passe preciso e tão pouco como uma assistência de basquete. 

Foi então que a esfera lançada pelo ídolo colorado, no segundo terço da sua trajetória, autônoma, resolveu ser a atriz principal. Driblou a todos e foi parar no fundo do gol. Gol da bola. De mais ninguém. 

Todos os domingos e quartas e quintas, acontece uma destas. Ninguém quer se ater. Acham menor. Eu não. Foi assim que o Inter empatou aquele jogo contra o Flamengo. Com um gol da bola. 

Futebol sem metafísica não é futebol. Sabia disso, desde antes do pretérito, o bardo genial Nelson Rodrigues com o “Sobrenatural de Almeida”.


Nelson Coelho de Castro é compositor, cantor e produtor musical brasileiro e está comemorando 70 anos.  

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.